A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça

RPG:C7

A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça

Autor: Wagner Ribeiro

Versão de: 17-07-2007

O Capitão da Menphis é um homem absolutamente prático. Não vê sua profissão com o menor romantismo. Comanda a nave de passageiros de médio porte SS Memphis, pertencente a uma companhia de vôos charter entre Lua e Marte chamada Key West Voyagers. A Key West era famosa, apesar de pequena, por contratar profissionais extremamente competentes e pagar a eles generosos salários para não os perder para as grandes companhias, como a gigantesca Solar Ocean. Além de reinvestir quase todo o seu lucro operacional em sua frota, de modo que suas pequenas e poderosas naves eram rápidas e ultramodernas.

Pois, rigoroso e dedicado, o capitão Yann Mennel só contribuía para a imagem de excelência da Key West, o que fazia com que a empresa fosse escolhida por nove entre dez celebridades para vôos entre os Domos Lunares e Port Lowell e Marineris City em Marte. Estavam agora a 23 horas de vôo depois da partida do atracadouro em órbita marciana, e a esquia Memphis atravessava uma tempestade de partículas de energia, o que obrigou Yann a ordenar o fechamento de todas as vigias da nave, o que permitia o vedamento completo contra radiações, e total segurança dos passageiros. Na verdade, um sistema especial tornava a Memphis impermeável a qualquer energia, formando a estrutura do veículo uma enorme Gaiola de Faraday. Entretanto este mesmo recurso atrapalhava sobremaneira as comunicações, de modo que a Memphis se via praticando o vôo cego agora, dependendo somente de seus sensores colocados nas extremidades de sua estrutura que ficavam fora do campo protetor da nave.

Yann não se preocupava demais com isso, não além do necessário para um capitão cuidadoso, pois confiava plenamente em sua tripulação, e especialmente no piloto, senhor Rogério Calvert, e sua navegadora, senhora Leda Pasquini, dois dos melhores profissionais com que já havia trabalhado em sua carreira que já perfazia mais de duas décadas. Enquanto aqueles dois estivessem guiando a Memphis, o capitão Mennel estaria tranqüilo. Mas ele tinha outra coisa com que se preocupar, em uma companhia que oferecia “diferenciais” e serviços direcionados a empresários e pessoas ricas como a Key fazia, era bom estar sempre atento ao conforto dos passageiros, e Yann se movia ligeiro agora pelo acesso sem gravidade artificial (outra parte da nave era composta por um cilindro rotativo que produzia a sensação de uma certa gravidade) pois se movia mais rápido por ali. Chegou ao módulo de acesso a área de passageiros, todos deveriam estar agora reunidos na sala de entretenimento, pois ele havia ordenado que a pequena orquestra de bordo providenciasse distração, para que os “hóspedes” da Memphis não sentissem qualquer tipo de ansiedade quanto ao vôo cego. Ao tocar na escotilha que dava acesso ao local onde os treze passageiros se encontravam (cada um pagando cerca de 25 mil créditos pelo vôo) pode ouvir, além da música suave, algumas risadas e isso o satisfez, mas de todo o modo, uma visita do próprio capitão era regra da companhia nesses casos. Abriu a escotilha e entrou.

...

Em um terno caríssimo, e com um copo de “doze anos” na mão, sem gelo, Guilherme Borges se sentia em casa. Não fosse a sensação de nervosismo com o fato de estar no meio de uma missão para a Agência. Era assim que eles costumavam se referir ao Código Sete, ou simplesmente C7, uma estrutura sub-reptícia do governo terrestre que tinha o objetivo de lidar com fatos considerados “anormais”. Em pleno século XXII, a humanidade em seu paraíso tecnológico, acreditava que ela era a única raça inteligente no universo, mas o C7 havia descoberto faz tempo que existiam mais, muito mais, em outros mundos e até em outros planos de existência, e que a mistura entre humanos e estas criaturas era geralmente catastrófica. E para evitar essa mistura, entravam em ação os agentes-diplomatas, como Guilherme, e seus parceiros naquela missão: Milena Ramirez Martins, a médica Clarisse de Souza, e o soldado Dário DiFalco. Eles haviam sido embarcados na Memphis porque um aviso da seção de psíquicos da Agência, chamada Gembloux, que dizia que algo terrível iria acontecer com esta nave em algum momento entre Marte e Lua justamente durante aquela viagem. Guilherme detestava os Gembloux, e tinha sido responsável pelo desenvolvimento de um mecanismo capaz de os destruir, encomendado pelo próprio C7, que não confiava de modo algum em seus mais poderosos agentes.

Guilherme bebeu mais um gole do uísque e olhou em volta. Clarisse havia acabado de falar algo amável para o tal Peter, um escritor idiota e milionário que estava conversando com eles na Sala de Recreação da Memphis. Borges fingiu que ouviu e sorriu, muito pouco amável. Sabia que algo estava errado, ele não precisava ser um psíquico, como o era sua melhor amiga ali presente, a doce agente Milena Ramirez, para saber que algo começou a acontecer. A cantora no palco entoava “Out of Reach” muito bem, além de ser uma loira gostosa que Guilherme gostaria de “traçar” antes de terminar a missão.

_ Então, o senhor é escritor? _ perguntou Dário ao tal Peter.

_ Sim, ao modo clássico, escrevo livros de fantasia.

_ De papel-papel? _ perguntou Clarisse.

_ Sim, só para colecionadores. Mas ganho dinheiro mesmo com uma companhia de produções de neuro-romances.

_ Puxa vida! _ fez Milena, de fato entusiasmada _ o senhor é... Peter Cavalheiro?

Peter sorriu, gentil e charmoso, e respondeu:

_ Um seu criado, senhorita.

_ Puxa! Eu adoro seus neuro-romances... _ E ela começou a corar. Guilherme tinha ganas às vezes de dar umas tapas em Milena, que era capaz de enfrentar monstros alienígenas e ainda assim corar com pequenas bobagens. Ela emendou, constrangida: _ O senhor me emocionou muito com o romance “Uma Lágrima de Satã”, que moça corajosa aquela, sobreviver a tudo aquilo e ainda se tornar parte de algo tão... Tão...

A orquestra começou a tocar “Don’t Break a Heart Loves You”, e Dário pediu para dançar com Clarisse. Guilherme pensou que poderia vomitar com o romance melado daqueles dois agentes idiotas. Se ao menos estivessem querendo só levar um ao outro para a cama, Borges até entenderia, mas amor. Patético.

_ Estóico, talvez seja a palavra que a senhorita está procurando.

_ Sim! Maravilhoso.

_ Gostaria que me colocasse isto por escrito, para que eu pudesse mostrar aos meus críticos.

Milena riu, e Guilherme se surpreendeu apreciando a qualidade da risada da amiga. Fazia bastante tempo que não a ouvia, até porque Milena andava há tanto tempo grudada com a agente Amanda, como se fossem irmãs, que Borges nem parecia ter mais tempo com a amiga. O riso de Milena era totalmente compatível com ela, doce, alegre, cristalino e despreocupado, como o riso de uma criança. Borges se repreendeu intimamente por estar sentindo prazer em ouvir a moça rindo, o meio de uma missão não eram horas para apreciar qualquer coisa. Em sua lógica retilínea, Borges não entendia como o tal escritor, que parecia estar se dando tão bem com Milena, não a estivesse convidando para a cama agora. Afinal, morena, quase um metro e oitenta, olhos faiscantemente azuis e cabelos naturalmente negros e longos, se ela liberasse, até Guilherme a “comeria” sem perda de tempo, tão deliciosa que era Milena. Pensando assim, o agente olhou para o outro lado, e...

_ Oh, não... _ fez Guilherme, e tanto Peter quanto Milena se viraram para o palco, onde, por alguma maldita razão que Guilherme não sabia e odiaria saber, Clarisse estava subindo. Alguém a havia convidado para cantar, e ele gostaria de estar armado agora e fazer a agente descer daquele palco a tiros. Ficou furioso e bebeu o resto de seu uísque de um só gole.

_ Ei, Guilherme, olha que legal, a Clarisse vai cantar. _ Disse Milena, ainda risonha.

_ Hu-hum... _ Respondeu, mal-humorado.

_ O senhor Borges parece aborrecido. Talvez esteja antevendo problemas? _ Quis saber sir Peter.

Guilherme olhou contrafeito para o simpático, e sorridente, Peter Cavalheiro de Toledo, no mesmo momento em que Clarisse, tímida, mas linda como sempre, dizia ao microfone, no palco.

_ Isto está funcionando? Oh, está... Gente, eu conheço uma da Norah, e gostaria de cantar para vocês, em especial para o meu querido Dário aqui, excelente dançarino. Chamasse “Don’t Know Why”, conhece maestro?

O homem fez que sim, e principiou os acordes. Clarisse começou a cantar, e o queixo de Guilherme quase caiu. “Eu iria para cama com ela agora, se pudesse”, pensou. A timidez de Clarisse foi se desfazendo na mesma proporção em que ela foi percebendo que as pessoas se hipnotizavam com a doçura de sua voz, e com sua sensualidade delicada no palco, com seu vestido generoso e elegante. Dário, com as mãos para trás, e também extremamente elegante em seu terno italiano, balançava suavemente ao som tépido da voz da doutora. Bem ao lado de Borges, Milena cochichava para Peter:

_ Olhe senhor Cavalheiro, como meu amigo Dário está babando pela namorada. Não é uma gracinha?

_ Ele ainda está de pé, está se saindo melhor que eu me sairia. Eu estaria de joelhos bambos, senhorita Milena. A jovem Clarisse canta como um anjo.

_ Pode me chamar só de Milena...

_ Só se me fizer a imensa gentileza de me chamar apenas de Peter... _ E sorriu para ela. Milena devolveu o sorriso, e acrescentou:

_ Peter.

Guilherme já não suportava mais, tinha vontade de enfiar o dedo na garganta e vomitar sobre todo mundo ali. Um segundo depois de Clarisse terminar a canção e ser aplaudida por uma alegre embora diminuta platéia, uma escotilha lateral se abriu, e o comandante da Memphis entrou. Borges pegou Milena pelo braço e foi em direção a Yann.

_ Guilherme!! Está me machucando! _ Disse a moça, sendo arrastada com um mínimo de sutileza.

_ A missão, Milena. _ Murmurou Borges, ao que a agente parou de resmungar imediatamente.

Ao se aproximarem do capitão, Guilherme foi dizendo:

 _ Comandante, está tudo bem?

_ Claro que sim doutor Guilherme. _ Yann, claro, conhecia todos os seus passageiros por nome _ Não há com o que se preocupar, estamos atravessando uma nuvem de alta energia, mas o casco da Memphis pode agüentar três vezes mais que isso.

_ E provavelmente foi por isso que o senhor mandou vedar as escotilhas de observação e acionou o campo protetor, não? _ Perguntou Peter, que se aproximava.

_ Claro Sir Peter. Isso nos dá proteção adicional, e impede a menor contaminação por radiação cósmica. Bem, o senhor deve saber bem disso, escreveu um fascinante conto sobre o tema para a Analog.

_ O senhor é um... _ começou Milena, mas se corrigiu _ você é Cavaleiro, Peter? Quero dizer, é um Sir, de verdade?

_ Pouca gente sabe disso. O Capitão é um homem muito meticuloso ao se informar sobre seus passageiros. Sir Peter Cavalheiro de Toledo, sagrado pela Rainha há dez anos, como eu já disse e reafirmo, um seu criado, minha cara dama.

Yann, na dúvida sobre se aquilo aborrecia ou não o escritor, apenas sorriu cordialmente.

_ Então é britânico? _ Perguntou Milena, encantada com o charme sutil e delicado do homem mais velho.

_ Brasileiro, Milena.

_ Desculpe, mas quantos anos tem? _ Quis saber ela, corando suavemente de novo.

_ Cerca de trinta e poucos, para uma jovem tão bonita quanto você. _ Respondeu Peter, mentindo charmosamente, com um sorriso gentil e maroto.

Guilherme explodiu:

_ Vocês dois querem me deixar perguntar alguns detalhes ao comandante, podem ir trocar figurinhas em outro lugar?!

Milena ficou rubra de constrangimento, mas Peter aparentemente havia aprendido o autocontrole britânico, pois apenas estendeu o braço direito para Milena e foi dizendo:

_ Vamos dançar, Milena? A bela doutora vai cantar outra canção, me parece “Seven Years”. O nosso doutor Guilherme parece estar a ponto de perder a cabeça, é melhor você vir comigo.

_ C-claro, Peter... _ Milena sorriu para ele e fez uma cara zangada para Guilherme, enquanto saía de braço dado com Sir Peter.

Não demoraria muito, e o próprio Peter estaria no palco, cantando “Twist and Shout” dos Beatles, para a pequena, e então frenética platéia, e para a fúria de Borges, que odiava qualquer pessoa “gentil”, “simpática” e “agradável” que não fosse Milena. Mas enquanto Peter ainda não havia subido no palco, Guilherme perguntava ao comandante:

_ Senhor, tenho investimentos de milhões esperando minha assinatura em Domo Lunar III, tem certeza absoluta que nada de errado pode estar acontecendo?

_ Absoluta, doutor. E a direção da Key West mandou lhe avisar que temos um veículo especial aguardando o senhor no espaço-porto lunar D-III, para o levar direto para sua reunião.

_ Hu-hum. Ta bom. Posso visitar a cabine de comando.

_ Claro que vai poder...

_ Agora?

_ Não, senhor, infelizmente não agora, pois meus pilotos estão em vôo cego...

_ O que?!

_ Pilotando por instrumentos sofisticadíssimos, não tem erro. _ Respondeu Yann, permitindo que uma pequena porção de sua impaciência com o grosseiro Guilherme o fizesse ser ligeiramente mais objetivo do que gostaria em sua resposta.

Foi aqui que Peter começou com o Twist, e a voz dele não era das melhores, nem das piores, mas o carisma do sujeito parecia compensar, pois ele estava deixando as pessoas muito animadas. Milena dançava e se ria toda. Guilherme sentiu falta da arma novamente, para atirar contra o palco. Chegou mesmo a levar uma mão crispada a um coldre imaginário na cintura, rilhando os dentes. Mal Peter acabou de cantar e as batidas começaram.

...

Tum! Tuc, tuc, tuc! Tum, tum! Tum, tof! Era como se pequenos, mas sólidos objetos, algo do tamanho talvez de uma bola de futebol, batessem contra o casco da nave. A princípio, só uns poucos ouviram, mas no momento seguinte, a própria doutora Clarisse mandou que a orquestra silenciasse, e todos puderam, estando absolutamente quietos, ouvir as batidas descompassadas e ligeiras: Touf! Tum, tuc, tum! Touf! Tum! Touf, touf, tof, tum!

_ Capitão! Yann, pode vir à ponte? _ Veio o chamado pelo Tablet-Pessoal do comandante. Era a voz de Leda, consternada, mas sob rígido controle _ Temos um ligeiro contratempo aqui. Estamos fora da nuvem energizada, reduzimos a velocidade e descobrimos inclusive de onde ela vinha, mas estamos colidindo com... Venha à ponte, capitão, por favor. Rápido. Capitão, rápido!

Um ranger alto e grave, como se um metal enorme estivesse raspando sobre a fuselagem da Memphis se fez ouvir. Algumas pessoas na sala de entretenimento taparam ouvidos, outras gritaram. No mesmo segundo, os agentes, já experientes em situações extremas, haviam se reunido junto ao capitão Yann, que atravessava a escotilha rapidamente. Guilherme, Milena, Clarisse e Dário o seguiram, e quando DiFalco ia trancar a escotilha atrás de si, Peter passou. Dário achou por bem não tentar deter o cara, e seguiu os outros todos até a ponte de comando. O soldado perceber que o romancista era bastante ágil em zero-G, e se movimentava habilmente através do corredor, não ficando para trás nenhum segundo.

Chegaram todos juntos à ponte, e só ali Yann percebeu que tinha sido seguido, mas não teve condições de reclamar. Calvert e Pasquini tinham aberto as blindagens das escotilhas frontais, e as grandes vigias panorâmicas da Memphis descortinavam uma cena de horror bizarro: à frente, uma grande Esfera Barnal, uma espécie de estação espacial em forma de esfera, no interior da qual jazia um habitáculo com ar, luz e gravidade artificial por conta da força giratória da estrutura. A volta dessa estação, como se fosse ela uma miniatura do planeta Saturno, anéis orbitando. Os anéis de saturno eram formados por gelo e rochas, os desta estação espacial perdida na escuridão entre os planetas era formada de escombros e... Cabeças humanas.

...

_ Meu Deus são... _ Principiou Clarisse, atônita.

_ Cabeças, senhorita. _ confirmou Sir Peter. _ Estão se chocando contra o casco da Memphis porque estamos entrando no pequeno campo gravitacional que a Esfera Barnal cria em torno de si, e que faz com que todos esses... Detritos, provavelmente expulsos pela própria Esfera Barnal, fiquem girando em torno dela. Capitão, eu sugeriria elevar a rota da nave acima do anel de destroços, antes que algo de fato maior que uma cabeça nos atinja em cheio.

Antes que o capitão pudesse falar, outro crânio decepado bateu contra a janela, touf!, bem próximo a Yann. O choque fazia o ar dentro da nave vibrar, daí o som. Era a cabeça de um senhor, seus olhos vitrificados pela exposição ao vácuo se esfacelaram em poeira seca, que foi se esboroando juntamente com a pele e os cabelos cristalizados, e girando em torvelinho para longe do campo de visão. A navegadora Leda então, para quebrar o silêncio tenebroso e tentar não perder o próprio controle, foi dizendo:

_ Não podemos manobrar, Sir Peter, pois existem grandes escombros, pedaços da fuselagem e de antenas, talvez, girando sobre e abaixo de nós, estamos em um corredor de escombros, os menores estão aqui, a nossa frente. Ainda a pouco tentamos erguer a nave, e quase colidimos com uma parede de alumínio retorcido. Por sorte, quando desaceleramos a Memphis, ela parou bem dentro de uma zona livre.

_ Qual o tamanho dessa coisa? _ perguntou Yann, retomando sua objetividade de comandante, e apontando para a Esfera Barnal.

_ Cerca de o triplo da Memphis, senhor. _ Respondeu Rogério.

_ Uns 200 a 210 metros, mais ou menos... _ Murmurou Yann.

_ Sim, senhor.

_ Já a identificaram? De onde diabos essa coisa saiu, Pasquini? _ Quis saber o capitão.

_ Ela está se autopropulsionando, veja senhor, ali à esquerda. Há um imenso motor de plasma queimando, está vendo? Foi o rastro energético deste escapamento que pegamos há alguns minutos. Saímos dele, e caímos direto dentro desses anéis de escombros.

_ E como nossos sensores não captaram esta coisa enorme?

_ Não posso responder, senhor. A um segundo não estava lá, e agora está, veja, nítido nos radares. Talvez algum material estranho nestes destroços esteja dispersando o radar a uma certa distância. Sei que agora, de algum modo, ela nos “abocanhou”, por assim dizer. Se não a seguirmos, podemos colidir com um dos destroços maiores e explodiremos. _ A jovem Pasquini, não mais que uns 18 anos, estava temerosa, mas profissionalmente controlada.

_ Qual a identificação desta coisa, Rogério?

_ Negativa, senhor, não há inscrição e sem resposta a pedidos de contato. Não possui radiofarol.

_ Dá para calcular o Delta-V?

_ Sim senhor, é um empuxo violento, veja os gráficos. Deve estar queimando tudo que tem, e a rota pregressa indica que veio de algum lugar próximo a Terra, e está subindo lentamente pelo plano da elíptica, deve sair do sistema solar em dois anos, e mergulhar em espaço profundo. Está em viagem só de ida. Não vejo os tanques de combustível, devem estar lá dentro, mas queimando assim, não devem durar muito, e aí ficará só na inércia.

_ Temos que sair daqui. Mande um sinal de socorro, estamos tão próximo de Port Lowell que eles podem nos resgatar em menos de um dia.

_ Já tentamos, mas não obtemos resposta. _ Leda abriu o canal de rádio, e só obteve estática. _ Deve ser a mesma coisa que interferiu no radar, senhor. _ Disse Rogério.

Guilherme Borges, indicado como líder daquela missão, observava. Estava medindo as reações das pessoas, e repassando suas ordens na cabeça: se acaso encontrassem qualquer objeto “esférico”, disse a maldita vidente do Gembloux, deviam destruir a coisa o mais rápido possível, isso queria dizer que deviam ir até lá e...

...

Borges sentiu o soco, um direto no queixo. Por mero instinto “ruim” como ele mesmo costumava dizer, chutou para frente com força, e ouviu Dário grunhindo de dor, atingido bem na virilha. Finalmente a visão de Guilherme se desanuviou e ele pode registrar a cena: por algum motivo ele tinha tido um lapso, e por algum motivo também tinha começado a brigar do nada com Dário, que exibia um nariz sangrando. Borges estava sendo acudido por Milena, enquanto Clarisse cuidava de Dário.

_ O que? O que caralho está acontecendo aqui? _ perguntou Guilherme, de modo que só Milena pudesse ouvir _ Não consigo lembrar porque comecei esta briga...

_ Você queria que Yann manobrasse a nave de qualquer jeito e nos tirasse daqui, ou explodisse tentando _ Respondeu baixinho Milena, que havia feito uma cara de dúvida antes de começar a falar, mas preferiu esclarecer o realmente confuso amigo _ aí o Dário discordou, você gritou, e daí vocês começaram a se espancar, se eu não tivesse apartado...

_ Eu tinha matado ele, mas deixa isso prá lá. Eu NÃO lembro disso, Milenaaaaa.

_ Eu vou mandar robôs de segurança arrastar todos vocês daqui agora! _ sentenciou Yann.

_ Não, senhor, por favor, rogo por meus amigos, eles estão nervosos, e creio que podemos ajudar... _ Começou muito gentilmente Peter, ao que, curioso, Yann perguntou:

_ Ajudar? Como?

_ Com idéias, senhor, de que outra maneira um romancista ajudaria? Veja, podemos atracar a Memphis nesta esfera, entrar, e desligar motores e os sistemas que estão interferindo no rádio e no radar. Na pior das hipóteses esse enorme aparelho vai ser visível daqui até Júpiter por qualquer nave em trânsito, e seremos abordados e salvos.

_ Hã, sir Peter, e quanto... _ A bela doutora Clarisse sorria de puro nervoso, enquanto apontava para fora da escotilha. Mesmo com tanto medo, tomada de ligeiro mas perceptível tremor, ela era uma mulher estonteante, e objetiva também _ ... Bem, às cabeças? Não lhe ocorreu que...

_ A terrível pessoa ou coisa que fez isto possa estar lá dentro? Oh, sim, senhorita, certamente essa possibilidade existe... _ Começou Peter, mas pigarreou ligeiramente e foi dizendo, suavemente: _ Desculpe, mas está extremamente atraente neste vestido, Clarisse, se seu acompanhante, senhor DiFalco, me permite o elogio, inevitável mesmo diante de nossa difícil situação... _ Envaidecida, com o elogio inesperado, Clarisse sorriu e relaxou um pouco, e, alcançando o efeito desejado, Peter continuou: _ Mas como ia dizendo, de fato, pensei sobre essa eventual possibilidade, mas não vejo que outra atitude tomar. Veja, a própria senhorita Leda, competentíssima, nos explicou que os menores destroços estão à frente, se pudermos enfrentar estes, estaremos bem de frente àquela eclusa de ar ali, e dali entramos, enfrentamos um ou dois “caçadores de cabeças” e nos salvamos. Vai ser moleza.

_ Você bebeu, porra?!?! _ gritaram Dário e Guilherme juntos. Ao que Clarisse repreendeu Dário com um olhar fulminante.

_ Ora, veja só, já têm algo em comum, nossos amigos brigões? _ fez um agradavelmente sorridente Sir Peter.

_ Ele tem razão. _ Falou Clarisse, retomando sua objetividade científica.

_ Creio que sim. _ Concordou Milena. Peter assentia a cada concordância.

_ Seja o que for que tiver lá dentro, é a única saída, a outra seria sentar e cruzar os braços, capitão... _ Concordou por fim Leda, sorrindo para sir Peter, que foi dizendo:

_ Sei que o restante de sua tripulação, por uma questão protocolar da Key West, é composta de robôs, de modo que ofereço o meu e os serviços de meus amigos aqui para abordar este sinistro veículo e proceder os acertos para escaparmos dele. Eu sou um operário quando muito, mas sou um excelente operário quando quero. A adorável Milena é engenheira, a não menos adorável Clarisse é médica, se houver algum sobrevivente ele precisará dela, e nosso amigo aqui, senhor Dário, é operador de maquinário pesado, um empresário do setor de obras civis, se bem me lembro o que me disse, já o doutor Guilherme, um gênio da indústria de engenharia bioquímica, pode ser essencial para nos ajudar com os sistemas de combustível e suporte de vida da esfera.

Yann ponderou por um longo tempo. Não queria tomar nenhuma atitude que pusesse em risco seus passageiros, mesmo que estes fossem dados a aventuras, e em condições adversas pudessem tomar atitudes melhores que qualquer um dos modelos de robôs optoeletrônicos a bordo, mas também nunca tinha estado com uma nave repleta de milionários a beira da morte. Sim, porque se tentassem sair daquela “ratoeira” poderiam explodir, se ficassem ali, morreriam lentamente, e a Memphis lhes serviria de caixão pelos séculos que vagariam pelo espaço interestelar. Um novo escombro raspou pela lateral da Memphis, e o grito de metal contra metal fez o capitão se apressar:

_ Calvert, Pasquini, entrem com uma rota que nos leve até a esfera, e até aquela eclusa de ar aberta ali. Creio que isso terá de ser feito lentamente, já que temos alguns objetos em trajetórias excêntricas no nosso caminho, então me diga, Leda, quanto tempo para calcular as manobras no computador, e efetuar?

_ Aproximadamente meia hora para calcular, e quarenta minutos para efetuar.

_ Muito bem, senhores, cumpra-se. E quanto a sir Peter e seus amigos, temos algum tempo para planejar como efetuaremos a abordagem. Senhores, senhoras, voltem a sala de entretenimento, e, por favor, façam às vezes de representantes dos passageiros, e acalmem as pessoas, mintam se necessário, eu vou providenciar equipamentos e robôs para a missão de abordagem. Nos encontramos aqui, na ponte, em trinta minutos.

_ Adiante! _ fez um alegre Sir Peter.

_ O senhor é tão... Animado. _ fez Clarisse, triste em ter de abordar aquela esfera, mas feliz por contar com o apoio do simpático Peter, que na pior das hipóteses, mantinha o moral alto.

_ Só se vive uma vez, Clarisse... Pode me dar o braço novamente Milena? Sou animado, mas menos corajoso do que pareço. _ Ele riu enquanto a bela Milena, sorridente mesmo com tanta apreensão, se enroscava em seu braço feito uma grande e bela gata. Peter prosseguiu: _ Mas como eu ia dizendo, só vivemos uma vez, minha bela doutora, não importa quão longa seja a vida, só viveremos uma vez. Não concorda doutor Guilherme?

Borges grunhiu um palavrão em resposta. Estava pensando nos explosivos que a agência mandou. Tudo estocado em sua bolsa de viagem, protegido, e mortífero.

...

Peter conversava com as pessoas na sala de recreação, ele inventava com uma fluência digna de um literato as mais suaves mentiras, algo sobre terem encontrado alguns destroços e uma outra nave de passageiros avariada. Sir Peter fez questão de frisar que a nave era do tipo classe “c”, com as passagens mais baratas, e estava cheia de crianças e turistas fanfarrões. Isso arrancava pequenas expressões de desprezo dos ricos e famosos a bordo da Memphis. O “jovem senhor” Cavalheiro chegou mesmo a interpretar uma conversa grosseira que teve com um executivo a bordo da outra nave, que nem estava tão avariada assim, a choramingar que eles recebessem todos a bordo. Prontamente se ouviram frases do tipo:

_ Oh, não, por Deus...

_ Eu não me misturo...

_ Sir Peter, tem que impedir que o comandante traga esta gente para cá!

_ Mas é claro, madame! _ dizia Peter, simulando uma afetação que os agentes já tinham percebido que de fato ele não tinha _ Pois não foi exatamente isto que falei ao nosso bom capitão? Por isso mesmo o convenci de que era necessário concertar a outra nave, e não trazer pessoas para cá.

_ E cê acredita que eles vão fazer isso? _ perguntou Andréia Lucatti, modelo e estilista milionária das passarelas de Marte, magérrima, lindérrima (não para o gosto apurado para mulheres de Peter, que normalmente começava a saborear a companhia delas através de um papo estimulante e inteligente, pensava ele) de origem humilde, mas que por isso mesmo não queria correr o risco de se ver cercada de gente que lhe lembrasse a época dos dias duros de trabalhar seis horas por dia e ganhar o suficiente só para ter uma casa, carro, e viajar de vez em quando, essas coisinhas básicas.

_ Senhorita Lucatti, para proteger sua beleza de qualquer constrangimento, eu mesmo os chutaria gentilmente para fora desta nave! Está rindo? É verdade. Mas sério, alguns dos nossos passageiros aqui são pessoas gabaritadas a prestar os socorros técnicos necessários à outra nave, e farão isso melhor que os robôs que possuímos a bordo. E eu próprio irei com eles para garantir que nossa privacidade e nosso conforto não sejam comprometidos.

_ E porque estamos sem comunicações? Tentei usar nossa conexão interna para receber alguns relatórios da AllCom, e não pude conectar.

Peter sorriu, enquanto pensava que ali estava uma mulher que, embora muito jovem, tinha indubitavelmente algumas das melhores qualidades que apreciava. A herdeira do clã Allcaki era cuidadosa e detalhista, imaginativa e vastamente inteligente, tinha o defeito de uma certa arrogância, mas não era afetada, até onde sabia sobre ela. E o raciocínio arguto dela tinha apontado para uma falha em sua história criada às pressas, mas ele, criativo que era, nem pestanejou ao dar a resposta:

_ Eu não falei dos escombros, senhorita Nataly? A Pearl Jam (ninguém mais além dele e de um punhado de amigos deveria lembrar da banda, pensou), a nave avariada, recebeu o impacto de um desgarrado das minas nos asteróides...

_ Quais minas? Tenho negócios lá! _ Dava para ver os cálculos de despesas com indenizações dardejando no olhar da moça.

_ O que é um desgarrado? _ perguntou Lucatti, voz aguda.

_ Vai poder verificar pessoalmente se quiser vir comigo. _ Falou casualmente Peter. Ela não viria, não arriscaria, não podia ser uma “negociante a moda antiga”.

_ O que é um desgarrado? _ perguntou Lucatti, voz ainda mais aguda.

_ As minas lançam os produtos menos valiosos em containeres com catapultas eletromagnéticas, para órbitas que os levam em direção as estações de metalurgia em órbita de Marte e da Terra. _ Disse, firme, formalmente educada, e objetivamente a executiva Nataly, continuando: _ Os “pacotes” formam uma fila quase contínua. Alguns destes “pacotes” se perdem, e se tornam desgarrados. Ok, senhor Cavalheiro, deixe-me pegar meu tablet e trocar esta roupa que vou com você...

_ Eu não aconselharia. Veementemente.

_ Porquê? _ Quis saber Allcaki, levantando elegantemente uma de suas belas sobrancelhas.

Ele a chamou para perto de si, e falou baixo para que só ela pudesse ouvir:

_ Aquele cavalheiro ali, senhor Guilherme Borges, o de cara amarrada, é quem vai lidar com os vazamentos de combustível da Jam, o serviço mais “sujo” por assim dizer, e ele, sujeito extremamente grosseiro, está maldizendo o tempo todo os empresários de mineração. Creio que a senhorita poderia esperar aqui, e eu lhe informaria se o desgarrado era da AllCom, confidencialmente, claro.

Nataly Allcaki ficou olhando para Guilherme com uma interrogação no olhar. Peter sabia que, empresária jovem, mas astuta, ela estava “medindo” a periculosidade do “inimigo”, e Sir Cavalheiro estava torcendo por uma coisa que de fato aconteceu: Guilherme, que confabulava aos cochichos com seus amigos, percebeu que estava sendo observado e olhou para a jovem, sorriu violentamente malicioso, e moveu os lábios, falando sem emitir sons algo que em português poderia soar como “eu sou caro”.

_ O senhor tem razão, se puder me dizer o que aconteceu assim que voltar. Tenho negócios de bilhões nos asteróides, bem sabe...

_ Certamente. Eu a procuro assim que voltar e estiver apresentável.

_ Por favor.

_ Oh, Deus, que coisa horrível, seus amigos lá estão ameaçando lutar entre si! _ afirmou Lucatti, voz mais aguda ainda.

_ Jantamos? _ perguntou sir Cavalheiro a jovem Allcaki, ignorando “seus amigos”.

_ Sim, claro. Estou mesmo querendo falar com o senhor se não gostaria de trocar de editora. Nos compramos a Universal Warner, creio que sabe? _ Disse ela, sorrindo formalmente, mas com aquela olhar “avaliador”.

_ Sim, sim. Fiquei feliz que a velha e boa Universal tenha ganhado o sangue novo, arrojado e competente de sua empresa. _ Respondeu Peter, cordialmente devolvendo o olhar.

_ De fato. Pretendemos lucros de pelo menos seis bilhões em todo o Sistema no próximo balanço. Mas temos que conversar sobre esta sua tendência de só publicar em “analógico”.

_ Hummm, este jantar com minha futura e linda chefe vai ser de “brigas”? _ perguntou o escritor, sorrindo elegante e insinuantemente.

Ao que ela sorriu de volta, um sorriso menos formal e muito mais encantador. A moça gostava de brigas, dessas brigas que envolviam o mercado de capitais. Ela e o agradável Peter ainda conversaram um pouco mais. Ela gostava muito de conversar com homens mais velhos, especialmente os charmosos.

...

Enquanto Peter enrolava as pessoas, Guilherme tinha uma oportunidade de ouro para reunir seu pessoal. Relembrou a todos o perfil da missão: destruir o objeto que se intrometeria no caminho da Memphis, custe o que custar.

_ Acho que tooodo mundo aqui lembra que a desgraçada da bruxa dos Gembloux que previu isto falou que algo terrível iria acontecer aqui. E que este algo não deveria deixar o Sistema Solar, que seria algo esférico, a filha da puta só não disse que seria tão enoooorme, caralho.

_ Você parece a Amanda... _ comentou Milena.

_ O quê?! _ Fez Borges.

_ Parece a Amandinha, parece com ela, pontuando as frases com palavras grandes.

_ PA-LA-VRÕES, Milena, porra.

_ Tá vendo? Boca suja, ai que saudade da Amanda. Saudade me dá uma fome!

_ O que não te dá fome? _ Grunhiu Guilherme. _ E se eu parecesse com a Amanda, eu tava me esfregando em qualquer um por aí, Milena. Feito aquela riquinha gostosinha que ta me olhando ali, peraí _ e ele virou em direção a Nataly, que o observava intensamente ao lado de Peter. Guilherme não resistiu e fez o que gostava: foi grosseiro, dizendo sem emitir som um “eu sou tarado”, ao que a moça se virou bruscamente, deve ter entendido, pensou ele, e então Guilherme foi dizendo para a agente Milena: _ E lá vem você com Amanda de novo! Seu sonho secreto deve ser tomar o corpo de seu irmão e dar uns traços na Amadiiinha, não? Caaaaaaasa com ela, Milena!

_ Guilherme!!! _ Fez Milena, ficando vermelha.

_ Você está sendo grosseiro! _ sentenciou Clarisse.

_ Não fode minha paciência, doutora.

Dário prontamente agarrou a gola do terno de Guilherme, que por sua vez agarrou a mão do homem, e foi lhe dizendo:

_ Eu sou o líder da missão, e só estou tentando CUMPRIR _ e quase gritou este “cumprir”, cuspindo-o na cara de Dário _ essa merda de missão. Ou você vai fazer como fez com Jimmy e me dar um tiro também?

O clima de tensão só se apartou quando Milena interveio.

_ Dário me desculpe. Solte Guilherme, está atraindo a atenção, e sabe que ele tem uma certa lógica no que diz, temos que nos concentrar em nossas ordens. E você, Guilherme, tente se controlar, amigo, você é o líder desta missão sim, e deve dar exemplo.

_ Eu... _ Começou Guilherme, arrogante e furioso, assim que Dário o soltou a abraçou Clarisse. Mas Milena olhou para ele com “aquele” olhar dela, que ninguém mais conseguia ter, de quem repreende com amor e ternura, e Guilherme, com vontade de rir, relaxou _ Ahhh, Milena, Dário e Clarisse, nós temos que levar explosivos para aquela esfera, e detonar aquilo, para mim estas são as ordens, concordam?

Todos fizeram que sim, mas Clarisse levantou a mão, singela e atraente, como sempre. Guilherme fez um sinal para que ela falasse.

_ Doutor Guilherme, e quanto à segurança desta nave aqui? A explosão da esfera pode destruir a Memphis, e toda essa gente...

_ Certo, e se destruíssemos a Memphis não teríamos como nos salvar. Mas vamos seguir com os conselhos do veadinho do Peter...

_ É ruim, heim! _ fez Milena, e levou a mão à boca, imediatamente constrangida por ter soltado a frase por impulso.

_ Onde que aquele homem é veado, Guilherme? Está confundindo elegância masculina com feminilidade? _ falou a doutora Clarisse, em um arroubo meio que indignado.

_ Clarisse! _ fez Dário, ainda mais indignado.

_ Guilherme _ falou Clarisse, muito séria _ Continua!

_ Bem, como eu ia dizendo antes de ser atropelado pela legião de fãs do senhor fantástico ali, ele nos deu a entrada na Memphis, vamos então liberar esta nave aqui e plantar a bomba com um “timer”, mas vamos ter que levar Peter junto conosco à Esfera Barnal, por isso, aviso, Milena, se ele ficar sabendo do que vamos fazer pode perguntar demais, e aí sabe bem o que Orwel vai solicitar que seja feito com ele... _ E Guilherme passou o polegar em riste sob o queixo, como se passasse uma faca imaginária no próprio pescoço. O agente estava se referindo ao computador inteligente que os vigiava, através de um bracelete multifuncional que todos os agentes C7 têm, e quando necessário ou os matava, ou ordenava que matassem testemunhas. Milena arregalou os olhos, mas foi Dário quem falou:

_ Já repararam que o sinal do Orwel foi embora de novo? Olhem seus braceletes.

_ Pe-ó-puta que pariuuu! _ fez Guilherme, baixinho, mas furiosamente: _ Ele sempre faz isso quando estamos em uma encrenca dessas, já repararam.

_ Justo quando eu ia dizer que seria melhor usar o nosso contato com Orwel para pedir ajuda para a Memphis agora, mas nem o Five Base está funcionando.

_ E o canal Five Base deveria funcionar até do outro lado da galáxia, com essa merda de divisão de fótons! _ resmungou Guilherme.

_ Peter está vindo para cá. _ Avisou Milena, seus grandes olhos azuis brilhando de preocupação com o escritor. Ela sabia que a ausência de Orwel significava que estavam sós durante a missão, e isto era perigoso, mas ficava um tanto menos preocupada com Cavalheiro, visto que quem Orwel não vê não pode mandar matar. Ela não deixaria que isto acontecesse com o Peter.

_ Dário! _ chamou Guilherme _ Vai até nossos alojamentos, pegue os explosivos e as pistolas viper, municie tudo, mas deixa tudo escondido nas sacolas, e leva prá gente na ponte de comando, ok?

_ Ok, estou indo. _ Inclinou-se e roubou um beijo dos lábios perfeitos de Clarisse, que lhe acariciou rapidamente o largo tórax. Ele se foi olhando para ela, uma certa malícia sedutora no olhar, ela sorria, interessada em descobrir, depois da missão, se tudo corresse bem, exatamente o que aqueles olhos queriam dizer.

_ Doutora Clarisse! _ Chamou Guilherme, sardônico.

_ Sim, doutor? _ suspirou ela em resposta.

_ Estou com ânsia de vômitos com essa melequeira entre você e o intelectual do Dário. Pode me receitar algo para o estômago?

_ Curare, lhe faria muito bem Guilherme. _ Foi a resposta sorridente de Clarisse. _ Morda a língua e vai se autoministrar a dose perfeita. Talvez um pouco de quinino também...

_ Aiiieee... _ Fez Milena, encarnando meio infantilmente e sorrindo.

_ O que cê disse, Milena? _ Perguntou rispidamente Guilherme.

_ Nada... _ Respondeu ela, em uma voz minúscula.

_ Podemos ir para a ponte de comando agora, meus amigos? Onde está o senhor Dário? _ Foi perguntando Peter assim que se desvencilhou no caminho de uma senhora sexagenária, mas tão enxertada geneticamente que passaria por uma deusa platinada do sexo de no máximo trinta e poucos anos, e chegou até eles.

_ Claro, Peter! _ foi respondendo Guilherme sem tirar os olhos de Milena, que tinha um ar suplicante _ Vamos indo, Dário vai nos encontrar lá.

_ Está bravo comigo? _ perguntou Milena em uma voz ainda mais miúda e sumida.

Guilherme a ignorou completamente e foi saindo pela escotilha que dava em direção à ponte. Peter imediatamente foi dizendo as garotas, baixinho:

_ Ainda bem que tenho dois braços, senhorita Clarisse... _ e Clarisse lhe tomou o braço esquerdo, gentilmente estendido, indo Milena ao braço direito _ Milena... Obrigado.

Foram caminhando em direção à escotilha, e Cavalheiro foi falando, jovial:

_ Estamos todos tensos. Quando tudo isso acabar bem, gostaria de convidar ambas para conversarmos bastante, rirmos bastante, e tomarmos um ou dois drinques deliciosos que sei fazer. O Centro Cultural Mark Twain, no Domo Lunar I, tem um fantástico bar panorâmico, que pertence a um amigo meu, ele tem uma sócia que é uma garota linda e excepcional que canta um jazz com uma voz que é um primor. Que voz! Quase tão sexy quanto a sua, doutora. Vocês duas vão adorar a música quase tanto quanto aos meus drinques. Aprendi com um barman que parece mágico, de tão artísticas que são suas alquimias saborosas. Um grande amigo... Estão silenciosas assim porque? Estão preocupadas comigo? O amigo falastrão aqui não se sairia tão bem em uma aventura quanto vocês?

Milena e Clarisse, cada uma a seu estilo, mas ambas excelentes corações, estavam de fato preocupadas com a segurança de sir Peter. Elas se entreolharam, e para Cavalheiro, que, enquanto deixava as jovens passarem a sua frente, pela escotilha que dava ao corredor imponderável, arrematou:

_ Você duas, minhas belas, vão se surpreender com a agilidade deste amigo aqui quando está em perigo. Só não fugirei imediatamente se a segurança de vocês estiver comprometida! Eu as colocarei para escapar, e fugirei logo em seguida!

...

Por mais que tentassem, não foi possível colocar a Memphis na eclusa. Havia um sem número de destroços na superfície de atracação, e teriam de limpar tudo antes de colocar a nave de passageiros ali, que caberia “na conta”. Através de instrumentos puderam calcular, Calvert e Pasquini, que a Memphis tinha poucas chances de uma colisão ali, bem próxima como estava do casco da Esfera Barnal.

_ Senhores, senhoras, teremos como prioridade localizar o sistema que está inviabilizando rádios e radares, _ Disse o capitão Yann _ e vamos desativar o tal sistema. Depois teremos que cortar o sistema propulsor, e finalmente vamos ter algum trabalho manual, pois somente os robôs não darão conta rapidamente de retirar os detritos que impedem a Memphis de atracar. Creio que o prazo de 24 horas que fixei deva ser suficiente.

Todos estavam perfilados, na companhia de seis robôs optoeletrônicos leves, na eclusa de ar para Extra Veicular (EV) da Memphis, que ficava logo abaixo da cabine de comando. Dário trazia consigo uma pesada e resistente bolsa, que explicou (e mostrou superficialmente) a Yann ser material de trabalho mecânico, eletrônico e hidráulico. Clarisse ouvia atentamente o capitão, enlaçada à cintura de Dário. Milena olhava sorrateiramente para Guilherme e tinha uma mão dada a Peter. E o próprio Borges balançava a cabeça, impaciente, enquanto acariciava o pequeno retângulo no bolso externo de seu traje espacial, um artefato explosivo bem mais poderoso do que o tamanho sugeria. E era apenas um dentre muitos guardados na bolsa com Dário. Indiferente a impaciência de Guilherme, Yann estava concentrado nas medidas de segurança.

_ Só estou permitindo este EV aos senhores e senhoras devido às circunstâncias e devido ao fato de suas fichas observarem que todos sabem usar trajes espaciais e têm alguma experiência em EV. Mas convém lembras as normas: ninguém fica sozinho, qualquer parada ou afastamento do grupo deve ser avisada e só ocorre com minha permissão e com a companhia de pelo menos mais uma pessoa e um robô. Ninguém fica sozinho. Todos devem observar a cada quinze minutos os sistemas de seus trajes, em caso de falha, qualquer uma, mínima que seja, avisem, que voltamos imediatamente para a Memphis. E enquanto estivermos passando da Memphis para a Esfera Barnal, vamos sem pressa, no ritimo que eu impuser como o primeiro da fila nos cabos que o nosso robô aqui, ZK-10, estendeu para nós.

Guilherme olha de soslaio pra ZK, e sem aviso solta um:

_ Cóe, Zeca?

Milena começa a rir, tentando cobrir as risadinhas incontroláveis com a mão, mas engole o riso com uma olhada severa do agente Borges. Clarisse fuzila Borges com o olhar, mas ele finge não perceber. Milena se volta para o robô e murmura:

_ Desculpe, ZK, por rir, mas a referência ao seu número de série...

_ Vocês devem ser brasileiros, ou viverem no Brasil, ou em Portugal, geralmente pessoas de língua portuguesa fazem este trocadilho.

_ Ei! Ei! _ Grita Guilherme, agressivo, ao que Milena se encolheu toda _ Eu mesmo peço desculpas a esta lata de sardinha, valeu? Não preciso de intérprete. Desculpa, Zeca.

_ Não se preocupe, senhor. _ respondeu o robô.

_ Bem _ Quase suspira Yann, desanimado com a organização de sua pequena “tropa” que estava mais para “trupe” e prossegue _ Estamos prontos, fechem e lacrem os capacetes. Assim que todos estiverem em condição verde, abro a eclusa.

Yann se surpreendeu com a facilidade com que todos os “civis” colocaram seus capacetes em zero-G, era como se eles fizessem aquilo quase o tempo todo, foi natural. O comandante desconfiou que eles viajavam mais pelo espaço do que estava em suas fichas. Deviam fazer parte de algum consórcio secreto de empresas. Cartéis sempre existiriam, mas seriam cada vez mais discretos, pensava. Pelo rádio ele ouvia:

_ Verde! _ Na entusiasmada voz de sir Peter, o primeiro a lacrar seu traje.

_ Verde. _ Na voz sentida de Milena.

_ Verde. _ Disse o próprio Yann.

_ Verde. _ A voz impessoal de um soldado treinado. Dário.

_ Verde... _ Charmosa em sua irreal timidez, essa era a senhorita Clarisse.

_ Hu-hum! _ Guilherme...

Yann digitou em seu braço comandos para a eclusa de Memphis, que silenciosamente começou a bombear o ar, e logo a seguir exibiu um sinal vermelho. Lentamente a escotilha externa se abriu, e lá estava ele, o negrume frio e assustador do vácuo. Milena sentiu uma pontada triste no peito, e a princípio não soube dizer o que era. Depois se lembrou: Amanda. Havia lembrado da querida amiga que agora seguia sua vida fora da agência e com a memória apagada. Amanda não podia fazer um EV que entrava em pânico. Milena sentiu-se subitamente solitária demais, e um pouco deprimida. Sua melhor amiga na agência tinha se ido embora, para melhor, mas isso não a deixava menos saudosa dela. E seu melhor amigo, Guilherme, insistia em ser tão violento com ela... Milena estendeu a mão e pegou o cabo, ela era a terceira, a frente vinha o próprio Borges, e Yann liderando, atrás dela, Dário, Clarisse e Peter, e a seguir os robôs. Milena pessoalmente os havia checado antes da missão, e todos agradeceram polidamente a checagem. Ela estava feliz que as cabeças estavam girando longe. Pobre gente, seu coração se partia por cada sonho e cada vida perdidos com aquelas mortes.

Clarisse estava pensando nas cabeças. Claro, ela ficava um tanto deprimida, mas tentava pensar naquilo de forma profissional, como agente C7, e especialmente como médica: onde estava o restante dos corpos, isto é, do pescoço para baixo, onde estavam os restos mortais de cada pessoa. Se usasse um esquema parcial de contagem, diria que havia ali umas seis dezenas delas, pelo menos, o que daria, se bem lembrava, cerca de três quartos da “população” máxima de uma Barnal daquelas. Os corpos estariam lá dentro? Infelizmente as cabeças estavam girando em uma órbita mais externa, de modo que não podia examinar de perto o “corte”, se era cirúrgico ou não. A olho nu e a distância parecia cirúrgico. Mas porquê? E o quê fazia aquilo? Estavam pela metade do caminho. Sem respostas para suas dúvidas, ela observava atentamente os sensores médicos de todos. Sua gente estava bem, ansiosa, mas bem. Percebeu, com um pequeno e atraente sorriso, que Dário, além de olhar para ela com aquele olhar que a deixava sentindo-se como uma adolescente, era o que tinha os biorritmos mais elevados, geralmente davam um pequeno, mas perceptível salto quando ele olhava para ela. Ela fazia questão de não pensar muito nos seus próprios números, que também flutuavam, excitados.

Dário parecia inabalável. Muito embora feliz de não ter que ficar estapeando aquelas cabeças para longe de si enquanto galgava (ou descia, no vácuo acima e abaixo são meras convenções particulares) o caminho em direção a Esfera. Aquela esfera parecia lembrar alguma coisa... Alguma coisa submersa... Mas por mais que Dário forçasse não conseguia se lembrar. Olhava para trás de quando em quando, e verificava se Clarisse estava bem. Sabia que ela era muito capaz de se virar sozinha, mas enfrentaria sorridente um Corredor da Planície de Toga com as mãos nuas por ela, custava nada verificar se ela estava bem. Além do mais era sempre uma oportunidade de olhar para ela, coisa extremamente boa de se fazer. Estavam juntos a cerca de um mês. Olhar Clarisse era como observar um jóia que brilhasse mais e ficasse com mais facetas maravilhosas a cada olhada. Clarisse era excitante, sensual, comportadamente sensual, com aqueles olhos de deusa! Aquele corpo maravilhoso, e aquele coração incomparável. Pensando assim, Dário errou a mão no cabo, e pendeu para frente, sendo ajudado pela própria Clarisse que sorria, linda de dentro de seu traje. O rapaz agradeceu, e fez uma pequenina continência para ela. Prosseguiu olhando menos para trás. Yann e Guilherme já estavam na eclusa da Esfera.

Guilherme disse um “idiota” em voz alta, quando Dário errou a mão, mas este o ignorou. Provavelmente babando pela médica de bordo, o maldito clichê de filme B: bravo e rude homem (estúpido) do espaço babando pela linda cientista. Não que a doutora não fosse extremamente “comível”, ah, isso ela era demais, demais mesmo, ela era linda, e se ele tivesse a oportunidade de mostrar para ela um homem de verdade... Cruzou os braços e olhou em volta. A eclusa só iluminada pelos faróis de seus trajes.

“Sombrio. Esses débeis vão demorar demais? Isto está me dando nos nervos. Tenho a sensação de que seria melhor jogar a bomba no fundo e pular fora”, pensava, e se repreendia, pois teria de ter pernas mais fortes que as do agente Danel, um robô optoeletrônico, para se impulsionar para longe dos destroços da Esfera. Além do mais não queria que Milena morresse, e a morte de Clarisse também seria um desperdício de território não explorado. Riu-se de sua súbita vontade de “provar” a doutora, nunca havia pensado tão claramente no assunto, mas era uma hipótese interessante. Bem, ele seria capaz de “comer” a própria Milena, amiga de tanto tempo, porque não “traçar” a doutora?... Que coisa, ele estava ficando excitado com as idéias que lhe vinham à cabeça. Observou os sistemas de controle de seu traje, o oxigênio estava bom. Quando Milena esticou o corpo para por os pés na eclusa da Esfera, e olhou para ele com aqueles olhos de safira e expressão de menina abandonada, e ele começou a imaginar umas cenas quentes de “perdão” para ela, engoliu em seco, e foi andando para o fundo da eclusa. Queria terminar logo com tudo aquilo, as coisas o estavam deixando fora de controle.

E foi justamente vendo Guilherme lhe fitar nos olhos, fazer outra cara feia, se virar e ir sumindo na escuridão que Milena teve um surto de visão. Ela era dotada de capacidades psíquicas latentes, e estava tendo uma premonição. Começou a convulsionar, caiu nos braços de Yann, que começou a verificar os sistemas do traje dela, pensando que Milena talvez estivesse sufocando. De fato estava, estava sufocando ao “engolir” o futuro. Lá estava, borrado e em tons sangrentos, Guilherme, ele a estava agarrando, e atrás dele, bem atrás dele, uma coisa horrível, um homem de pé, com uma armadura grotesca, uma enorme capa, mas ele não possuía cabeça, e mesmo assim Milena podia sentir o cavaleiro sem cabeça sorrir, muito satisfeito por ter mais uma vítima em suas mãos, era como se seu sorriso fosse feito de chamas infernais, e queimasse no fundo da alma dela. E Milena sentia os dedos de Guilherme machucando sua cintura, e as unhas dele arranhando seu busto ao tentar lhe rasgar o vestido, mas estava paralisada de medo diante do demônio atrás dele, e nem sequer conseguiu gritar quando a criatura ergueu uma estranha e pesada cimitarra em brasa e a desceu em um movimento bruto e circular, e sangue jorrou no rosto de Milena. A visão se desfez, e Milena gritava. Mas então ela se calou, e ouviu.

_ ... Voltar! _ Gritava Yann ao rádio _ ZK, leve Milena rapidamente a Memphis, e vamos todos voltar agora.

_ Não! _ gritou Guilherme, ao que o robô, que já se adiantava célere, estacou _ Ela está bem, se não me engano. Clarisse, verifique se Milena teve apenas um daqueles “inofensivos” ataques dela. Vamos, doutora.

Clarisse, que mal tinha colocado os pés na eclusa da Esfera, já estava medindo os dados biométricos de Milena à distância assim que ela começou a passar mal, mas sem responder a Borges, se atirou junto com Dário e Peter sobre Milena, que já estava melhorando. Assim que teve certeza de que a saúde física de Milena estava bem, levantou o polegar, sinalizando isto. A doutora então falou com a moça no colo de Yann:

_ Querida! Milena, você está melhor? Foi uma visão?

_ Visão?! _ Fez Yann, mas sir Peter fez um sinal para que ele ficasse em silêncio.

_ Oh, desculpem, sim, sim, foi sim, Clarisse. Obrigada por cuidar de mim... Guilherme, onde está? Onde está Guilherme?

_ Estou aqui. _ Disse Borges, monocórdio, à distância. Ele próprio tinha um mau pressentimento.

_ Guilherme, venha cá... _ E ela foi se levantando, ao que Guilherme se aproximou. Milena, olhando os olhos do amigo com seus próprios olhos expressando uma terrível confusão, e dizendo _ Você vai... Vai tentar me... Tocar? A força... Porquê?

_ Milena, escuta, isso seria impossível, claro que não era eu...

_ Era sim, mas espere... Eu vi, Guilherme, vi você morrendo... Decapitado. Bem na minha frente, vi sua cabeça cair no chão, cortada por um... Cavaleiro sem cabeça...

Borges não pode evitar levar a mão enluvada do seu traje espacial ao próprio pescoço, e de engolir em seco.

...

_ Do que ela está falando? Ela está delirando? _ Perguntou, atônito, o comandante Yann.

_ Não Yann, ela... _ Começou Clarisse, se cobrando imaginar rapidamente um modo de esclarecer o comandante _ ... Ela tem um pequeno distúrbio tratável com terapia química, e acabo de ordenar ao traje dela que injete a substância necessária. Infelizmente a dosagem é variável, e às vezes acontece este surto, elas está nervosa, mas em um momento ou dois ela vai ficar boa.

Virando-se para Clarisse, Yann diminuiu suas luzes, e Clarisse as dela, de modo que não se cegassem, mas ainda assim, Yann estava de costas para os outros, que, com suas luzes, faziam com que a doutora visse quase que uma silhueta do comandante da Memphis, que então falou:

_ Doutora, eu preciso que assuma responsabilidade médica por esta moça. Tem certeza absoluta que ela não corre riscos aqui? Meu Deus, porque não me avisaram sobre isto antes?

_ Eu assumirei as devidas responsabilidades.

_ Tem certeza disto? _ Perguntou mais uma vez Yann, com toda a veemência, conectando um canal privativo com a médica _ Se achar que temos a menor possibilidade de perder esta moça, abortamos a operação agora.

_ Eu. Bem, de fato creio que ela não representa risco para si mesma, esteja certo. _ afirmou a Médica, sabendo que o risco da morte havia para qualquer um, durante uma missão C7, o próprio Yann poderia morrer. Lá ao fundo, Milena e Guilherme conversavam agora em canal privado, e Dário tentava manter Peter ocupado, muito embora ele não fizesse força para se intrometer. A doutora achou por bem completar para o comandante: _ Mas eu ficarei de olho nela.

_ Muito bem, Claris... _ E no segundo em que Yann iria completar o nome dela, a médica viu um fino risco alaranjado, ígneo, cruzar o ar a sua frente. Ela acompanhou, petrificada, quando o capacete do traje de Yaan se desprendeu do resto do corpo e girou no ar, na microgravidade da Esfera Barnal. Foi como se ela visse a cena de fora, se assistisse de longe, e conjeturasse como médica o evento: “algo secionou a cervical pouco abaixo da base do crânio” _ pensava enquanto seus batimentos cardíacos aceleravam, tudo acontecendo em um momento, mas parecendo ficar em câmera lenta _ “O objeto cortante era também cauterizante, a julgar pelo brilho quente que emitiu e pelo enegrecimento da junta do capacete... Oh, meu Deus... Oh, Deus!” _ Em um movimento inconsciente de agente treinada, ela levou a mão ao bolso externo de seu traje onde havia escondido sua pistola de agulhas explosivas, mas seus dedos se paralisaram quando ele surgiu sob a sua luz...

Era mais que simplesmente um ser disforme, o Cavaleiro sem Cabeça, havia nele uma impressão tão horripilante, tão cruel e desdenhosa, que parecia enregelar o sangue. Clarisse queria gritar por socorro, já que na fração de momento em que tudo aquilo acontecia os outros pareciam distraídos. Mas ela não pode gritar, simplesmente não conseguia. Clarisse apenas observou quando a enorme criatura se chegava ao corpo de Yann. O monstro parecia envolto em um manto e em uma armadura virulenta e putrefata, sob a qual jazia um corpo maligno e bruto, alto como poucos homens poderiam ser, calculava em seu pânico que se ele não tivesse metros e metros de altura, era no mínimo tão alto quanto Danel, o robô agente. A criatura, sem face, medonha e mortal, “sorriu” de algum modon para Clarisse, que sentia ânsias de vômito diante do horror sardônico da coisa, e se abaixou, agarrando o capacete de Yann que lentamente já tocava o solo. O Cavaleiro girou sua cimitarra e a embainhou com tal perícia como se fosse o mais exímio dos espadachins, e agarrou o capacete com uma das mãos, enfiando a outra com brutalidade dentro do elmo, arrancando de lá aquilo que havia sido a cabeça do criterioso comandante da Memphis. O Cavaleiro a examinou por um segundo, como se a farejasse. O caçador e sua presa morta. Clarisse, em pé e com a arma em punho, mal batia no peito da coisa, que voltou a desembainhar a espada curva, e se virou novamente para ela.

_ Clarisse! _ gritou Dário pelo rádio.

_ Deus do céu! O que é isso? _ Fez Milena, sacando sua arma e disparando contra o vulto enorme que segurava uma cabeça decepada em frente à Clarisse (Milena levaria ainda mais alguns segundos para se aperceber da morte de Yann). A bala explodiu contra a lâmina do Cavaleiro, que a girou e a posicionou como um escudo sem sequer “olhar” para trás. Ele fez o mesmo com outros seis disparos, dois de Milena, que só parou de atirar quando viu o olhar morto e vitrificado de Yann na outra mão da criatura, e quatro balas disparadas por Dário. Nenhum projétil passava sem ser interceptado pelo monstro com sua lâmina.

Clarisse, que havia reassumido o controle de seus nervos, deu um passo para o lado, mirou e disparou contra o Cavaleiro sem Cabeça, agora de costas para ela. As agulhas de sua pistola encontraram o alvo, mas explodiram como se estivessem gerando suas bolhas de fogo dentro de uma massa de vermes e sangue putrefato e coagulado. Uma fumaça negra turbilhonou no ar, das costas do monstro, que com um giro mais rápido que os sentidos humanos poderiam acompanhar agarrou Clarisse e a girou por cima de si, atirando-a contra os outros. Dário pulou para frente, em direção a ela, e girou no ar, abraçado com Clarisse, caindo bem em frente à criatura, que ergueu bem alto sua apavorante lâmina e parecia prestes a cortar o casal ao meio, quando os seis robôs, entre eles ZK, saltaram sobre o ser maligno. Dário, acudido por Guilherme e Milena, arrastou uma tonta Clarisse para longe do monstro, que se engalfinhou em uma luta brutal com os optoeletrônicos. O próprio ZK, antes de ser partido em três pedaços, enviou um aviso por rádio aos outros:

_ Fujam, não temos idéia do que seja isso, só de que não é humano, e vamos detê-lo, mas fujam. Há um pequeno compartimento estanque no fim da eclus... _ e se desfez em uma chuva de fagulhas com dois golpes do Cavaleiro, que em pouco tempo havia liquidado todas as máquinas.

O compartimento estanque ficava de fato no fundo da eclusa, e dava para o interior da Esfera, que os instrumentos indicavam ter atmosfera respirável em pressão adequada, mas só dava para um passar de cada vez. Colocaram Clarisse primeiro, e se voltaram para trás, para ver o Cavaleiro caminhar com passos firmes até a borda da eclusa, e atirar a cabeça do capitão precisamente contra a Memphis, e com tal força e em tal ângulo, que “Yann” ricochetaria e iria fazer parte do cemitério orbital de despojos da criatura maligna. Enquanto a coisa fazia aquilo, Milena gritava:

_ Onde está Peter?!?

_ Não sei, vai você agora, Milena! _ falou Dário.

_ Não, vai você, DiFalco, Clarisse pode estar precisando de você. _ Respondeu Milena.

_ Isso mesmo, Dário, não discuta, e vai cuidar da tua garota! _ falou Guilherme, com seu habitual pavor controlado na voz. A agente Ramirez sentia prazer em ver a coragem e a humanidade que Guilherme costumava apresentar naqueles momentos difíceis, e jamais disse a ele, mas ela se sentia orgulhosa e protegida por ele, mesmo quando o tinha que salvar (e já fizera isso várias vezes), porque se sentia inspirada a lutar sem desistir ao lado dele.

Dário entrou, sem mais discussões, e o compartimento se repressurizou. Diante deles, a criatura batia com violência mecânica contra o cabo que prendia a eclusa da Esfera a eclusa da Memphis. Fez isso impiedosamente, malhando o cabo com sua cimitarra até que ele se partiu, e então o Cavaleiro voltou sua fúria precisa e mortal contra a própria eclusa, e começou a arremessar imensos pedaços de metal contra a Memphis. E ao que parece Calvert e Pasquini “entenderam o recado” e afastaram a nave mais alguns quilômetros da Esfera.

_ Guilherme, eu preciso encontrar Peter!

_ Milena, se você não entrar agora neste compartimento estanque, entro eu, eu estou falando sério!

_ Mas Guilherme, o pobre...

_ Entra! Você sabe que se você não entrar eu não vou sem você, caralho! Vai matar nós dois!! Eu prometo olhar tudo antes de entrar, se vir Peter eu salvo o cara, agora vai! Vai!

Borges havia aprendido com o tempo que tipos de argumentos eram irrefutáveis para Milena, e ela entrou, mesmo terrivelmente consternada, no compartimento estanque, que se repressurizou. Guilherme olhou de volta para a criatura, que não estava mais lá... Havia somente escuridão por todo o canto, e o som irregular e apavorante de sua própria respiração, além das batidas fortes e surdas de seu coração a ribombar nos ouvidos. Arma em riste, Borges perscrutava a eclusa aos pedaços, a procura do monstro e de sir Peter. Como não visse nada, chegou a conclusão de que não iria se arriscar mais, e com uma mão trêmula, acionou a abertura do compartimento estanque, e já ia entrando quando finalmente viu no chão, a um canto próximo, sir Peter, que convulsionava, seu traje aberto por um feio corte no peito. Não havia sangue, mas ele estava já quase sem ar. Como ele estivesse perto o suficiente, Guilherme agarrou sua perna e o puxou, tarefa fácil na microgravidade, e o empurrou para dentro do compartimento estanque, fechando-o. Não estava certo de que estava fazendo o melhor, mas salvou assim mesmo o almofadinha, pois havia prometido à Milena. Mas teve de ficar só mais uma vez. Não ousava olhar para trás, para ver se alguém abria o compartimento do outro lado e retirava Peter, nem ousava usar mais o rádio, era como se qualquer movimento ou sinal fosse trazer a espada do monstro para sua garganta. Milena o tinha visto morrer com a cabeça decepada... Certa vez Milena viu Guilherme ser baleado, e ele mesmo, pouco depois, ajudou para que o fato acontecesse, e aconteceu. Milena às vezes tinha visões confusas, mas raramente errava. Entretanto, havia um porém, que Borges não sabia se o deixava mais aliviado ou não: também segundo Milena, Guilherme seria decapitado enquanto tentava estuprar a própria agente Ramirez. Ele jamais faria isso!

Finalmente, depois de uma “pequena” eternidade, a escotilha do compartimento estanque se abriu para ele. Guilherme entrou, lacrou a escotilha por dentro, e esperou o sinal verde de pressurização completa. Assim que tinha atmosfera, arrancou o próprio elmo, e respirou fundo. O terror o estava sufocando. Pressionou o controle que abriria a porta que dava para dentro da Esfera Barnal. Foi quando a espada ígnea do Cavaleiro sem Cabeça rasgou a escotilha que dava para a eclusa no vácuo e fez um terrível talho no braço esquerdo de Guilherme, que viu o próprio sangue transformado em um borrifo escarlate com a despressurizarão súbita do compartimento estanque, a tingir as paredes de vermelho. Toda a pequenina sala tremia, rangia e convulsionava. Pouco depois Borges, em agonia, havia perdido os sentidos.

...

_ Qual Icabody Crane, desperta para uma história de horror só tua, doutor Borges.

Guilherme de fato começava a recobrar os sentidos, confuso e tonto, e viu diante de si uma bela jovem, de longos e anelados cabelos loiros, a sorrir. Atrás dela, o almofadinha do Peter. A moça foi dizendo:

_ Não sei o que quis dizer, sir Peter, mas certamente ele está despertando. Olhe, que bom. O belo moço desperta de seus pesadelos.

_ Acho que ele quis dizer que estou acordando para um pesadelo, garota. E eu não duvido disso. Creio que me arrancaram o raio do braço. Ei, loira, você daria para um aleijado?

_ Calma, calma, _ começou Peter, tocando o ombro da moça que pareceu ruborizar diante das palavras rudes de Borges _ Ele está febril e delirando, doce senhorita Van Mildhgard. Não se assuste. E você, meu bravo e arredio rapaz, está com seu braço onde deveria estar, devidamente cuidado.  _ E com tom de poucos amigos, acrescentou: _ Devia guardar tua grosseria também em um lugar justo e adequado.

Guilherme agarrou a camisa de Peter, que estava sem jaqueta ou paletó, apenas a camisa branca do tipo bata por dentro da calças de tecido negro terminando em botas lustrosas, a camisa estava com as mangas longas dobradas ao meio dos braços. Guilherme puxou Peter para si e o encarou, dizendo:

_ Olha aqui, seu almofadinha filho de uma puta, eu salvei sua vida, não me vem me mandando enfiar minha grosseria na bunda não, senão eu enfio ela na tua, ok?

_ Doutor, _ Principiou Peter lentamente _ Pois estamos quites, lá embaixo vai poder confirmar com os outros que fui eu, com a ajuda da doce Milena, que o arranquei do compartimento estanque pouco antes de ele explodir. E tire as mãos de mim, fedelho, senão eu arranco sua cabeça!!

Ambos ficaram se encarando, sem piscar, até que senhorita Van Mildhgard os apartou, dizendo:

_ Cavalheiros! Por favor. _ Pegando na mão de Borges e pousando sua outra mão no ombro de Peter _ Temos um problema urgente para resolver: o que faremos para sobreviver ao Cavaleiro sem Cabeça?

Guilherme se lembrou imediatamente de tudo e percebeu que estavam no meio de uma das mais arriscadas missões das quais já participou, e, embora estivesse desconfiando cada vez mais de Peter Cavalheiro de Toledo, sabia que não era bom brigar agora. Teria uma oportunidade mais tarde de pegar o sujeitinho, quem sabe pelas costas, afinal não estava nem um pouco a fim de testar a força do homem, se isso não fosse muito necessário. Soltou Peter, diante do fraco esforço da jovem Van Mildhgard, e se sentou na cama, logo dizendo:

_ Não tenho medo de você, seu imbecil. E o que estou fazendo aqui?

_ Em seu atual estágio de conhecimento, deveria ter, acaso fosse inteligente. Mas ao que interessa: você está na casa dos Van Mildhgard, esta é Hilda, filha do dono desta fazenda, senhor Erold Van Mildhgard. Estamos sendo acolhidos por esta família, uma das vinte e quatro famílias que vivem nesta Esfera Barnal, que descobrimos se chamar Sleep Hollow. Preste bem atenção, todos nós fomos acolhidos, tratados e alimentados por esta boa gente, e você destrata a filha mais nova e mais doce desta casa, a senhorita Hilda. Deveria ter vergonha disso, doutor!

Guilherme fez uma cara de aborrecimento, depois deu de ombros, mas por fim prestou mais atenção a moça, bonita, extremamente jovem, aparentava algo em torno de seus 20 anos, talvez menos, e tinha uma beleza vitoriana (mesmo, já que estava usando um vestido de tecido moderno, mas longo, e com corte demasiado sóbrio para que Guilherme saboreasse claramente as formas dela) e hipnótica. Finalmente, simulando um pequeno e tímido sorriso, e pensando em luxúrias, o agente Borges olhou para ela (que lhe sorriu de volta) e disse:

_ Desculpe, senhorita Hilda. Fui muito mal tratado pelo tal Cavaleiro sem Cabeça, e bati a cabeça também, portanto agradeço que um anjo como você tenha cuidado de mim, ok?

Parecendo satisfeita, ela abriu um radiante sorriso, e foi dizendo, caminhando em direção a porta do aposento sem tirar os olhos de Guilherme:

_ Oh, que ótimo que está se recuperando, doutor Borges. Devo ir agora, e preparar a mesa para a ceia. Fiquem e conversem. E não briguem, está bem?

Assim que ela fechou a porta, Guilherme foi dizendo a Peter:

_ Ce ta comendo a garotinha? Porque se estiver, tudo certo, eu prometo que não tento nada, mas se não estiver, fica mais fácil para eu comer ela. Ou eu deveria dizer “cear” ela, para ficar mais elegante?

_ Ela parece de fato interessada no senhor, quando entrei, estava beijando seus olhos.

_ É? Como assim? _ fez Guilherme, animado e debochado.

_ Um hábito antigo, doutor, _ Respondeu Peter, ignorando propositada e completamente o tom do outro _ Que significa o desejo que o adormecido tenha sonhos doces, e que acorde logo e bem disposto. Parece ter funcionado com o senhor, ao menos no que tange ao apetite sexual.

_ Fedelhos nunca broxam como os velhos, cara. Onde estão os outros? O que está acontecendo aqui?

_ Preferia que não fosse assim, mas como o senhor é o líder deste seu grupo de amigos, vou lhe contar o que aconteceu.

E Peter começou a descrever o ocorrido depois que Borges desmaiou: assim que passavam da comporta para a atmosfera interna da Esfera Barnal, todos percebiam que estavam no eixo rotacional da Esfera, mas que a plataforma em que estavam (que simulava um grande afloramento rochoso, dentro do qual ficava e eclusa onde haviam sido atacados pelo Cavaleiro sem Cabeça) era diminuta no topo, e não comportava a todos, então os que iam chegando iam descendo uma escada de mão de ferro rústico. Pois, ficando para trás, e aguardando ansiosos que Guilherme escapasse, os próprios Peter e Milena perceberam que ele estava em apuros, e arriscaram destruir a atmosfera interna da Esfera arrancando ele de lá. Conseguiram tira-lo sem comprometer a atmosfera interior, e, carregando o desfalecido Guilherme escadaria abaixo com muita dificuldade, se uniram aos outros. Após quinze minutos de caminhada no chão arborizado e gramado da parede interna da Esfera, com sua pequena, mas muito útil gravidade, encontraram a primeira fazenda, das três que existem ali, justamente a dos Van Mildhgard, que os acolheram, e ficaram espantados, muito espantados, porque desde que a Sleep Hollow foi lançada, há três anos, nenhum contato externo havia ocorrido. Mas até onde o grupo recém-chegado pode perceber, eram pessoas muito hospitaleiras. E falantes: explicaram rapidamente que de fato um mal tenebroso os estava perseguindo há seis semanas, o tal Cavaleiro sem Cabeça, criatura horrível, que estava caçando um a um os cidadãos da Esfera e cortando suas cabeças. Ninguém sabe de onde veio o demônio, o que ele é, ou o que quer.

_ Mas, Peter, _ Perguntou enfim Guilherme _ Que diabos é este lugar? O que eles estão fazendo aqui?

_ São como os antigos Hamishe, já ouviu falar? Um povo que é avesso a quase tudo que é tecnológico, e se retiram para uma vida mais simples. Essa gente, que se intitula Doze Filhos de Eva, são uma comunidade nestes moldes, só que para escapar da Terra ultratecnológica tiveram de usar a própria tecnologia para construir esta pequena ilha, e colocar seu pequeno Éden, a Sleep Hollow, em órbita do sol, como um pequeno planeta só deles. Pretendiam passar pelas rotas comerciais entre Terra e Marte a cada seis meses e se abastecerem ali, e estavam indo bem com seus planos, quando há algum tempo o Cavaleiro apareceu.

_ E quanto ao sistema que inviabiliza o uso de rádios e radares, eles já o desligaram?

_ De fato ainda não, a Memphis ainda é prisioneira da Sleep Hollow, pois os Filhos de Eva não sabem nada sobre tal aparelho. Teremos de encontrar o equipamento nós mesmos. Neste instante o senhor Erold convocou uma reunião com os líderes da cidade, e nos aguarda no salão principal. Os outros já estão lá. Passei aqui apenas para ver se o senhor estava bem, mas já que despertou, que tal descer e se interar? Vai descer? Acho que podemos suportar, mas ao menos ponha uma roupa que o deixe apresentável, eles nos emprestaram algumas, e o senhor não pretende decepcionar logo de cara as moças com quem flertar, lhes mostrando tão poucos atributos, não é, fedelho “imbroxável”?

Peter Cavalheiro saiu, e só então Guilherme percebeu que ao se sentar escapuliu de debaixo dos lençóis, ficando exposto, totalmente nu.

_ E ele deve ter a mesma idade que eu... Filho da puta manja-rola... _ Foi a única coisa que ele pode dizer, sem muita convicção.

...

Dário observava a reunião em silêncio, e apenas meneou a cabeça quando Peter voltou, e o cumprimentou, juntamente com todos os outros. As pessoas se reuniam no salão da casa dos Van Mildhgard, silenciosas e taciturnas. Não hostilizavam os forasteiros, já que a maioria se sentia até muito bem de ver outras pessoas depois de tanto isolamento, presos com o monstro sem cabeça. De fato a chegada de Peter e os outros estava sendo vista como um sinal de ajuda quase divina, para escaparem de Sleep Hollow antes que não sobrasse mais ninguém.

_ Não sabemos nada sobre o Cavaleiro sem Cabeça, _ Dizia Herbo Gonzáles, o prefeito de Sleep Hollow, eleito pela terceira vez consecutiva, e com um tremendo problema público nas mãos nesta sua gestão. _ Mas sabemos que foi ele quem acionou os motores da Sleep e a colocou nesta rota louca para fora do Sistema Solar. Para quê ele quer isso não sabemos, mas talvez seja apenas um enviado do demônio que deseja lançar nossas almas no infinito...

_ Não assuste as pessoas, Herbo, _ Disse por sua vez o senhor Erold, que parecia ser um cidadão muito respeitado por todos _ Creio que as agruras do demônio sempre nos esperam, mas como um povo profundamente crente em Deus, sabemos que Ele jamais nos abandona. E vejam o que nos trouxe Nosso Senhor, um grupo de pessoas para nos resgatar. Eles têm uma nave de passageiros lá fora, que, segundo me informou sir Peter, pode retirar todos os sobreviventes daqui. _ E imediatamente o senhor Erold foi ovacionado por uma entusiasmada gente que lotava a sala de sua casa. Fazendo sinais para que as pessoas se acalmassem, ele voltou a falar: _ Entretanto esta boa gente que se propõe a nos salvar precisa fazer contato com sua nave, e para isso deve poder usar um rádio. Sim, senhores e senhoras, um rádio. E para isso, temos de ajudar eles a descobrirem como fazer para o feitiço do Cavaleiro sem Cabeça que impede o uso desses aparelhos aqui em Sleep Hollow e em suas proximidades.

As pessoas resmungavam e se agitavam. Ninguém tinha a menor idéia de como fazer aquilo, e nem a menor vontade de enfrentar o Cavaleiro sem Cabeça. Mas Dário, que continuava observador, podia ver que as pessoas assentiam positivamente, de modo que ele percebia que a “opinião pública” estava sendo convencida, mais pela necessidade de fuga que pelo falatório do Erold, mas ficou imaginando como aquela gente assustada poderia ser útil. E logo ele mesmo intuiu a resposta: ficando fora do caminho. O agente olhou para o seu lado, e viu Clarisse tão atenta aos fatos quanto ele. Incapaz de não ficar impressionantemente linda, mesmo vestindo a roupa sóbria dos moradores de Sleep Hollow (todos acharam por bem não ficar andando por aí com os colantes que vestiam por baixo dos trajes espaciais), e, como ocorria com freqüência, teve vontade de tocar o rosto dela e beijar sua boca. De fato, Dário teve de fazer um esforço extra para resistir ao impulso, e voltar a olhar para frente (meio segundo depois Clarisse olhou para ele de canto de olho, e deu um sorrisinho maroto de lado, voltando em seguida a olhar para frente).

...

"Sempre a mesma coisa, que enjoados esses dois!", pensa Guilherme quando estava chegando, com a companhia de Peter Cavalheiro, e deu de cara com a cena de Clarisse e Dário trocando olhares sutis.

_ Ao que parece, Dr. Borges, _ Diz Peter Cavalheiro de Toledo _ Eles ainda estão discutindo o problema. E percebo que, hospitaleiros como estão sendo, nos aceitaram como iguais em sua reunião.

_ É. Estando todos fudidos mesmo. _ Murmurou Borges em resposta, quase ao pé do ouvido de Cavaleiro. _ Então é claro que esses caipiras vão aceitar ajuda do pessoal da cidade grande. Vamos ver se conseguimos fazer com que desliguem o que está interferindo no rádio, podemos usar essa boa gente de bucha de canhão.

Entre pensamentos e a observação da cena, Guilherme sabia que precisava dar um jeito em Peter Cavalheiro para poder falar com sua equipe. Não precisou pensar muito para encontrar a distração, a seu ver, perfeita. Milena estava logo ali, sozinha, prestando atenção na conversa.

_ Milena? _ Chamou Borges, olhando curiosamente para os trajes antiquados dela. Usava um vestido longo de anáguas, mas o corpete do vestido, bem justo, deixava sua cintura muita bem feita e os seios bem chamativos.

_Oi Guilherme! Que bom! Você já está de pé! _ A moça começa a falar animada por vê-lo, sem perceber que os olhos dele saltavam de seu colo para seu rosto rapidamente. Ela está feliz por vê-lo, mas se lembra, logo a seguir, que ele está zangado com ela, e também lembra da visão acerca dele,  e sua voz fica triste: _ Eu achei que você dormiria por horas. Como está seu braço?

Milena estava sinceramente feliz de ver o amigo bem, e preocupada com Guilherme, mas muito amedrontada com a visão que tivera. Não conseguia imaginar o por quê de Guilherme tentar... Violentá-la. Como poderia, logo ele, tentar algo assim? Ambos já haviam passado por tantos sofrimentos juntos, e logo agora, numa situação nada confortável, essa visão traz essa tormenta de pensamentos ruins.

_ Sangrando igual a uma bu ... Mulher menstruada! _ Respondia, em seu tom habitual, emendando: _ Culpa sua. Se eu não tivesse ficado para procurar o Peter, nada disso estaria acontecendo. Mas tudo bem, eu supero mais essa!

_ Poxa Guilherme! Você está sempre assim agora, jogando sua raiva em cima de mim! _ Disse a agente, de um fôlego só. _ O que está acontecendo com você? E o que foi que eu fiz contra você?

_ Nada. _ Diz solenemente Guilherme, que de fato não percebe que ela está mesmo pressentido alguma coisa que, de fato, está acontecendo com ele. _ Faz um favor? Leva o Peter pra algum canto porque preciso falar dos explosivos com o Dário. Volte em uns quinze minutos, ok? _ Diz Guilherme ríspido, como quem não se importa em ver Milena com aqueles grandes olhos, suplicando atenção.

_ Você é quem manda... Líder! _ Disse Milena, muito chateada.

A agente acena timidamente, para chamar a atenção de Sir Peter, enquanto pensa no que está acontecendo entre ela e Guilherme. Será que ela o está hostilizando de algum modo, por medo do que viu em sua mente, e seria por isso que ele está tão... Chato com ela? Não, não, ela não estava sendo grossa com ele, ele é quem estava sendo bruto com ela, mais do que o habitual. Nisso ela percebe que Peter se aproxima dela. Ele estava tentando se inteirar do assunto e discretamente deixou que Guilherme falasse com os seus, enquanto, sem que os agentes percebessem, cai propositalmente e prazerosamente na “distração” de Milena, armada por Borges.

_ Eu queria um pouco da sua companhia adorável, Sir Peter, pois meu amigo Borges está mesmo intragável.

_ Minha querida Milena, não leve em consideração nenhuma das coisas rudes que seu amigo está falando. Ele está apenas nervoso por estarmos nesta situação. Não se esbarra com monstros todo dia. Além do mais, sei bem que liderar pessoas é algo desgastante, e se bem o percebi, vocês o elegeram, subliminarmente, o líder. O peso da responsabilidade deve estar deixando ele assim, mais tenso do que estão acostumados a vê-lo.

_ Obrigada, querido Peter. Guilherme realmente não é assim. Deve ser isso mesmo que está dizendo, ele deve estar sob pressão. _ Milena dá um sorriso tão triste que Peter contorce o nariz, numa brincadeira.

_ Oh, minha cara, você precisa se esforçar mais, se quer parecer bem. Por mais que tenha um sorriso encantador, eu sou bom observador, e reconheço um falso sorriso à distância. Algo mais te preocupa, menina?

Disfarçar. Isso Borges fazia bem. Já Milena era uma amadora nesse assunto. Poderia derrubar, sozinha, vários homens armados, mas mentir na cara de alguém não era o seu forte. Ela olhou para o bracelete ainda sem sinal. Pensou um pouco no que podia ou não fazer por Peter, suspirou, e respondeu, contando apenas uma versão da verdade:

_ Tem sim Peter. Como já percebeu, temos que ajudar essas pessoas contra essa... Criatura. Mas, caramba, somos... Meros engenheiros, empresários, essas coisas. Então como lutar contra um monstro assim? Eu, engenheira roboticista, como ajudar? Bem, eu pensei, que tal pedir à eles que me mostrem os desenhos do projeto de Sleep Hollow? Talvez eu possa localizar o aparelho que está bloqueando nossas transmissões. Quem sabe, juntos, não podemos até concertar a Sleep Hollow?

_ Excelente menina! _ Fez Sir Peter, com um sorriso enigmático, apesar de gentil, que não deixou claro para Milena se ele estava falando da sua idéia ou de sua atuação. E diante do sorriso sem jeito dela, Cavaleiro emendou: _ É assim que devemos fazer então. Pedirei a palavra à Van Mildhgard, e explicarei que nossa equipe pode ajudar.

_ Em público? _ Quis saber Milena, acostumada aos sigilos da Agência. _ Não é melhor falarmos a sós com ele?

_ Essa reunião é infrutífera, Milena, e sinceramente, _ Disse Peter, em um tom matreiro. _ Não entendo esta mania de roboticistas, engenheiros e empresários gostarem tanto de sigilo em tudo. Minha querida, eu vou ter te deixar um pouco. Pedirei a localização das plantas desta estação, de seu controle central, e as indicações necessárias a mister Van Mildhgard. Avise aos outros acerca de suas idéias, Milena. É melhor falarmos menos e fazermos mais.

Percebendo que Peter tinha razão, Milena pediu licença um instante e sinalizou para Guilherme, que conversava com os outros a pouca distância. Clarisse quase agradeceu que Milena o tivesse chamado, ela já estava por um triz de esganar Borges.

_Fechado! _ Foi falando DiFalco para Guilherme enquanto tomava uma das mãos de sua namorada, e lhe dizia: _Vamos Clarisse. Vamos pegar a bolsa e dividir em duas. Encontramos vocês aqui.

_ Ok. _ Diz Guilherme, que agora voltava sua atenção para Milena e Peter. O almofadinha estava conversando com os caipiras, enquanto Milena se chegava aos amigos. Milena estava mesmo uma verdadeira senhorinha com aquele vestidinho. E isso, sem ele entender bem o por quê, irritava Borges, como se ela o estivesse provocando.

 _ Peter está arrumando com os colonos as plantas desse lugar. _ Disse Milena assim que chegou mais perto, mas sem olhar na direção de Guilherme. _ Ele acha que uma expedição ao sistema de controle central pode nos ajudar, e eu concordo com ele.

_ Olha aqui, Milena! _ Começou Borges, dedo em riste quase na cara da mulher, ao que Milena jogou seus cabelos negros para trás, e, expressão zangada, encarou Borges, dizendo, o mais rispidamente que pôde:

_ O que foi, Guilherme?!

Os dois estavam de pé, frente a frente, e Milena era um pouco mais alta que Borges. A expressão dos dois era de poucos amigos, e todos os outros, inclusive Dário e Clarisse, que estava quase indo resolver seus assuntos, pararam, na expectativa de um confronto. Milena não conseguia acreditar que justo seu querido Guilherme estivesse ficando tão agressivo com ela a ponto de bater nela. Borges, mais realista que a agente, não acreditava que estivesse se deixando tomar por um terrível impulso interior de submeter a agente, ela o quebraria em dois pedaços. Milena, olhando bem dentro dos olhos do amigo, pousou a mão suavemente sobre o dedo de Borges, e, mudando sua própria expressão para um olhar ainda firme, mas muito mais brando, repetiu:

_ O que foi, Guilherme? Diz pra mim...

_ Eu... _ Disse ele, incerto. _ Não, eu não... _ Então respirou fundo, usando de sua notória capacidade de se recuperar de situações difíceis, recolheu o dedo em riste, e acrescentou, razoavelmente sincero: _ Olhe, Milena, não se zangue, ok? Está tudo bem, eu estou bem contigo. Na boa. Acho que a idéia de vocês faz um certo sentido. Vamos estudar as plantas disso aqui, e depois vamos nos dividir em dois grupos. Um, o de Dário, vai fazer o que mandei, e outro, eu, você e Peter, vamos dar uma olhada nesse centro de controle, certo?

...

(Continua....)


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