Projeto Foice
Importante: Este texto foi em verdade escrito em parceria, entre mim e meu caríssimo amigo Fabio Farzat, e em meu Google Docs data de 07-10-2008, mas provavelmente é anterior.
RPG:C7
Projeto Foice
Autor: Fábio Farzat
Revisão: Wagner Ribeiro
Como
em toda vez que esse tipo de sensação percorria seu corpo, Guilherme
estava numa fria. Ele tinha consciência plena de que adquiriu esse
problema sozinho, como praticamente todos os outros problemas que tinha.
E lá estava o doutor Borges, agora respeitado dentro da Agência, com status de necessariamente vivo,
indo para mais um dia trancado em um laboratório com suas "cobaias"
aterrorizantes e poderosas, agora presas e sem poder fazer mais nada
contra ninguém.
Mas
isso não lhe dava nenhum conforto a alma. Muito pelo contrário.
Guilherme conhece a extensão do poder de Marcos Stone, um psiônico
renegado, aberração entre as aberrações, e Borges sabe o que ele vai
fazer quando conseguir fugir. E vai conseguir, esta é a pior
parte. Por vezes durante esse último ano de aparente calmaria na Agência
conhecida como C7 em que ele trabalhava, Guilherme acordou tendo
pesadelos com a fuga de Stone. Ele próprio cogitou várias vezes a
possibilidade do psiônico estar lhe induzindo a esses sonhos. Mas isso
era improvável. Teria de conseguir pensar, coisa que ele realmente não
conseguia no estado "dolorido" em que sua prisão o mantinha. Stone só
sentia dor e dor, sem fim, mesmo enquanto era forçado por substâncias
químicas a “dormir”.
Ao
olhar para grande tela do seu tablet (ninguém nem mesmo o próprio
Guilherme entendia bem o porque dele próprio gostar de uma tela tão
grande, lembrava as grandes telas de cinema tradicional do século XX) no
laboratório, Guilherme se certificou como fazia todos os dias:
_ Stone ainda preso. Coisinha, refaça todos os testes biométricos de hoje e veja como vai a saúde de nosso "paciente" _ Falou.
Coisinha
era o apelido "carinhoso" que Guilherme colocou na inteligência
artificial que o acompanhava no projeto, que já nem tentava mais dizer
seu verdadeiro nome ao doutor, visto que ele sempre ignora o que ela
diz. Até mesmo as conclusões.
_ O Senhor Stone encontra-se em plena forma física, doutor.
_ Excelente _ disse Guilherme, que na verdade queria ouvir um "tadinho, morreu".
Assim
ficaria bem mais aliviado. Estaria livre para viver sua vida de novo,
visto que praticamente TODOS os agentes, nestes dias de calmaria, tinham
vida e ele ainda tinha que trabalhar nesse projeto até o concluir. Ao
menos continuava informado sobre os passos da Agência e sobre seus
colegas de trabalho. Ao que parece a agência realmente estava passando
por uma fase de quase falência, porque há muito não ouvia falar de
nenhum tipo missão.
_
Vamos lá Coisinha. Continuando com nosso árduo trabalho científico,
quero levantar quais as razões para que o cérebro dele esteja rejeitando
o tratamento químico que estamos aplicando. As enzimas que desenvolvi
deveriam estar agora causando pulsos elétricos fortes o suficiente para
simular um ataque cigarra de baixo padrão. Porque diabos esse preto não reage ao tratamento?
_ Doutor, o nível de atividade cerebral dele está sendo controlado, é possível que se ...
_
O que sua mula? _ Guilherme interrompe a máquina com um grito _
Pretendia me dizer que se liberarmos ele da "terapia de choque" que o
mantém retardado ele reagiria? É CLARO que reagiria e seria para me
MATAR! De forma alguma vamos sequer diminuir a intensidade da dor de
Stone.
Guilherme
tinha sincero pânico de pensar na hipótese de Stone fugir e lembrar que
ele, Borges, era o Responsável por esta pesquisa. Foi baseado nesse
medo que Guilherme levantou mais projetos em cima de poderes de
psiônicos. Nesse momento uma outra equipe estava terminando de construir
mais um "upgrade" desenhado por Guilherme para o agente Daneel, um robô
positrônico que teve seu córtex cerebral modificado por Guilherme e
Fabio Write, o comandante da seção de ciência do C7, com o intuito de
testar algumas habilidades psíquicas descobertas por Guilherme no início
de todo esse projeto.
Com esse novo aprimoramento, Daneel
seria capaz de detectar a utilização de poderes psiônicos ao seu redor,
num raio de ação ainda em testes. E com isso, Guilherme se sentia um
pouco melhor, visto que agência possui um vasto arquivo de psiônicos e
Daneel poderia facilmente detectar QUEM estava usando poderes dentro
daquele raio, através de um exame do espectro do alvo do seu radar.
Guilherme sabia que isso é apenas saber que a merda vem vindo,
talvez descobrir até tarde demais, mais isso o confortava. Ele sabia
que com o aprimoramento desse equipamento para mais positrônicos da
agência, muitos psiônicos iniciantes seriam detectados e capturados mais
facilmente, ou seja, seria cada vez mais difícil usar habilidades
psíquicas sem ser descoberto. Isso deveria melhorar a imagem humana no
quadro evolucionário, onde haveria um certo medo em ser psi e não
orgulho como eles pregam. Nem passava pela cabeça do doutor Borges que
suas idéias pudessem ser fascistas, era apenas sua idéia de
“sobrevivência do mais apto”.
Entretanto,
isso lhe dava um aperto no coração. Milena. Uma agente como ele, na
verdade ela começou com ele na agência, e sempre foi uma grande e fiel
amiga. A única pessoa por quem nutriu algo na Agência, já que ele
próprio não se considerava amigo de ninguém e fiel a coisa alguma. “E o
pior”, pensava, seriamente, “nem gostei dela por vontade de comê-la. Foi
um amor sincero, de irmão e irmã”. Nem Guilherme entendia o porque. Só
que sentia isso, e isso era uma merda. Era seu ponto fraco. E para
melhorar o quadro, Milena é uma psi capaz de prever o futuro, só
que não controla seus dons. O que fez Guilherme de fato acreditar em
poderes psiônicos foi o fato de Milena prever que ele levaria um tiro e
descrever como seria. E de fato Guilherme levou o mil vezes maldito
tiro, EXATAMENTE como Milena descreveu.
E
agora ele sabia que as armas que estava criando poderiam ser
responsáveis pela morte de Milena. Mas, na tentativa de fazer o possível
pela parceira, um dos projetos de Guilherme é, além de deixar a arma em
Daneel seletiva, criar um campo morto para esse tipo de ataque, de modo
que se Milena estivesse por perto, não seria afetada.
Perdido
nesses pensamentos, Guilherme nem percebeu que o computador acusava
reação cerebral aparentemente involuntária em Stone, da forma prevista.
Sobressaltou-se, então, quando o computador o avisou:
_ Doutor, o senhor Stone está reagindo ao coquetel. Não seria apropriado começarmos a medição dos níveis elétricos?
_
Claro, porra! Às vezes eu acho que você é retardado Coisinha. Vejamos
então como o corpo e a mente de Stone reagem. Caso esteja indo bem
comece o processo de extração de energia. Precisamos saber se ele
agüentará gerar tanto poder quanto nós vamos drenar. A propósito, como o
coquetel reagiu justo agora? Faz dias que nada acontece.
_ Doutor, eu simplesmente aumentei a dosagem hoje.
_ Então foi isso. Ok. Agora acabamos de comprovar duas coisas...
_ Sim doutor?
_ Eu estava errando a dosagem, e você é mesmo retardado, Coisinha. Como você pode aumentar a dosagem sem me indagar?
_ Doutor, eu fiz os cálculos e tinha 98,03% de chances do coquetel fazer efeito sem danos mentais.
_
Perfeito, então por que será que não colocam você para ser cientista
chefe dessa merda heim? Ah, será porque você não é criativo o suficiente
para ter idéias e só conclusões? Que merda Coisinha, nunca mais faça
isso. Poderia ter cometido um erro fatal e lá vai o projeto em viajem de
mão única para e puta que te pariu, caralho! Eu deveria...
_ Doutor, com licença, Stone está conseguindo suprir os níveis sem desgaste físico.
_
É, o cara é sinistro mesmo. Caso ele libere um ataque involuntário
agora, mataria qualquer psiônico num raio muito maior ao de Daneel.
Talvez em todo o Rio.
_ Devo interromper o processo e desacordar o paciente, doutor?
_ Não. _ Interrompeu Orwel. _ Prossiga com os teste doutor Guilherme.
_ Claro Orwel. Porque eu o pararia agora não é mesmo?
_
Parabéns agente Guilherme, novamente seus progressos nessa área são
satisfatórios. Tão satisfatórios que acabamos de lhe trazer mais um
espécime para o senhor estudar.
_ Mais um? Porquê, se o Stone, como já provamos, representa todos os tipos conhecidos de psiônicos?
_
Porque este espécime não é psiônico doutor Guilherme. Ele estará sob
seus cuidados a partir de amanhã, quando a equipe que o capturou já
estiver chegado com ele. Ele está sob nossa custódia já há alguns meses,
esperando progressos nos seus estudos com Marcus Stone.
_ Mais se não é psiônico, o que é então? Algum extraterrestre Orwel?
_ Não. Ele é tão humano quanto o senhor, doutor. Deve se lembrar de Ramon, não?
_ Ramon!?!?!? Ué, mas eu pensei que ele estivesse fora a ...
_ Estava, doutor, porém voltou e já o capturamos de volta, visto que, como Stone, ele é um perigo em potencial.
_ Então ele concluiu o trabalho dele Orwel?
Orwel
permaneceu calado. Orwell sabe muito bem como doutor Guilherme vai
reagir à notícia de que possui família de novo, principalmente
acompanhando a mudança de personalidade de Borges após sua amizade com
Milena.
_ Orwell? _ insiste Guilherme, diante do silêncio significante da máquina.
_ Encontramos somente Ramon no local. Nenhuma outra captura foi feita. _ foi a resposta fria.
_ Ah, sei... _ Guilherme caiu em pensamentos sobre sua esposa e filha.
Como
pode ele ser tão esquecido. Às vezes, o próprio Guilherme se repugnava
com sua própria desumanidade. Havia feito um acordo com Orwel, há algum
tempo, sobre trazer de volta sua ex-esposa Júlia (na prática, ainda
casada com ele, pois não houve divórcio, mas sendo que ambos, para o
mundo, eram dados como mortos, tanto fazia seu estado civil) e sua filha
Clara, de onde quer que elas estivessem, e o responsável pela busca foi
o mago Ramon, seu novo espécime. Até onde soube, o mago havia ido
longe, muito longe buscar as duas. No fundo, e Guilherme não confessaria
nem sob tortura, sentia uma incômoda pontada, como se algo dentro dele
se ressentisse e se contorcesse contra sua insensibilidade quanto ao
fato de não obter notícias sobre Júlia e Clara, mas o prático doutor
apenas dava de ombros. Acreditava que tinha feito o que estava a seu
alcance para trazer as duas de volta. Concentrou-se em analisar o novo
espécime.
Assim
como Stone era uma anomalia entre os psiônicos, Ramon era uma anomalia
entre os humanos. Guilherme nunca tinha visto ninguém fazer o que Ramon
fazia, e que o próprio Ramon chamava de magia, com propriedade, visto
que “perverter” e realidade da maneira que o mago fazia, nem mesmo Stone
com todo o seu poder conseguia. Ramon faziam sim, magia. E magia era
algo além da ciência, e o C7 pedia que ele, Borges, estudasse
cientificamente o insondável para a ciência, inferno!
Por
outro lado, chegou a uma interessante conclusão: parecia que Orwel
estava cercando todos os inimigos da Agência. Isso realmente estava
virando um circo dos Horrores. Stone retardado de tanta dor que sentia e
agora Ramon também. Aquilo só poderia acabar mal, e para ele próprio.
Mas
sua atenção agora tinha se voltado novamente para sua esposa e filha,
como se algo em seu inconsciente o tivesse empurrado bruscamente de
volta para elas. Guilherme era o típico sujeito do século XX, que
costumava formar família de forma impulsiva, e de só assumir a
responsabilidade disso tarde demais, e se arrependia. Arrepender-se não
era bem o caso de Guilherme, mas sua mais nova consciência, chamada
Milena Ramirez Martins, sua extremamente nobre e com altos padrões
morais (em resumo, para Guilherme, uma tola) colega, o fez enxergar o
que ele fez com elas. Na verdade, Milena havia tentado deixar claro para
ele que tinha maltratado sua família, e que era desumano da parte dele
não ligar para o destino aparentemente sinistro que as duas tiveram. Mas
Guilherme interepretava livremente os conselhos e pequenos sermões da
amiga, e chegava a uma conclusão mais ou menos assim: ele, claro, não
tinha a menor culpa sobre o fato de as duas irem parar sabe-se lá aonde,
mas tinha de admitir que, embora tivesse se divertido com suas inúmeras
companhias femininas, não foi lá muito certo o que fez enquanto era
casado com Júlia, e deixava esposa e filha para cair na esbórnia, quando
ainda não tinha sido absorvido para a Agência. Por estas considerações
livremente adaptadas das verdadeiras observações de Milena, ele achava
que não seria muito bom ficar perguntando sobre as duas a Orwel, mas se
sentia compelido a fazer isso.
“Ou
Orwel está escondendo algo,” _ pensava, tenso _ “ou realmente elas não
foram encontradas e com elas some minha chance de me... Redimir... Com
elas. Especialmente com Clarinha...”. E pensando assim, perguntou:
_ Ao ser capturado, Ramon não disse nada sobre elas, Orwel?
_ Não. Foi capturado e logo após foi colocado neste estado de privação sensorial por excesso de dor. E assim está desde então.
_ Humm... Será que eu poderia... _ Começa Guilherme, mas Orwel interrompe:
_
De forma alguma doutor, sugiro ao senhor ter a mesma cautela que
percebo que tem com Stone, visto que Ramon não ficará nada feliz com o
Senhor quando souber que está liderando o projeto que o mantém dessa
forma. Sei que não confiaria diretamente em um conselho meu, a não ser
que fosse embasado com argumentos plausíveis, e eis um: o Projeto Foice é
muito importante para mim, devido ao meu entusiasmo com os propósitos
desta Agência, de modo que lhe asseguro, veementemente, que a liberdade
de Ramon será tão perigosa para este projeto quanto para o senhor,
doutor Guilherme, que no momento é fundamental para o desenvolvimento da
Foice.
_
Entendo, Orwel. Então tudo OK, peço que me passe os dados dele para
verificação e o que realmente deseja estudar ou aproveitar nele.
_
Queremos o mesmo que estamos buscando no Stone. Uma arma seletiva
definitiva contra aberrações. Diversas pesquisas preliminares indicam
que “magos” e psiônicos têm uma ligação quanto ao modo como afetam o
mundo em torno de si, sendo que criaturas como Ramon são ainda mais
capazes de distorcer a realidade.
_
Isso _ começou Guilherme sentindo uma estranha amargura _ quer dizer
que temos outros como Ramon por aí? Ele é um entre muitos, como Stone é
um entre muitos psiônicos?
_
Exatamente. Temos inclusive uma seção especial na agência para eles,
chamada Eçaraia. A maioria deles não é dócil como Ramon, são na verdade
violentos e arrogantes. São tão ou mais perigosos quanto psiônicos
renegados, tanto que, enquanto os Gembloux se destinam a treinar
psiônicos para uso da Agência em favor da espécie humana, os Eçaraia se
concentram em eliminar a ameaça desses “magos”. Desenvolva seus estudos,
terá tudo que desejar para tal, temos certeza que seus esforços
resultaram positivamente, doutor Guilherme, tanto para o C7 quanto para o
senhor mesmo.
_ Claro Orwell, afinal o plano de saúde aqui e os benefícios da empresa são maravilhosos.
_
Doutor, há mais de um século os governos aboliram a CLT quando ela se
tornou desnecessária diante da nova economia que privilegia o
desenvolvimento racional e constante do profissional. Não faça piadas
com sua situação, que é a melhor dentre todos os seus amigos.
_
Ih, tá putinho é cara? Num fode, então vou trabalhar um pouco. A
propósito Orwel, preciso de outro Coisinha que esse tá com defeito.
_ Doutor ... _ disse Coisinha. _ Estou 100% operacional.
_ Esse é o teu problema cara. Você é um CDF. Não devia ter aumentado a dose do coquetel sem me comunicar.
_
Entendido, doutor Guilherme. _ disse Orwel, ignorando os apelos de
“Coisinha” _ Substituiremos o seu auxiliar por qualquer outro que
escolher. Fique a vontade.
_ Qualquer outro? _ perguntou Guilherme, sardônico e malicioso.
_
Sim, doutor. Inclusive agentes humanos cujas especialidades o senhor
ache de alguma ajuda. Fique a vontade, tem carta branca quanto a isso e a
necessidade de equipamentos e informações, basta pedir diretamente a
mim. Agora preciso desviar este nível consciente de atenção, mas basta
solicitar que retornarei.
_
Ouviu Coisinha? Posso escolher alguém de verdade pra me ajudar. Eu não
sou dispensááável, você ééé. Máquina filha da puta desobediente. Hum,
quem poderia me auxiliar e me divertir ao mesmo tempo, sendo espezinhado
por mim?
Guilherme
lembrou-se de alguém que ele iria adorar ver puto da vida tendo que ser
seu subordinado. Mas esse alguém não estava mais na Agência. Alex Rhéa.
Guilherme se lembrou de uma briga num avião, onde Alex lhe acertou com
uma bandeja e quase lhe partiu a cara, literalmente. Alex possuía
próteses biomecânicas nos braços, que lhe aumentavam a força. Nada
exagerado, mas o suficiente para arrebentar de forma bastante razoável a
cara de Guilherme com a bandejada. Mas a pancada foi justa, afinal em
meio à discussão dos dois, Guilherme lhe fez o favor de lembrar como
Alex perdeu a esposa num acidente, em uma corrida de carros que ambos
disputavam em equipes opostas (Alex e a esposa eram amantes na cama e
rivais nas pistas): próximo à chegada uma série de acidentes em cadeia
culminaram com a tragédia que incinerou a esposa de Rhéa. Mas diante de
tudo isso, o simpático Guilherme, discutindo com Alex, preferia frisar a
parte onde, no meio do acidente, Alex ficou apavorado e a esposa, em
meio às chamas do seu próprio carro, atravessou a linha de chegada e
ganhou a corrida. Guilherme sentia sempre um certo orgulho de sua
maldade, porque não era uma maldade comum, era tão pervertida quanto
divertida.
_
Bom, como o Alex foi-se pro caralho, vou pensar em alguém depois. Hoje
vou concentrar meus esforços em controlar os níveis de Stone. Ele deverá
ser preciso e fatal com seu alvo. E pelo visto ele consegue gerar
energia suficiente para isso. Mas será que conseguiremos estabilizar
quimicamente qualquer cérebro psiônico?
_
Doutor _ disse Coisinha _ Recomendo convocar alguém que entenda da
química cerebral mais a fundo. Um médico com conhecimento de
neurofisio...
_ Ô porraaaaaaaaaaa, Coisinha! EU! EU! Eu vou escolher quem eu quiser.
_ Claro Doutor.
_ Sua falta de emoções me irrita. Preciso de alguém aqui que fique puto, ou pelo menos tenho amor próprio.
_ Não possuo sentimentos, senhor.
_
Ai caralhooo eu sei!!!! Seguinte: puxa pra mim a ficha de Clarice de
Souza, que acho que pode ser útil. Ela às vezes parece que também não
tem emoção, feito uma máquina, mas quando fica puta!! Ah, que delícia de
histeria que ela tem quando perde o controle, vou me amarrar fazer ela
perder o controle...
Uma
lembrança inusitada: sem sombra de dúvidas, Jussara seria uma excelente
ajuda nesse projeto. Uma médica de primeira linha, a Médica-Chefe da
Agência, e também, por puro talento nato, a maior hacker do
Sistema Solar. Talvez até a estivesse usando como cobaia também, se
Orwel já não tivesse se encarregado dela há algum tempo. Com a ajuda
dele próprio... E Guilherme novamente mergulha em suas lembranças, e vê a
si próprio descobrindo a trajetória dos corpos (então acreditava que
ambas estivesse mortas) de sua esposa e filha, para fora do Sistema
Solar. Atônito e sem entender ele gera uma cópia em disco das
informações e foge com Milena, logo na sua primeira missão como agente.
Só alguns meses depois Guilherme descobre que, naquele dia, No-One havia
inibido Orwel e levado ele e Milena até o lugar exato para que ele
encontrasse tais informações, que se perderam, algum tempo depois.
Naqueles dias Guilherme havia conhecido a atraente doutora Jussara ao
ser atendido, bastante ferido, depois de uma missão, mas nem desconfiava
que No_One (que ele achava ser um homem) pudesse ser a comportada e
objetiva doutora. A Médica curava seus ferimentos, e o alterego dela,
No_One, insistia em ajudar Guilherme e lhe dar dicas, em pouco tempo ele
estava devendo favores ao hacker que sempre se comunicava
por texto através do bracelete do agente Borges. Certa vez No_One
cobrou os favores, enviando-o em uma missão de limpeza (mal sabia
Guilherme que seu destino era esse, a Equipe de Limpeza, a seção da
Agência responsável por perseguir e assassinar em nome do C7): Guilherme
deveria se passar por um Fuzic7 (os fuzileiros da Agência) e então
conseguir uma credencial para acessar um laboratório em um profundo
nível de uma base no subsolo, onde estavam realizando alguns testes com
crianças disformes (Borges acreditava que aqueles eram híbridos que não
deram certo, mas na verdade eram Cinzas saindo do estado larval usando
corpos de crianças clonadas como hospedeiros e sendo submetidos a
tratamentos nanotecológicos para que crescessem controlados pela
Agência, coisa que não funcionou). No_One queria que estes testes
acabassem, e Guilherme foi sua espada da vingança, levando alívio às
crianças em sofrimento, e destruição aos computadores que mantinham
dados importantes e sem cópia que permitiam o andamento daquela
experiência. Mas Borges não fez isso sem seus costumeiros contra-tempos,
como quando esqueceu a credencial dentro do laboratório trancado, visto
que a mesma era a chave de confirmação de saída. Dois robôs enormes
monitoravam a saída do laboratório e eram de pouca conversa. Foi uma das
piores experiências de sua vida, ele quase foi morto. Mas, ferido, foi
parar na enfermaria daquela mesma base, onde a própria Jussara veio
cuidar dele, e encobrir suas “andanças” por um laboratório ultra-secreto
(agora destruído). Depois de uma cirurgia, e de um longo sonos,
Guilherme açodou com o disco, contendo o paradeiro de sua esposa e
filha, repousando na mesinha de cabeceira de seu leito. Curioso como nem
naquele momento ele desconfiou que Jussara e No_One pudessem ser a
mesma pessoa...
_ Doutor? Está se sentido bem? Gostaria de descansar um pouco, parece exausto. _ Disse Coisinha.
_
É, estou com essa cara porque tava pensando numas paradas antigas,
Coisinha. Até hoje não sei como não quebrei o pescoço naquele dia ...
_ Doutor, posso pressupor que esteja se lembrando de alguma de suas missões?
_ Cala a boca cara. Que saco você. Parece um demente. Nunca tive um AI tão escroto.
_ Desculpe Doutor.
_
Tá PERDOADO, afinal você vai embora para a puta que te pariu, e eu vou
pedir um AI de verdade. Falando nisso, ainda não escolhi meus
esparros... Ô, caralho, meus especialistas... Estou pensando, além de
Clarice aquele negão, o... Lázaro, ele também é médico, acho que com
especialização em medicina de exposição ao vácuo ou nanomedicina, pode
ser útil. Puxa a ficha dele Coisinha.
_ Feito Doutor.
_
Vou fazer o seguinte, transfere pro meu Tablet que vou sair. Como EUUU
já tive sucesso hoje em fazer Stone reagir ao coquetel, vou sair pra
beber um pouco e comemorar.
...
O
centro de pesquisas da Agência que continha criaturas mortíferas estava
extraordinariamente próximo a um grande centro populacional no nordeste
do Brasil, e em pouco mais de vinte minutos, sem pressa, Guilherme
estava no Americam Bar de uma boate de baixo nível, com algumas
prostitutas se esfregando nele e muita, muita bebida servida por um
positrônico garçom. Rotina. Beber era como comer para Guilherme. Não
porque era um homem triste, revoltado, traumatizado ou coisa parecida.
Simplesmente bebia. Nunca bebia por algum motivo, só bebia por beber.
Mesmo quando era casado, logo no início, quando gostava de ser casado,
ele bebia. Só por beber. Porque então, agora que sua vida era um
inferno, ele não beberia? Agora, por exemplo, beber era como comer
salgadinhos vendo um filme divertido, e o filme era sobre o
recrutamento de seus espar... Especialistas (estava tentando fazer esse
“erro de pronúncia” parecer bastante natural, por isso estava treinando
tanto para falar na frente deles). Entre seus muitos pensamentos de como
chamar e manter sua nova equipe, o de convencer Clarice é fácil e se
conclui rapidamente: iria ameaçar Dário. O de Lázaro, Guilherme acabara
de descobrir: Luzia Ilíades Coimbra, sua irmã mais nova. Sua ficha é
sucinta em relação à menina, mas parece ser a sua única parenta viva.
Sabendo onde dói, aprendeu o bom doutor na agência, com Orwel, é só
apertar e eles dançam conforme a música. Virou um trago e riu. Dançar...
Como o filho da puta do Stone o fez fazer, balançando-o com sua maldita
telecinese no Domo Lunar, na lua terrestre, há algum tempo... Seu riso
amarelou... O que Guilherme mais odeia lembrar é da Lua, dos Cinzas.
Aquelas criaturas nojentas, que um dia torturaram e quase mataram
Milena, doidas para por as mãos podres nele. Senador, como um deles o chamou no passado. Isso ele ainda não entendia: Senador. Tomou outro trago, e repetiu par si: Se-na-dor...
_
Acho mesmo que devo voltar a ser mais racional. _ dizia ele, entre um
trago e outro, a uma prostituta que estava ocupada demais, na altura da
cintura dele, para lhe dar qualquer atenção _ Por várias vezes essa
história me passou pelos olhos e nunca a investiguei ou questionei.
_
Humm. _ Fez a moça, pensando em uma roupa que iria comprar na tarde
seguinte, com o namorado, em um shopping virtual. Alheio a desatenção da
moça que não podia falar agora, Guilherme continuava:
_
Essa minha mania adquirida na Agência de ser (ou ficar, né?) nervoso
quando estou calmo e calmo quando estou nervoso tem que parar. E vai
parar, eu te prometo!
_ Hu-humm.
_
Ôôô... _ fez Guilherme, sentindo um arrepio que o fez errar a boca com o
copo, e quase derramar seu brandi _ Ahhh, cuidado, meu bem... O fim da
picada foi o Schwartz, aquele filho da puta desgranhento! Antes mesmo de
eu falar algo ele já sabia como se desvencilhar de mim. E pior: fez
mesmo. Ainda passou na minha cara minha vulnerabilidade: Milena! Espere
pra ver quem vai ter que se esconder para usar poderzinhos mequetrefes
quando eu ativar todo o potencial da Foice.
_ Hmmm.
_ Hoummmmm... _ gemeu Guilherme, levantando o copo de brandi para o alto.
_
Senhor _ interrompeu o positrônico garçom, visto que Guilherme havia
pedido outra garrafa de brandi com máxima urgência. _ sua bebida.
_ Deixa e sai, sucata. Já tá pago até o ano que vem e não tenho óleo para dar de gorjeta. Hoummm!
A
garota terminou, ele também, um momento antes. Ela saiu, ele pensou na
maravilhosa praticidade do sexo pago. Ao menos continuava o mesmo
carinhoso Guilherme de sempre. Isso o fazia se sentir um pouco melhor
diante das agruras de sua vida. Ele terminou a quinta garrafa de brandi,
e atinou:
_
Acabo de me lembrar! Clarice não vai gostar nada de trabalhar com o
cara que deu uns “tiros acidentais” nela e a deixou no gelo uns meses.
Mas, se ela não vai gostar, imagina o Dário! _ e inclinando a cabeça
para trás, deu uma gargalhada, continuando a falar com seu copo de
brandi logo em seguida _ Bobeira dos dois, se quisesse já teria comido a
Clarisse faz tempo. Só estalar os dedos. É bem bonitinha, mas não faz
meu tipo. Ela é muito baixinha. Podia ter um pouco mais de bunda também e
falar mais putaria de vez em quando, ela não sabe deixar um homem de
verdade com tesão, só um soldadinho de chumbo feito o Dário.
Devido
a este comportamento anti-social compulsivo, Guilherme não era nada bem
visto pelos outros agentes, mesmo os que entraram na Agência junto com
ele, e já participaram de várias missões com Borges. E ela prosseguia em
seu monólogo, já sinalizando para outra prostituta vir até ele:
_ Até Amanda, _ ele já estava para lá de bêbado _ que cisma de dizer que não foi devidamente tra-ça-da por mim, e que eu esfregueeeeeei meeesmo
na cara, e por isso mesmo, pelo prazer maravilhoso que EU dei a ela,
ela deveria me cultuar. Até ela, Vincentti, toda oferecida para Deus e o
mundo, me detesta, é mole, copo? Só Milena mesmo para me entender,
tomara que ela me explique para mim mesmo um dia, ha, ha! Tudo bem que
Milena gosta de todo o mundo, e seria capaz de perdoar o diabo mesmo que
ele peidasse nos córneos dela, mas eu me esforço tanto prá decepcionar
ela, copo, e ela ainda gosta de mim! He, he, he. Se bem que _ e fez uma
longa pausa dramática, arrotou, ajeitou a gravata e prosseguiu _ Se um
dia ela souber que, prá fugir de um Corredor da Planície, na Cherish, em
nossa primeira missão, eu esbofeteei uma velhinha e mandei junto uma
menininha prá boca do monstro, só prá me safar! Caraaalho, copo, a
Milena me esquece na hora!
Mesmo
“anestesiado” por tanto álcool, muito até para ele mesmo, Guilherme
pode sentir, tanta era sua ojeriza a esta sensação, como se dedos
gelados corressem por toda a extensão de seu crânio, por dentro do
crânio, perscrutando seu cérebro. Havia um Gembloux próximo, e ele
estava deliberadamente sondando o córtex cerebral de Borges,
invadindo-o, violentando-o. O coração do doutor se encheu de fúria cega,
e ele deixou a garrafa de brandi cair, fazendo a segunda moça, que
começava a se ajoelhar a sua frente, dar um pulo para trás, gritando:
_ Ah! Seu babaca escroto!
Sem
dar a mínima atenção à mulher, ele a empurra para o lado, fazendo-a
cair em um sofá, e fecha as calças, ainda sentindo a presença do
Gembloux. Mas antes que pudesse formular o primeiro pensamento coerente,
uma voz lhe disse, dentro de sua cabeça:
“Sei
um pouco de ventriloquismo, se quiser, posso fazer a voz do copo”. _
eram os pensamentos de um jovem psiônico, repletos de diversão pelo
desespero de Borges, que estava se maldizendo por ter vindo desarmado.
“É um dos capangas de Stone!” _ Afirmou Guilherme, tentando controlar o medo pungente.
“Para
sua sorte não, doutor. Me chamo Loki, e sou seu guarda-costas. Me
avisaram na Agência que o senhor não gosta de Contatos Forçados, mas eu
tenho que ter certeza de que não tem ninguém por aqui usando Sondagem
Passiva em seu cérebro. Os caras do Comando disseram que você pode se
divertir o quanto quiser, mas que sabe demais, e por isso não pode ser
sondado.”
“Foda-se
o Comando, que o próprio Orwel vá para o inferno! Sai da minha cabeça,
filho da puta!” _ pensou Borges, violento. Ele realmente detestava ser
“aberto como um livro” daquela maneira.
“Não
seja mal educado, estou cuidando de sua segurança. Rá, rá.” _ disse
Loki, debochado, e continuou _ “Ei, eu já ouvi falar tanto dessa Milena,
que tomei a liberdade, véio, de dar uma olhada nas tuas memórias sobre
ela. Linda mesmo, cara. Muito ‘boazinha’ pro meu gosto, mas eu comia
também, se ela me desse mole!”
_
Onde você está? Toque em Milena e eu te estripo, garoto! _ Disse Borges
em voz alta, o doutor estava mesmo cada vez mais agressivo. _ Sai da
porra da minha cabeça, sua aberração, e venha falar comigo cara a cara!
Loki,
que também não valia muita coisa, saiu do meio de algumas garotas que o
massageavam em um amplo sofá a uns quatro metros de Guilherme, e foi
até o doutor, tocando-lhe o ombro e se esquivando facilmente de um copo
lançado com violência por Borges. Não fosse seu contato com o cérebro de
Borges, não poderia fazer aquela “esquiva” de forma tão perfeita. Na
verdade era uma técnica Gembloux na qual Loki era um especialista:
sincronizar a agilidade física do psi em operação com a do alvo, e,
fazendo isso, antecipar quase todos os movimentos deste alvo,
esquivando-se de quase cem por cento dos ataques. Isso era uma técnica
bem mais difícil do que pode parecer, pois exigia uma interpretação
muito rápida dos processos mentais da vítima.
_
Legal essa espelunca aqui, heim, doutor Guilherme? _ Fez Loki, no tom
mais trivial que pode usar no momento _ As garotas são um pouco velhas
para mim, mas fazem bem o trabalho delas, e são gostosas, cara. Estou
gostando de trabalhar com você, Guilherme.
Recompondo-se
e xingando algumas pessoas que olhavam para ele, após os gritos sem
qualquer motivo aparente, Guilherme perguntou ao jovem Gembloux:
_ Quantos anos você tem, moleque?
_ Algo em torno de 19, véio.
_ Hum? Já matei uma criancinha pequena, você eu vou tirar de letra.
E
Guilherme foi saindo, a passos largos, sem olhar para trás. Loki ficou
observando ele partir, e, como ainda mantivesse Sondagem Passiva do
cérebro de Borges, percebeu que ele realmente o mataria, se tivesse
chance, e achou por bem evitar intromissões tão bruscas no cérebro de
Guilherme, a não ser que fossem muito necessárias. Loki poderia reduzir
Guilherme a uma hortaliça, com um pouco de esforço (não era tão poderoso
quanto seu comandante, Schwartz), mas como fora instruído da
importância que aquele sujeito tinha para a Agência naquele momento,
pensou que seria bom tratar ele com um certo cuidado. Pelo menos até ele
deixar de ter importância. E riu, por dentro, seguindo Guilherme,
mantendo no próprio rosto uma expressão séria.
...
A
relação profissional entre Guilherme e Loki começou tumultuada, como
deu para perceber, mas logo o bom doutor percebeu que era possível ter
algum proveito para os dons aberrantes do garoto Gembloux, e de fato o
próprio Loki acabou por achar divertido seguir os planos mesquinhos de
Borges.
“Ela
está lembrando exatamente agora de ter passado um bom tempo congelada,
enquanto se recuperava dos tiros que deu nela!” _ Disse Loki na mente de
Borges, que pelo prazer de antecipar cada movimento de Clarisse havia
combinado que o Gembloux ficaria fora de visão sondando de forma passiva
a doutora e repassando as reações dela para Guilherme, que usaria as
informações para se divertir com a médica. Borges e Clarisse se
encontravam agora em um restaurante a beira-mar, em Fortaleza, o sol
brilhando nos cabelos castanhos e bonitos dela (que ela teimava em achar
despenteados), que usava um claro vestido, e tinha a pele bronzeada. A
doutora estava passando uma semana de folga no Brasil com o namorado,
Dário, e o bom doutor achou a ocasião perfeita para convidar a médica a
integrar o Projeto Foice. Ciente do ressentimento dela estar aflorando,
Borges foi direto ao assunto:
_
Ah, e a propósito, _ Diz Guilherme, tentando emprestar uma certa
comoção a voz _ Clarisse, desculpe pelos tiros naquele helijato da
Agência que pegaram em você. Você não era meu alvo, se fosse, estaria
morta. Espero que não tenha ressentimentos com relação a isso, pois foi
um acidente infeliz do qual me arrependo profundamente.
“Ela
está imaginando que esta deve ser sua melhor e mais genuína maneira de
se desculpar, sendo você o estúpido vazio e arrogante que é, e está
simpatizando com suas desculpas” _ afirmou Loki, evitando passar em
detalhes as impressões de Clarisse acerca de Borges, pois muito embora
ela, bem no fundo, o achasse um homem fisicamente atraente, o desprezava
em todos os outros quesitos. E apenas desconfiando disso, o doutor
pensou: “Levantei ela, agora é hora de dar a rasteira e ver o circo
pegar fogo”, ao que Loki respondeu: “Um momento, ela está em conflito,
deixe-a falar primeiro...”
_
Borges, eu não posso dizer que o perdôo, pois sou radicalmente contra
suas atitudes irracionais, e de fato não posso dizer que nutro amizade
por você, _ foi dizendo, gentil mas francamente, a doutora Clarisse _
mas compreendo a que limites psicológicos todos estamos expostos dentro
da Agência. Também não creio que possa me dizer satisfeita com seu
convite de trabalhar neste Projeto Foice, mas certamente o senhor não
tem tanta escolha ao pedir minha participação, quanto eu não tenho
escolha de aceitar ou não. Sem alternativa, aceito.
“Agora,
véio, pode ser filho da puta, mesquinho e decrépito, como gosta de
ser!” _ avisou Loki, ao que Guilherme, antes de dar sua “espetada” em
Clarisse, respondeu ao rapaz com um simples “foda-se”, fazendo Loki rir
de maneira desagradável em sua cabeça, e foi dizendo à moça:
_
Que ótimo que aceita Clarisse. De fato eu não lhe poderia dar muita
escolha. Para ser sincero mesmo, se me dissesse que não aceitava, eu
mandaria a Limpeza matar o Dário (por favor, duvide que eu possa fazer
isso), mesmo achando que isso faria mais bem que mal a você. Está com
cara de que precisa de um homem de verdade, doutora. Qualquer coisa...
Clarisse,
subitamente furiosa, se levantou, pegou o copo de cerveja clara que
bebericava, e jogou, bruscamente, todo o líquido sobre Guilherme,
encharcando-o. Borges, pingando cerveja, foi acompanhando ela sair,
pensando que ela tinha um gingado de quadris interessante. E Guilherme
foi dizendo, em voz alta para ela:
_
Amanhã, as onze da manhã, começamos. E se puder vá de saia curta! _ e
riu sardonicamente. Então se lembrou do auxiliar Gembloux, e pensou:
“Porque não me avisou sobre ela lançar a cerveja em mim, seu escroto?!”
“Liberdade
poética, doutor. Liberdade poética, ficou maneiro, seu dinossauro! Se
quiser eu repasso a cena do meu ponto de vista dentro da sua mente,
quer?” _ Fez Loki, divertido a não poder mais.
“Enfia no rabo, moleque desgraçado!” _ veio a resposta do cientista.
Diante de tal delicadeza, Loki achou por bem repassar algumas vezes
a imagem de Guilherme tomando o banho com a cerveja de Clarisse, na
mente do próprio Borges. Como vingança, Guilherme o destacou para passar
todas as noites de guarda no laboratório.
...
Loki
estava já há três semanas em companhia de Guilherme, e o doutor se
perguntava, de vez em quando, se o garoto Gembloux não se incomodava com
o fato de estar desenvolvendo uma arma letal contra sua própria
espécie. Perguntado sobre isso, no entanto, Loki apenas deu de ombros e
disse:
_ Eu tenho escolha?
E
o rapaz se tornava, aos poucos, parte integrante da própria pesquisa,
pois conversava sobre as técnicas Gembloux abertamente (tinha sido
instruído por Orwel a fazer isto) com o próprio Guilherme e sua equipe,
formada por Clarisse (que mal falava com Guilherme, só o necessário) e
Lázaro, que havia passado alguns meses em um asteróide chamado Moreau,
da Agência, estudando nanotecnologia médica aplicada a organismos
alienígenas. Guilherme achou muito interessante a informação de que o C7
tem alienígenas vivos em Moreau, e fez questão de colocar aquilo em sua
lista de investigações para um futuro próximo, junto ao termo
“senador”.
Mais
duas pessoas estavam trabalhando esporadicamente com Guilherme na
Foice: Fábio Write, o Comandante do setor Científico do C7, e sua amiga
Milena Ramirez, na qualidade de engenheira robótica que preparava um
outro positrônico para servir de base aos implantes da Foice, em
paralelo a Daneel. Milena Ramirez, a princípio, fora dificílima de ser
convencida a trabalhar na Foice, mas, subitamente, se mostrou prestativa
e colaboradora. Guilherme não sabia, mas Orwel, convencido de que ela
era fundamental para o desenvolvimento do positrônico ideal, havia
ameaçado seu irmão Ramirez, a própria Amanda Vincentti, a sobrinha de
Milena, Layla, e, em último caso, mataria o próprio Borges quando ele
não fosse mais útil ao projeto. Isso era argumento o suficiente, e
embora Orwel soubesse que Milena ajudaria Stone a fugir, se pudesse
achar um modo de fazer isso sem prejudicar Guilherme e os outros, o
computador sabia que este “equilíbrio de forças” a manteria no eixo por
enquanto. O próprio doutor Guilherme, avisado por Orwel, quando soube
que Milena poderia aparecer a qualquer momento, colocou Ramon em outra
“jaula” longe dali e de Stone. Claro que Guilherme soubera que Milena e
Ramon haviam tido um breve romance, e que ela reagiria de forma
imprevisível se visse um homem por quem se afeiçoou tanto (embora Borges
achasse, erroneamente, que Ramon só queria mesmo “comer” Milena)
naquele estado, por isso nem pensou duas vezes em despachar Ramon para
outra sala, a vinte metros dali, fora da vista de Milena.
Já
o garoto Fábio Write agia como um consultor especial. Guilherme às
vezes tinha a sensação de que o moleque, um menino gênio, com biologia
alienígena, era tão assombrosamente inteligente, que conduziria a Foice
sozinho, caso não tivesse a mente de uma criança. Na verdade, agora, de
um púbere. Write se entediava com estudos longos, dava palpites
extremamente brilhantes, mas era de fato o 1 por cento de inspiração, o
restante, de transpiração ficava para os outros. Fábio estava ocupado,
percebia Borges, com suas marionetes, duas inteligências
artificiais construídas como cópias das agentes Milena e Amanda, às
quais o menino genial deu corpos, que também imitavam as formas sensuais
e perfeitas das duas agentes. Guilherme ficava pensando se o rapazinho
não as estaria criando como “putinhas particulares artificiais” para si
mesmo, quando crescesse, mas nunca o viu ser menos que um maldito perfeito cavalheiro
com elas, o que repugnava Borges, que a seu modo distorcido, acreditava
que se Fabio havia feito as duas, e as duas eram “coisas” artificiais,
ele, o garoto, as poderia usar para o que quisesse, inclusive para o
“trepar”, a hora que quisesse. Sorte das duas que Guilherme não fosse
Fábio, pois elas tinham moral e personalidades, que a cada momento se
tornavam mais e mais próprias. Mas certo dia Guilherme, aproveitando a
distância de Write, puxou assunto com Amanda-V, como o garoto a chamava:
_ Fala sério, coisinha...
_ Sim, doutor. _ respondeu o seu computador.
_ Cala a boca, Coisa! Estou falando com outra coisa, porra. Bem, trocinho-que-se-parece-com-Amanda,
como eu ia falando, o garoto ta ficando homem, e você sabe que como
todo homem ele em breve vai ter necessidades, vai precisar de mulher
para enfornar o pão. Então me diz, ce ta equipada para atender ele?
Amanda-V,
extremamente curiosa, como sua “irmã” (de fato as duas se sentiam
assim, com relação uma a outra, como irmãs), adejava, em sua simpática
inocência (muito embora ela tivesse todas as faculdades mentais,
memórias e experiências de Amanda, mesmo quando esta já havia
experimentado os prazeres adultos até o fim, com seu amor, Ramirez), por
todo o laboratório. As garotas virtuais estavam impedidas apenas, por
ordens de Guilherme, de chegarem perto das “jaulas” onde guardavam os
espécimes. Amanda-V estava brincando com um béquer contendo um líquido
que Borges sabia de cor toda a longa composição química. Mas,
contradizendo sua natureza ingênua, por ser nova no mundo real, a moça
artificial sorriu, como uma menina, mas olhou para o doutor, disparando:
_ Porque o súbito interesse, Guilherme? Alguma fantasia particular?
_ Já transei com artificiais, nenhuma novidade...
_
Ora, vamos, Borges, não tem vontade de terminar o que começou aquele
dia na sala de sua casa? Aí você teria razão quando se gaba de ter
“comido” Amanda.
_ Porra, você é tão oferecida quanto a original! Eu num achei no lixo, caralho!
_
E eu _ Respondeu a linda moça que não era “real” _ treparia com um
Cinza, mas não me sujeitaria e deixar você me tocar, seu escroto. Estou
zoando sua cara, estúpido! E quanto ao Fabio, ele será um homem que você
jamais sonharia em ser, e fico torcendo para que uma garota muito
especial se apaixone por ele.
_
Uma garota de verdade, você que dizer, não uma COISA que simula uma
garota. Tem razão, o menino merece uma mulher de verdade, não uma
“boneca inflável”.
_ Ahhh, vai se foder, Borges! _ Alterou-se Amanda-V.
_ Vai partir para a baixaria, piranha artificial? Te ponho para fora do laboratório!
_
Não fode minha paciência! Enfia essa porra de laboratório no teu
intestino orgânico adentro! _ E ela foi saindo. A reação explosiva
extremamente parecida com a Amanda humana. E ela nunca mais voltou a
conversar com Guilherme, que se sentia satisfeito com isso. Aquela
“coisa mecânica” dava um certo calafrio em Borges, que, antiquado como poucos, não conseguia imaginar como as pessoas podiam gostar dessas “ferramentas”.
Já
com Milena-V, que por ser uma cópia extremamente fiel da única pessoa
por quem ele nutria algum afeto, Guilherme dava menos atenção. Na
verdade ela o enchia de um certo “nojo”, como se ele um dia pudesse
acabar sendo uma simulação como aquela, quando a agência terminasse de
“devorar” os agentes por dentro com a nanotecnologia que os braceletes
de controle implantavam neles. Por tudo isso que Borges a ignorava ou
era monossilábico com ela. Mas uma vez ele falou demais, quando Milena-V
tentou se mostrar prestativa enquanto Guilherme preparava um plasma, e
disse:
_
Hã... Com licença, doutor... Guilherme... Posso ajudar? _ A voz tão
trêmula e insegura quanto a da Milena original ficava às vezes, o timbre
idêntico, uma gêmea artificial que Borges não queria como amiga, e foi
dizendo em resposta rude:
_
Não. Eu não pretendo ser seu amigo. E na verdade, você só está
programada para achar que gosta de mim como a Milena real gosta. você
não tem sentimentos, apenas os simula.
_ Mas... Lembro que o senhor nos tratou bem quando foi nos visitar na realidade virtual...
_ Porque vocês não estavam deslocadas. Eram coisas
de RV, e eu não estava tão estressado com este projeto de merda! Agora
vocês são robôs. Ferramentas. E agora eu não preciso tratar vocês tão
bem porque não preciso sobreviver, pegou? Ou teus sensores que fingem
ouvir como um ser humano estão defeituosos?
_
Eu... Eu... _ E para espanto, e uma longínqua pontada de remorso, de
Guilherme, a Milena-V saiu chorando aos soluços, profundamente sentida,
ou, aos olhos de Borges, simulando estar profundamente sentida. Mas,
para exasperação de Guilherme, algumas horas depois, a própria agente
Milena Ramirez chegou, trazendo consigo P-I-T, o novo positrônico, que
Guilherme só reconheceu porque já havia lido a ficha do “aparelho”, pois
era um rapaz perfeito, como as duas marionetes de Write eram garotas aparentemente perfeitas. Milena foi entrando e dizendo:
_
Oi, gente. Olha, eu finalmente terminei os ajustes em Pit, ele é uma
criatura maravilhosa, agora compreendo como ele funciona, e posso dizer
que estou entusiasmada com meus novos conhecimentos em robótica... _ mas
ela se calou quando deu de cara com Amanda-V e Milena-V.
Lágrimas
assomaram aos olhos de Milena Ramirez, quando ela fitou Amanda, e
Borges sentiu náuseas pelo sentimentalismo da amiga. Ela já havia lhe
dito que estava morta de saudades da amiga Amanda, que estava fora da
agência há um ano. Como Fábio se apressou em explicar quem eram as duas,
a Milena real finalmente deu pela presença de sua gêmea, que se
encolhia atrás da irmã. Após um pouco de hesitação, depois que Amanda-V
instou a irmã a falar com a primeira Milena, ambas se abraçaram, e
Milena Ramirez disse a uma chorosa Milena-V:
_ Eu sempre quis ter uma irmã! Gêmea então, é muito, muito legal!!
Aquilo
foi a gota d’água, e Guilherme Borges saiu da sala, indo se refugiar
nas “jaulas”, tirando do bolso do guarda-pó um frasco de bebida
metálico, antigo e bem polido. Continha uísque de primeira qualidade
ali, e depois daquele “festival de fantoches” no laboratório, e, ele não
admitiria, mas por Milena ter ficado tão maravilhada com sua própria cópia
e nem sequer dirigir a palavra a ele, Borges precisava se divertir com
uns goles. Mas depois que virou a garrafa a primeira vez percebeu que,
além dos espécimes, tinha mais alguém ali, na penumbra. O que o fez
deslizar a mão livre ao coldre que trazia junto ao tórax, onde mantinha
um viper carregado de agulhas explosivas desde que encontrou Loki
na boate. Destravou a pistola automática, mas a sombra no canto foi
dizendo:
_ Fica frio, véio... Sou eu, Loki. Me dá um gole disso?
_ Nem pensar. Não confio em um psi sóbrio, vou embebedar um? _ Respondeu, rouco, Borges.
_ Tem razão.
_ O que ta fazendo aqui, moleque?
_ Nada, dino. Estava pensando em Stone. Ele é uma lenda nos corredores do Gembloux. Dizem que ele tem todas as Inspirações.
Dizem que ele começou como um telepata nato, mas que descobriu uma
coisa em Tau Ceti, que ampliou ele, que o deixou imortal, e fez dele A
Mente, ta on?.
_ Me fala sobre isso, garoto, e te dou um gole.
_ Agora enfia no teu plugue, doutor, mas eu falo assim mesmo...
E
realmente Loki falou francamente sobre a lenda que dizia que Marcus
Stone havia sido o Comandante dos Gembloux quando eles começaram, há
oitenta anos. Dizem que nesta época ocorreu uma tentativa de invasão
pelo portal de Júpiter, e então forças de combatentes, Gembloux e
Fuzics, usaram o portal que permanecia aberto para atravessar e
encontraram o Sistema Toga, sistema binário natal dos Corredores da
Planície, e perceberam que estes “toguenses” haviam descoberto um portal
em um gigante gasoso de seu próprio sistema, e que essas criaturas
precisavam adorar e se alimentar de mamíferos ligeiramente parecidos com
os humanos. Os Corredores eram ritualísticos, e de fato amavam a seu
modo seus alimentos, pois para eles, a divindade estava diretamente
relacionada a seu alimento, não a qualquer conceito abstrato, como fazem
os humanos ao por seus deuses no céu. Este alimento deles, já escasso,
foi a força motivadora para que abandonassem Toga-4, e, por mero acaso
(para eles uma mensagem divina) um Portal Estelar dos Mahapurana em
Toga-7, e através deles o Sistema Solar, povoado por uma espécie muito
parecida com seu alimento. Dizem que morreram muitos soldados da
agência, e a maioria de seus comandantes, nas luas geladas de Júpiter,
rechaçando combatentes toguenses. Em Toga-7 eles encontraram um veículo
com dois milhões de anos, que estava totalmente inativo, e que foi
retirado de Toga a custa de mais sangue. Este veículo, chamado Arca,
continha um sem número de artefatos, entre eles, centenas de Bombas
Buraco Negro (estoque que anda perto do fim, atualmente). Algumas foram
usadas para explodir o sol de Toga. Os soldados terrestres, liderados
pelo próprio Orwel (os Gembloux acreditam por alguma razão desconhecida
de Loki, que o computador já foi de carne e osso), e por Stone, se
dividiram, e Stone e os seus foram acompanhar a Arca, enquanto Orwel e
os seus caçavam todos os toguenses remanescentes da catástrofe estelar.
Mas foi quando descobriram que os Portais são terrivelmente instáveis
sem um controle central, e Stone, seu pessoal, e a Arca foram parar em
Tau Ceti, onde lutaram com outra espécie, e onde Stone foi mortalmente
ferido. Com ele estavam sua mulher, Glória Stone, uma
tenente-especialista dos Fuzic7, e seu filho, Carl Stone, Gembloux.
Dizem que Stone matou o próprio filho na frente da mulher, para impedir
que ele usasse o poder de um objeto achado em uma caverna para proveito
próprio, e para o próprio Stone usar este poder para destruir a Arca
antes que o povo daquele mundo a dominasse. Dizem que por sete dias ele
teve o poder de um deus, curou a si mesmo, mas não pode reviver o filho,
e voltou para a Terra com os sobreviventes de sua equipe, e chegando
aqui, decretou que estava fora da Agência. Mas Glória Stone não quis
seguir com ele, e quando seus poderes diminuíram, mesmo ainda sendo
maior que os de qualquer Gembloux até hoje, ele teve de fugir.
_
... E é mais ou menos isso, fóssil. Pontua: não sei todos os detalhes.
Se dê por satisfeito. _ Disse, ao final, o jovem Gembloux.
_ Imortal, você disse? _ Fez Guilherme, pensativo.
_ Além de velho ta ficando duro de ouvido, matos-do-além?
Guilherme
(subitamente alheio ao jogo de insultos com o rapaz) foi voltando ao
laboratório (agora silencioso, já que Milena Ramirez havia convencido
Clarisse, Lázaro, Fábio, Amanda-V e Milena-V a irem comer alguma coisa.
Sim, as duas andróides podiam comer, e de fato tinham conversores que
fazia com que pudesse alimentar suas células de energia degradando
quimicamente alimentos. Pit também era construído desta maneira). E
enquanto Borges caminhava, foi pensando alto:
_
Preciso de hemogramas e outras filtragens que me indiquem se existe
alguma presença “estranha” no corpo de Stone que indique a possibilidade
de haver alguma consistência nessas lendas...
Loki
ficou olhando ele sair, e rindo do jeito de “cientista maluco e bêbado”
de Borges, e depois voltou a olhar Stone, que embora pendesse de sua
“cruz” (ele de fato parecia crucificado naquele aparelho) como se
estivesse desmaiado, tinha a maioria dos músculos saltando e se
retesando, em reflexo a dor a que era submetido. Loki, desde que soube
da lenda, acalentava uma admiração pelo todo-poderoso renegado Stone, e
já fora advertido duas vezes por guardar aqueles pensamentos. Pois Loki
pensou que sabia de uma maneira bem prática para saber se as ledas eram
verdadeiras. O jovem havia sobrevivido, em seus primeiros tempos no
Gembloux, a um Duelo Tríade (dois Gembloux duelam, e escolhem um
terceiro para caçar. Ganha e é superior aos perdedores _ que geralmente
morrem _ o que sobreviver, caçadores ou caçado), sobreviveu aos outros
dois que iniciaram o duelo _ ambos mais velhos que ele _ o que o deixou,
até hoje, um pouco autoconfiante demais (a única parte que ele não
gostou nem um pouco foi quando, Schwartz, então um subcomandante, o
obrigou a matar os perdedores). Sorriu, com a satisfação dos jovens
inexperientes que se consideram acima de qualquer coisa, e começou a
trabalhar em Stone.
...
Guilherme
estava manipulando um tablet de mão, organizando uma série de exames em
Stone, para saber se de fato ele poderia estar carregando algo
“anormal” em si mesmo, e quando os iniciou eles começaram a dar negativo
(nada além das diferenças já sabidas entre um psi e um humano
“ordinário”) um atrás dos outros. Mas não chegaram a terminar, pois
quando já levava o frasco de uísque a boca, para mais um trago, Borges
foi atingido. Foi um golpe mental brutal e incisivo, mas não teve
intenção de matar, antes pretendia fazer o doutor sofrer, e obteve
êxito. Guilherme derramou a bebida que segurava em si mesmo quando
convulsionou tão violentamente que quase rachou os próprios dentes.
Desabou sobre a mesa, empurrando tablets e béqueres que despencava, com
grande barulho, quicando, inquebráveis, pelo chão. Borges, sem perceber,
grunhia de dor, enquanto lágrimas de agonia encharcavam seus olhos. Ele
se agarrou à escrivaninha de modo que não chegou a desabar no chão, e a
dor sumiu tão rapidamente quanto começou. Mas as pernas de Borges ainda
estavam bambas, e ele estava com muito medo, pois sabia o que estava
acontecendo.
_ Termina logo isso, Stone! _ Disse Guilherme, sem olhar para trás.
_ E perder o espetáculo de te ver você se mijar de medo, “viadinho”? _ Era a voz de Loki, claro.
_ Dominou o menino... _ Foi dizendo Borges, enquanto se virava devagar _ Está usando Loki. Como conseguiu isso?! Não é possível!
Loki-Stone,
indiferente a pergunta, caminhou, resoluto, até os computadores, e
tentou libertar os espécimes, mas não tinha os códigos. Olhou para
Borges, que começou a sentir os dedos gelados perscrutando seu cérebro,
agressivos. Guilherme, em meio a seu pânico, tentava levar a mão à
pistola, mas não conseguia fazer isso. Guilherme nem sequer conseguia
falar. Loki-Stone se aproximou, parecendo fazer uma força maior que a
que Stone normalmente faria para abrir a mente de Guiherme, e este, sem
saber exatamente como, sabia o porque da dificuldade de Stone: de algum
modo Loki ainda estava lá, e estava lutando contra o domínio do exaurido
Stone. Ele teve esta suspeita confirmada quando Loki-Stone, fazendo a
cabeça de Guilherme parecer que iria explodir, murmurou:
_
Fique quietinho, garoto, e nada de mal vai acontecer a você. Deixe de
lutar... Eu preciso deste código! Não me atrapalhe com piadinhas, que
quero o código que está neste idiota!
Borges
então imaginou um plano. Loki-Stone agarrava sua cabeça com ambas as
mãos, e ele não poderia falar, mas pensava desesperadamente a frase “uma
mão livre”, ao que parece que Loki entendeu e fez com que um de seu
braços se movessem. Guilherme chegou a cogitar pegar a arma e atirar no
corpo de Loki, mas sem saber exatamente porque fazia aquilo, resolveu
por em prática seu plano. Esticou o braço livre até o tablet caído ao
seu lado (ele já estava no chão, com Loki-Stone sobre ele), e tentou
acionar um comando que faria o cérebro do próprio Stone emitir uma onda
Foice, atingindo e, Guilherme torcia, só desacordando todos os psiônicos
próximos. Foi quando a mente de Loki fraquejou, e Stone assumiu por um
momento, arrancando de Borges o código de abertura das “jaulas”, e
Borges teve a sensação de que sua cabeça realmente explodiu.
...
Quando
Guilherme acordou, gritando sem parar, teve de ser acalmado por uma
dose de tranqüilizante, ministrado por Clarisse, que estava sobre ele. A
sua volta o laboratório revirado, mas a “jaula” de Stone, onde ele
ainda jazia preso. A um canto, cercado por Lázaro, Amanda-V, Milena-V,
Pit e Write, estava Loki, começando a despertar também, com um sorriso
no rosto e esfregando a cabeça. Loki jamais contaria que tentou sondar a
mente de Stone, e deu início ao incidente. Para Borges o rapaz diria
que não sabia como Stone conseguiu tentar dominar sua mente, e se
gabaria sem parar, para o doutor e para o mundo inteiro, que sobreviveu a
um ataque de Marcus Stone.
Clarisse
o examinava com um tablet médico munido de sensores biométricos, e
parecia satisfeita com o estado neurológico do doutor. A médica piscou
para a amiga Milena e levantou. Milena Ramirez estava com a cabeça de
Guilherme no colo, e acariciava, com uma expressão terrivelmente
preocupada no rosto, os cabelos dele.
_ Você está bem, amigo? _ perguntou ela, em uma voz miúda e delicada.
_ Estou... _ Respondeu Borges, a voz rouca. _ Eu podia dormir com esse cafuné, Milena.
Ela
sorriu. Guilherme percebeu, sem se espantar, que ela estivera chorando.
Ele deve ter passado perto da morte antes que Clarisse o trouxesse de
volta, era sua conclusão acertada. Embora as torneadas, morenas e
grossas coxas de Milena estivessem confortáveis, ele se esforçou para ao
menos se colocar sentado, e com a ajuda dela, conseguiu. Enquanto
esfregava a nuca, dolorida, perguntou:
_ Ele tinha conseguido sobrepujar Loki, e tinha o código de abertura da “jaula”, como foi detido?
Milena
Ramirez sorriu mais um de seus lindos e generosos sorrisos de
mulher-menina, e com um aceno, apontou em direção a sua gêmea, que
parecia tímida em excesso, abraçada à irmã Amanda-V, que olhava para ele
com desdém, como se desaprovasse que Milena-V o tivesse salvo. A Milena
de carne e osso foi dizendo então:
_
Foi ela. Voltou para pegar a bolsa, e encontrou a cena. Loki, dominado,
no terminal, e você, semiconsciente, apontando para o tablet onde havia
iniciado o processo que impediria a fuga de Stone..._ e aqui sua voz
embargou um pouco, ela ainda achava imoral manter Stone naquele estado.
Guilherme ficou pensando com amargura sobre o que ela acharia se
soubesse de Ramon _ ... Então ela acionou o sistema, pois sabia o que
era, viu você falando com Fábio sobre a Foice. Isso fez com que Loki
ficasse livre, e deteve o pobre Stone.
_ Mas _ Fez Guilherme, confuso _ isso significa fazer mal a um ser humano,
e isso vai de cara com a Primeira Lei. Milena-V é positrônica, e se ela
entendia mesmo o que era a Foice, poderia ter feito mal a muitos
humanos, já que positrônicos não distinguem humanos de Gembloux. Como
ela pode acionar uma arma potencialmente letal para muitos só para
ajudar um?
E
neste momento Guilherme teve a nítida impressão que Milena iria lhe
beijar os lábios, pois ela, de joelhos ao seu lado, se inclinou,
graciosa, para frente, puxando os longos cabelos negros para o lado, os
próprios e belos lábios delicadamente projetados em um bico sensual,
olhos azuis faiscando, mas ela passou apenas próxima do rosto do amigo,
deslizou até seu ouvido, e foi sussurrando:
_ Fabinho me disse que nenhuma das duas tem as Leis, Guilherme. Não é incrível?
Mas, aturdido, ele ainda tinha dúvidas:
_ Mas e quanto a você, estava tão próxima, como está bem? _ Perguntou Borges.
_
Solucionei a equação de amplitude do pulso, senhor, e regulei a onda no
momento em que Milena-V a acionou. _ Disse, suavemente impassível, o
Coisinha.
Guilherme então suspirou, engoliu um décimo de seu orgulho, e admitiu:
_
Fez bem, Coisinha inútil, fez muito bem. Está de parabéns. _ Mas ele
não conseguia tirar os olhos das “meninas” de Fábio Write. Amanda-V o
encarava, empertigada, e Milena-V escapava, tímida, de seu olhar,
escondendo-se atrás da irmã. Ele então disse para a última _ Valeu, boneca.
Sim,
havia malícia naquele “boneca”. Ele perderia sua própria identidade se
abandonasse totalmente sua mesquinhez. Mas agora ele não conseguia parar
de pensar mesmo é que positrônicos tão sofisticados quanto
aqueles, equipados com cérebros que não estavam limitados pelas Três
Leis, dariam maravilhosas máquinas de caçar e matar os malditos
psiônicos.
FIM
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