Reencontro

Importante: Este texto aqui é de autoria da minha Querida Amiga Kênia, dele participei como revisor, mas ocorre dentro do universo de C7, então tomei a liberade de publicá-lo com o consentimento dela, é claro. No meu Google Docs ele data de 01-08-2008, mas creio que é bem anterior a isso.

RPG:C7

Reencontro

Autora: Kênia Barbosa Evangelista
Revisão: Wagner Ribeiro

Clarisse não sabia direito que vontade anormal a tinha feito entrar naquela rave. Ela estava encolhida, afundada numa grande poltrona vermelha em forma de boca, pernas unidas. Ela jazia quase imperceptível a olhares menos cuidadosos, imersa na penumbra de um canto esquecido do lugar. Segurava um copo já pela metade de um líquido que ela não sabia definir direito o que era _ algo agridoce, uma bebida que lhe descia pelas entranhas queimando como lava incandescente. Seus belos olhos, geralmente cheios de vida e brilhantes diante de alguma descoberta, neste momento se encontravam vítreos, e seu brilho vinha somente de uma lágrima que ela teimava em equilibrar na pontinha da pálpebra. Por mais uma vez, ela entornou o copo na boca, e sentiu o líquido quase a perfurar_ lhe as entranhas. A música, batida e ritmada, não fazia sentido no seu cérebro naquele momento. A moça lançou um olhar, sem ver, para o ambiente caótico que a rodeava, completamente absorta e mergulhada em seu próprio mundinho, e apesar do lugar ser exatamente seu oposto, por uma fração de segundo ela sentiu como se o ambiente representasse a exata confusão ocasional de seu ser.
Enquanto aquela estranha banda holográfica fazia o seu trabalho de produzir todo aquele som pesado e sinistro, a massa humana que os rodeava, embalada pelas luzes, pela fumaça, pela bebida, fervia na pista. Clarisse levantou a cabeça, e realmente percebeu todos aqueles corpos modificados e perfeitos, suados, esbarrando-se, enroscando-se numa dança incansável...

_ Eles parecem... Se tocar... _ Ela balbuciou, quase num transe.
...
Horas atrás... Um espetacular crepúsculo coroava um lindo dia de céu azul na perfeita Paris daquele século. Transeuntes mais curiosos, vez ou outra, lançavam um furtivo olhar para um corpulento rapaz que contemplava o rosto de sua bela companheira. As sombras formavam arabescos nas roupas leves do casal, e o vento daquele final de tarde fazia brincadeiras com os cabelos dos dois. Clarisse, na sua natural vaidade feminina, não deixava seu cabelo ao bel-prazer do vento, tentando coloca-lo no lugar que supunha ser o certo. Eles estavam recostados no capô do carro de Dario, próximos a um parque arborizado, onde, mesmo de longe, se conseguia escutar a contínua e doce risada de crianças a correr. Difalco tentava colocar a maior leveza que podia na mão que acariciava o rosto de Clarisse, e ela sorria. Súbito, o rapaz a puxou, e lhe deu um daqueles beijos que ela proibira terminantemente que acontecessem enquanto estivessem nas dependências físicas da agência. Quando sentiu que a moça estava sem fôlego, retirou seu rosto só para se divertir vendo-a ruborizada e ofegante. Clarisse, dando-lhe tapinhas no peito, foi dizendo:

_ Ora, Dario...
_ Clarisse _ principiou Dário, e ficou sério de repente _ Eu queria muito..._ pigarreou, tentando ganhar tempo, mas no fim não soube dar tantas voltas quanto gostaria e disse _ Ehr... Acordar ao seu lado amanhã.
_ Quê? _ Ela segurava-lhe os ombros, como se estivesse escutando algo muito assustador.
_ É isso mesmo Clarisse... Sei que você escutou. _ ele procurou articular bem as palavras desta vez, tentando enfatizar o mais que podia. _ Quero acordar do seu lado, quero passar a noite contigo, ver como você fica de cara amassada, experimentar seu café-da-manhã... Essas coisas... Quer que eu explique mais?
_ Dario... Eu... _ Clarisse tentava achar as palavras mais condizentes. A moça olhou-o nos olhos enquanto dizia, pacientemente._ Você sabe... Sabe quais são os meus sentimentos. Sabe o quanto o quero também, mas...._ ela baixou os olhos para o bracelete em seu próprio pulso, através do qual a inteligência artificial chamada Orwel vigiava todos os integrantes da agência conhecida como C7, a qual ambos pertenciam, e após um momento continuou a falar - Esta coisa dando uma de voyeur, invadindo a minha...A nossa privacidade... Eu realmente não quero dividir este momento com mais ninguém, entende?
_ Mas... Clarisse, sabe, às vezes eu simplesmente esqueço que ele está aqui. Pra ser mais sincero, sei lá, ele já se tornou até parte da minha vida. Já me acostumei...porquê não faz como eu? _ Ele pedia uma resposta com os olhos. Clarisse desviou os dela, e olhou para a última criança que deixava o parque, visto que a noite já estava caindo. Realmente pesou o assunto, sinceramente, mas acabou por dizer:
_ Não dá, Dario. Eu nunca vou me acostumar com isso. Simplesmente porquê não é normal, e eu tenho que ter uma noção, um limite, para não deixar de ser o que sou, o que sou!! _ Ela batia no peito. A moça se afastou e deixou o rosto ao sabor do vento, de olhos fechados. _ Mas sei que... _ Ela abriu os olhos novamente, dirigindo-se a Dário _ Bem, na verdade, não sei quando, nem onde... Mas sei que teremos nosso momento...

Dario sorriu, abanando a cabeça, como se escutasse um conto-de-fadas de uma criancinha ingênua. Clarisse aproximou-se, abrindo bem os olhos, segurando-lhe as mãos, e disse:

_ Mas é verdade, Dario! De alguma forma, algo me diz que...nós...
_ Clarisse! _ O rapaz disse, colocando o dedo indicador sobre os lábios dela. _ Não somos mais crianças, e me desculpe, mas você está agindo como uma. Esta coisa, o Orwel, vai nos acompanhar para o resto de nossas vidas. É a nossa sombra, o nosso castigo... Tente encarar isso de uma forma mais adulta. Não podemos deixar de viver por causa disto. _ Ele oferecia a ela um sorriso como se quisesse consolar a moça, e com delicadeza, puxou o rosto dela para perto do dele, mas Clarisse se afastou, e respondeu:
_ Desculpe-me Dario... Talvez... Talvez... Eu esteja te pedindo demais. Os sonhos de uma garota louca, não é? É verdade, você realmente não merece isso. _ Clarisse foi andando para trás, segurando a mão dele até que o último dedo do rapaz desprendeu-se dos seus. Dário pareceu não crer no que ela estava fazendo, e só um momento depois disse:
_ Clarisse! ... _ O homem ainda teve ímpetos de seguir a moça, abraça-la, e lhe dizer que continuaria aquele romance adolescente, se ela assim o preferisse. Mas conteve-se. Ela lhe dera as costas e andava com passos duros e resolutos demais. De nada adiantaria lhe falar agora. E, tendo caráter, Dário achou por bem pensar se de fato poderia, homem maduro, levar adiante um romance sem maior intimidade. Ele sentiu que tinha que pensar. Ambos tinham de pensar sobre aquilo.
...
A noite já ia alta, e ventava bastante. Clarisse já desistira de tentar colocar os cabelos do jeito certo. Aliás, não era bem em cabelos ou aparência o seu pensamento central agora. Andava de braços cruzados, e apesar de Dario sempre lhe falar de modo muito suave, os argumentos do rapaz trovejavam dentro de sua cabeça agora. Ela sabia que ele também tinha razão. Ela o amava tanto! Mas aquela situação era demais. É claro que a maioria das pessoas do seu tempo não enxergaria problemas nisso... Mas, para Clarisse, isso seria como jogar para o alto todos os seus valores. Era inviável demais, para ela, tornar pública a parte mais particular da sua vida. Todos estes conceitos, que ainda encontravam base e força no coração da moça, agora entravam em choque com as idéias do seu namorado. Ela já não agüentava mais andar, mas não queria voltar para a calma e placidez do seu apartamento. Não agora. Só se deu conta de onde estava quando ouviu a buzina de um carro. “Estou na calçada, droga...” _ pensou. Ela olhou ao redor; estava numa das ruas mais badaladas da cidade, e para piorar a situação, bem na frente do glamouroso Moulin Rouge, grande casa de shows e reduto das prostitutas de luxo mais caras do mundo. Levou a pequena mão à boca, assustada. Tinha andado muito, estava bem longe de casa. Resolveu dar meia-volta, mas... Ainda havia muito para pensar e decidir. Avistou umas boates e discos, mas algo a fez entrar na rave mais estranha que já viu. Talvez aquele ambiente diverso e impessoal lhe trouxesse a fria calma de observar Orwel como parte normal de sua vida.
Enquanto estava imersa em seus intrincados pensamentos, sentada numa estranha poltrona e tentando adivinhar que líquido infernal era aquele que ainda queimava seu estômago, uma jovem moça, não mais que vinte anos, que mais parecia um porta-piercings lhe trouxe uma bebida numa curiosa bandeja. Clarisse não percebeu sua presença. Ela, elétrica e ionizada garçonete, especialista em torpedos bem entregues naquela festa, precisou chamar a moça de olhar distante:

_ Ei, gata... Esta aqui é só pra você, heim! _ Quando Clarisse a olhou, ela sorriu, ostentando mais um de seus enfeites na língua, com um brilho maroto nos olhos.
_ Ahn..? _ Clarisse foi dizendo, como que acordando de um sonho. Olhou-a estranhamente, e esfregou os olhos, achando que estivesse sonhando mesmo com mais uma daquelas criaturas alienígenas que insistiam em aparecer na sua vida como agente do C7. Endireitou-se na poltrona, e foi emendando: _ Desculpe-me... _ E olhando para o copo enfeitado, cheio de um líquido que a menina trazia em uma bandeja faiscante, a doutora completou: _ Eu... Eu não pedi mais nada...

A garota sorriu mais uma vez, apontando muito sutilmente com a ponta queixo uma mesa um pouco distante, onde um rapaz de cabelos compridos e ondulados estava sentado, não de frente, mas de perfil. Clarisse sentiu um calafrio lhe subir a espinha, e ela quase parecia sentir as reações químicas que aconteciam no seu cérebro que a faziam reconhecer o moço. A jovem garçonete percebeu o sobressalto de Clarisse ao tentar ver o rapaz da outra mesa, e tentou tranqüilizar a garota dizendo:

_ Ei, gata, pontua: fica na moral, ta on? O cara né rebite não, é gente finíssima!! Altas gorjetas, se ligou? _ E estendeu um bilhete. Clarisse tinha quase certeza de ter reconhecido o rapaz que lhe havia enviado aquele bilhete, estava paralisada, boquiaberta. E antes que pudesse confirmar sua infeliz suspeita, a estranha "garçonete-almofada-de-piercings" sumiu na multidão com a facilidade de quem fazia isto muitas vezes por noite.

Clarisse respirou fundo. Tentava manter a calma, mas já estava ofegante. "Não", ela se esforçava para pensar, "Só pode ser uma coincidência... Uma infeliz coincidência a maldita semelhança deste homem com aquele... Patife, assassino, aproveitador". Clarisse forçava a vista, incrédula. Ele, sentado à mesa bebericando algo fluorescente, parecia se divertir com o lusco-fusco que a impedia de o ver mais claramente. Foi então que ela, bruscamente e sem tirar os olhos dele e do bilhete sobre a mesa, leu, em letras verdes como a bebida que faiscava à sua frente:

“Você me parece muito triste esta noite. A fada verde vai te ajudar a brindar comigo... Sentiu minha falta?”

E ao final do bilhete, uma pequenina cruz-de-malta, desenhada com delicadeza e precisão de um mestre. Ainda que estivessem relativamente distantes um do outro e em meio a luzes piscantes e fumaça, Clarisse pôde perceber que ele levantou sua taça e exibiu um malicioso sorriso. A moça cheirou a bebida à sua frente, e foi como se aquelas terríveis lembranças voltassem todas à tona.

“Absinto” _ Pensou Clarisse, febrilmente _ A fada verde... Ele deixava ao lado de suas vítimas depois de as estuprar, matar e as colocar crucificadas em uma cruz de madeira bruta, e ainda por cima, sempre que podia, atear fogo às vítimas, diante das grades e portões de grandes instituições e mansões de grandes milionários... Esta mesma bebida, junto com outras pistas, me levou até o dedicado, bonitão e simpático professor de história da universidade de Cambridge, Dave Leatox... (Christian Slater) E pensar que ele quase... Me enganou também, fingindo ser meu amigo e me indicando como possível assassino o pobre e ingênuo Howard Goldman (Brendan Fraser), um jovem e forte ajudante da universidade, pugilista nas horas vagas. Crápula! Mas como? Como ele conseguiu... A liberdade?"

Aquela confirmação foi quase um soco no seu estômago. Seria alguma brincadeira de mau-gosto? Afinal, conseguira notoriedade no seu trabalho como psicóloga estudando o modo de atuação destes assassinos seriais e ficou conhecida no mundo inteiro quando, finalmente, há quatro anos atrás, ela em conjunto com outros agentes da INTERPOL, principalmente o Oficial Brian Antognetti (Kevin Costner), conseguiram juntar as provas necessárias e jogá-lo na cadeia. Mas... Não era engano. Era ele mesmo quem estava a encarando agora e rindo, como uma criança que acabava de descobrir uma nova brincadeira. Ele, então, estendeu o copo para o brinde, erguendo-se também. Clarisse estava transtornada, tonta. A música, aquelas pessoas, e... Leatox! Não...! Não podia ser real... Ela tentava se levantar, mas não conseguia, tal era o seu torpor... Estava imersa num pesadelo!
Dave encaminhava-se para ela, e gingando ao sabor da música, levantava os braços como um autêntico dançarino. Quando ele se aproximou, ela percebeu um sorriso mais sereno nos lábios dele, sua expressão mais madura. Súbito, o rapaz pulou na mesa em frente à poltrona da moça, e sob a vibração geral e o susto de Clarisse, Dave Leatox ensaiou mais alguns passos e, agachando-se como um gato, segurou-lhe o queixo, e olhando nos seus olhos de forma muito profunda, disse:

_ Minha cara doutora... Pelo visto o tempo só lhe fez bem... Mas, como dizem, a história se repete! _ E dizendo isto, aproximou ainda mais seu rosto do rosto dela. Mas qual não foi sua surpresa quando a moça preparou uma bela cusparada, que atingiu seu rosto em cheio. Quando ele voltou-lhe o rosto transtornado, um burburinho e barulho de cadeiras, garrafas, gritos e ossos se quebrando (!?!) chamou a atenção de todos.
_ Clarisse! Você está por aqui? Sei que sou um idiota, que papo foi aquele meu, cara! Só quero não ter de te perder, só isso!!_ Ele dizia, enquanto se desvencilhava de dois rapazinhos de cabelos espetados à vassoura que tinham se sentido ofendidos porque ele esbarrou neles. _ Ei, me larga, seu... Ei! _ Ele suspendeu um rapazinho estranho até a altura de seus olhos. _ O que você é ? Um porta-piercings, moleque?

E Dário arremessou o garoto brigão em cima da mesa mais próxima. Difalco estava cada vez mais próximo dela, embora ainda não a tivesse visto de fato. Ele a havia descoberto ali através do próprio sistema que Clarisse repudiava, o Orwel, mas como estivesse desesperado por dizer a ela o quanto precisava dela, e percebeu que o bracelete dela estava em um lugar perigoso, foi até lá imediatamente.

_ Ah, Clarisse, meu doce amor... _ Disse Dave num esgar, por sobre a moça, cheirando o aroma suave dos cabelos dela, e voltando a encarar a doutora nos olhos _ Quero sentir o que você tem aí dentro, mas não deste jeito. Quero um encontro romântico, só eu, você, e a encruzilhada de teu destino, Clarisse...

Clarisse o fitou com uma raiva crescente, e se seu olhar equivalesse a rajadas laser, certamente Leatox teria morrido fulminado naquele momento. Mas por mais ódio que sentisse, ainda assim o terror de ter o assassino tão próximo a fazia ficar muda.

_ Clarisse! _ Gritou Dario. A moça ergueu a vista por sobre o ombro de Leatox, olhando como que suplicante para Dário, mas não conseguia falar e nem ao menos se mover . Mexia a boca, mas nenhum som era emitido. O rapaz avistou-a, e também a Leatox. O primeiro impulso foi avançar em Dave, que deu uma piscadela para Clarisse e fugiu como um gato em meio à gritaria e o tumulto. Clarisse sentia o corpo adormecido, como se tivesse tomado algum tipo de entorpecente.

“Mas” _ Ela pensava, com medo de que pudesse estar de algum modo envenenada _ “Eu não bebi nada daquele absinto que ele me ofereceu... Porquê estou assim?”

_ Clarisse! _ fez Dário, nervoso, chegando finalmente até a namorada _ Aquele cara... Fez alguma coisa para você? Não consegue se mexer? Ah, Clarisse, não faça mais isso...

E Difalco a tomou nos braços, saindo o mais rápido possível, sem prestar atenção nos sinais que ela fazia. Clarisse sabia que havia um resto do que bebera no copo em cima da sua mesa. Gostaria de levar uma amostra, mas Dario estava tão ansioso por tirar ela rapidamente dali, que não percebeu nenhum de seus gestos. Além disso, não poderiam deixar alguém como Dave Leatox solto. Mas era realmente impossível fazer seu afoito namorado perceber isto agora. Dario a colocou em seu carro. Apesar da urgência que sentia sobre o assassino que fugia, Clarisse se sentia completamente exausta. Dário, então, a beijou, e ela adormeceu.
...

Quando acordou, Clarisse sabia que estava numa enfermaria ou hospital antes mesmo de abrir os olhos. Tentou mexer os braços, as pernas. Ainda bem que tudo estava como antes. Tudo, inclusive Dario, que estava como um soldado de plantão ao lado de sua cama.

_ Clarisse... _ Chamou ele, baixinho, beijando-lhe as mãos. Não quero mais comentar sobre o que aconteceu ontem. Sabe, aquela história idiota... Mas fiquei preocupado em saber como você foi parar naquele antro...
_ Dario _ principiou Clarisse, feliz por poder falar novamente. Estavaansiosa por partilhar o que viu, e foi dizendo: _ Eu senti como se devesse entrar naquele lugar... E sabe quem eu encontrei lá? Aquele assassino, o Dave Leatox..._ A moça disse com os olhos faiscando de raiva.
_ Dave o quê? _ Dario falou com uma careta.
_ Não lembra? Aquele assassino em série, que se auto-intitulou de "Cruz-de-Malta", que eu ajudei a pôr na cadeia a alguns anos...
_ Ah, sim, claro que lembro! Mas Clarisse... Esse cara já está preso faz uma pá de tempo... E você naquele estado... Tem certeza do que viu? _ Ele perguntou, uma sombra de dúvida passando pelos seus olhos e deixando uma ruguinha entre as sombrancelhas.
_ Mas é claro que tenho! _ Ela foi falando, pondo-se sentada na cama _ Absoluta certeza...Era ele! E está solto!

Neste momento, o médico de plantão chega até a sala.

_ Com licença...Srta. Clarisse de Souza? - Disse o médico, entre um tom constrangido e afetado.
_ Sim...
_ Bem... Devemos dizer que a equipe ficou bastante preocupada com o teor da substância que encontramos no seu sangue.
_ E o que era?
_ Na realidade, não sabemos realmente o que é. Talvez um novo tipo de entorpecente adicionado a bebida. ë sem dúvida um alucinógeno, parece um alcalóide, mas nunca vimos nada igual, estamos cruzando informações com outros bancos de dados disponíveis, mas tudo indica um novo tipo de substância. Seria necessário mais algumas horas de observação.
_ Não posso ficar em observação. Tem um maluco solto lá fora! _ Disse Clarisse, apontando resoluta para a janela, o peito ofegante, transpirando ansiedade.
_ Clarisse..._ Dario segurou seus ombros com carinho. _ Minha querida, não quero que arrisque sua saúde por uma coisa que você não sabe nem se viu realm...
_ O noticiário! _ A moça disse, num ímpeto, interrompendo Dário, agarrando a gola da camisa dele _ Ligue o tablet mais próximo, preciso ver o noticiário agora, Dario!
_ Tudo bem, Clarisse. _ E, erguendo-se e afastando o médico um pouco, disse baixinho para ele: _ Ah, Doutor, cuidarei para que ela fique por aqui.

Enquanto o médico se retirava, Dario se sentou novamente na beira do leito de Clarisse. Ao que ela prontamente foi dizendo:

_ Por favor Dario... Só ligue esta coisa e... _ suplicou.
_ Não quero que fique se preocupando com isso, Clarisse. Existem outras pessoas para se preocupar por você. _ Ele dizia, compreensivo.
_ Só ligue, se quer me deixar tranqüila. Se não for verdade, não vai ser noticiado, certo? _ Ela disse, num olhar preocupado, no fundo querendo que sua suposição estivesse correta.
_ Dario olhou para ela gravemente, novamente como quem olha uma pequena criança a inventar estórias, e ligou acionou o tablet do leito de Clarisse. O rapaz digitou comandos (era um tablet sensível ao toque, para evitar que os pacientes falassem em demasia e perturbassem uns aos outros. Autofalantes direcionais faziam o som dos tablets só ser audível para quem estivesse próximo), e lá estava um dos muitos canais de notícia. Neste momento com a previsão do tempo, e mais algumas notícias rotineiras, Dário foi descrevendo para ela, com um certo humor:

_ Acidentes... Outro furacão, e adeus clima na micronésia... Guerras dentro das Zonas de Agressividade Livre, mas aquilo não é feito prá isso mesmo?... Comentaristas políticos, esse sujeito “fede”... O trivial, tem certeza que não quer assistir o Cartoon Network, querida?

Clarisse olhou para Dario com cara de poucos amigos.

_ Ok, Ok... Eu me rendo. _ Disse Dario, estendendo as palmas das mãos._ Viu, você acordou tão preocupada que nem viu as flores que lhe trouxe. Lírios, orquídeas e todas aquelas lindas e raras flores que você tanto gosta..._ E sorriu, com um daqueles belos sorrisos que Dario dava quando queria derreter sua Clarisse.
_ Ah, querido Dario... Sou tão boba às vezes não é? _ E desligando o tablet, puxou o rapaz com um daqueles beijos profundos que havia aprendido tão bem com ele.

Alguns sôfregos e ardentes beijos depois, Clarisse teve tempo de admirar as flores, e mesmo enquanto Dário ia buscar alguma coisa para ela beber, a doutora tomou o pequeno cartão digital que tremeluzia com a mensagem escolhida pelo namorado para acompanhar as flores, era um lindo poema, e ela leu, em sua voz musical, baixinho, um trecho:

"(...) a posse total do ser amado torna-se como uma obsessão; possuí-lo em sua carne e seu espírito; unir-se a ele numa transubstanciação tão perfeita que um passe a ser o outro em pensamentos, palavras e obras, tal é o comando do amor. E uma vez possuído, aninha-lo num cantinho, a coberto da ferocidade da vida e da natureza, e da maldade dos homens - e postar-se de fora, vigilante como um arcanjo, o gládio em punho, para que nenhuma ofensa lhe seja imposta, nenhum dano lhe sobrevenha. - Vinícius de Moraes”

Clarisse quase pode esquecer tudo o que aconteceu. Preencheu seu coração com amor, e preferiu crer na prática versão de que a bebida extremamente forte que tomou a fez delirar e trazer fantasmas do passado de volta. Dário vinha, amoroso, paciente e atencioso, com duas taças nas mãos, e foi dizendo:

_ Nem me pergunte como consegui as taças, me custaram caro, mas não precisa se preocupar consigo mesma, doutora querida, é apenas água mineral.

Clarisse sorriu, feliz. Clarisse sentia que poderia voar.
...
Na vazia sala de espera do pequeno mas muito bem equipado hospital do subúrbio parisiense que acolhera Clarisse, distante da enfermaria, um tablet deixado ligado sozinho, e que não precisava se preocupar em incomodar ninguém com seu barulho, sintonizava um canal de videoclipes. Uma mulher esquia e de longos cabelos escuros cantava um antigo, muito antigo sucesso. Era a memória digital da emissora que trazia a imortal Alanis Morrissette de volta, cantando com sentimento um de seus maiores sucessos, uma música chamada “Ironic”.
O sistema inteligente do tablet, no entanto, sabia varia, e vez em quando abria sobre a programação principal uma janela contendo um canal de notícias aleatório. E bem no meio do refrão da música de Alanis, de fato uma janela se abriu, girou e foi se acomodar no canto da tela, transmitindo um canal de notícias local, em que uma imagem mostrava uma rústica cruz de madeira enegrecida, montada em um lugar ermo, sobre a qual se via (era noite na imagem) a silhueta de uma mulher carbonizada e coberta por pequenos brilhos metálicos. O locutor dizia:

_ ...Exames de DNA confirmaram como sendo pertencente a Maigê Degrassieux, ou simplesmente MD, jovem garçonete e integrante da banda Recarga Retrô, vista pela última vez saindo com um homem não identificado da rave que acontece todas as sextas à noite no Point du Charm. Ainda não temos confirmação oficial, mas uma fonte nos indicou que a moça foi violentada, morta e crucificada, e depois ainda foi ateado fogo a seu corpo, exatamente nos mesmos padrões do Assassino da Cruz-de-Malta, dado como morto na prisão há um ano, quando um veículo orbital o levava de uma prisão orbital para outra na Lua. Autoridades suspeitam de um “copycat”, que em jargão policial significa outro assassino imitando o modo de agir de Cruz-de-Malta. Essas mesmas autoridades, no entanto, deram pela falta de um importante item nas cenas de crime armadas por Cruz-de-Malta: a “fada verde”...

Alheia a estes horrores, Alanis continuava com sua música contagiante, para uma platéia inexistente:

_ Isn't ironic, don't you think...? A little too Ironic and yeah! It's like rain, on your wedding day... A free ride when you've already paid... It's the good advice that you just didn't take... Who wuold've thought it figures...

Começo

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