Diferenças!

RPG:C7

Diferenças!

Autor: Wagner Ribeiro

Escrito em: 08/11/2003

Um grande casamento não acontece com a união do “casal perfeito”. Acontece quando um casal imperfeito aprende a se deliciar com suas diferenças. _ Dave Meurer.

Last Night (Blind Curve - Marillion)

Eram anos muito difíceis. Logo em 2148, depois da ameaça de Shiva, o planetóide Mahapurana que invadiu o Sistema Solar com a finalidade de aniquilar toda a vida humana, tudo virou um caos: com a destruição de toda a civilização depois da órbita de Júpiter e a devastação da superfície da República Marciana, além da perda incalculável de milhões de vidas, desapareceram também fontes de riquezas inestimáveis, como muitas jazidas de mineração, caras naves de carga e de passageiros, estações de pesquisa e comunicação, e até com a sede de algumas importantes empresas, como a Solar Ocean, que possuía a base operacional em Europa, uma lua joviana, cuja superfície foi devastada pela ira de Shiva.

A humanidade inteira estava de luto, e a beira da miséria. Em todos os cantos os recursos preciosos e escassos eram racionados, na tentativa de manter estável a trama social, que ameaçava se desvelar em anarquia e destruição. Todos sofriam, alguns, mais abastados, como sempre, sofriam menos, outros não tinham tanta sorte, outros, ainda menos bem-aventurados, se tornavam parias. A humanidade havia sido exposta à verdade sobre a agência conhecida por seus integrantes como Código 7. Agora todos sabiam que existiam pessoas acima de qualquer lei, que brincavam com vidas humanas e que trouxeram para a Terra a ira de uma entidade alienígena antiga e malévola que tentou, por sorte sem sucesso, extinguir toda a vida.

Os seres humanos são criaturas rancorosas, em sua maioria, e o bem maior a que prezam é a própria vida, sendo assim, precisavam de pessoas que expiassem os pecados da tal obscura agência, e elegeram para tal os agentes dela, os soldados, recrutados contra a própria vontade, seriam os Judas de todos.

Os grandes mentores, os homens chamados de O Senex, e a maioria de seus capitães, claro, ficaram longe do ódio do povo, até porque quem estava incitando o povo eram aqueles que eram contato da agência dentro do governo da Terra, chamados Os Intocáveis. Mas os agentes foram entregues a própria sorte, e deixados vagar, sendo alvo de perseguições, torturas e assassinatos. Proibidos de mudar a aparência, pelo mesmo ato legal que lhes garantiu cidadania e liberdade, tiveram que viver com o estigma de serem aqueles que quase causaram o armagedom.

...

O sofrimento nos torna mais sensíveis à grandeza oculta nas pequenas atitudes. _ Alcione Araújo.

Obrigados a morar com os pais de Ramirez, pois haviam perdido tudo para o governo, e depois, quando viram que suas simples presenças estavam causando dor e sofrimento por conta das perseguições das pessoas, foram obrigados e se arranjarem sozinhos, Amanda, Layla e o próprio Ramirez peregrinaram por diversos conjuntos habitacionais e acampamentos fornecidos pelo governo aos Desabrigados de Shiva. A dor os manteve ainda mais unidos, e o amor que sentiam foi posto a dura prova, pois tiveram que lutar juntos para proteger a filhinha, enfrentando filas quilométricas para obter comida, que às vezes mal dava para a bebê, e tendo que esconder o melhor possível suas identidades, trabalhando em empregos simplórios apenas para ter um teto decente ou a certeza de que Layla pudesse ter cuidados médicos e uma escola, passaram por uma das piores fases de suas vidas de casados, Ramirez e sua amada.

Mas, apesar de todo o cuidado, as pessoas à volta deles sempre acabavam descobrindo que eles eram C7 (a marca virou uma pesada cruz para aqueles que um dia salvaram toda a humanidade de horrores alienígenas sem fim), e tinham que mudar as pressas. Por sorte, talvez por causa da presença sempre carismática da pequena mas já luminosa Layla, eles nunca chegaram a ser feridos fisicamente. Entretanto as chagas no espírito se acumulavam, e, exaustos, desesperançados e profundamente tristes, Ramirez e Amanda já não tinham mais todo o frescor de antes.

...

Alguma Coisa Aconteceu (Mudaram as Estações - Cássia Eller)

Um homem que não chora tem mil razões para chorar. _ Stanislaw Ponte Preta.

Ramirez cerrou os olhos. Amanda estava sendo bastante dura com ele, mas ele acreditava que ela tinha suas razões, e preferia ouvir quieto, pois não queria que sua esposa, que ele tanto amava, ficasse ainda mais nervosa.

_ Io non suporto mais isso, Ramirez. Pelo amor de Deus! Io non suporto! Vamos mostrar prá eles quem é o monstro aqui! Eu pareço uma daquelas mulheres de documentários antigos, que tinham que viver cobertas por burcas! E, catzo, você agora vive com essa cara ridícula e fugindo pelos cantos. E some, caspita, some por um, dois dias! Qual é, Ramirez? A porra da cueca apertou o pinto pulou fora?! Ta de saco cheio? Eu também estou!

_ Amo vocês, Amanda... _ murmurou Ramirez, sentado na mesinha da cozinha do pequenino apartamento onde estavam morando em Salt Lake, nos EUA. Ele estava abatido, olhos fundos com uma expressão perdida, olhando o infinito, parecendo não ter coragem de encarar sua esposa. Ele sabia que ela estava no limite, e sabia que Amanda estava falando com rancor, mas que no fundo ela o queria bem. Ele ficava ouvindo ela falar, agressiva, e ficava, no fundo de seu orgulhoso coração de homem, pensando em apenas uma coisa: o amor que sentia por ela.

_ Ma amore non basta! Eu pensei que bastava, Ramirez, te juro! Eu te via como um deus, te fiz na minha cabeça o cara perfeito, pensei que por te amar assim, tanto, tanto, tanto, eu nunca precisaria de mais nada nessa vida! E te confesso, ainda agora, mesmo vendo você assim, com essa barba por fazer, cara de desânimo, de bêbado desempregado, eu ainda iria pro inferno contigo, stronzo, mas nós temos Layla! E io sei que não é culpa sua nem minha a merda dos filhos da puta da Agência terem deixado a gente prá trás. Mas você sumir assim, por dias, não ajuda em nada!

_ Eu trago dinheiro... _ Disse ele, olhos marejando de lágrimas doloridas. Sentia-se injustiçado, sendo espicaçado por Amanda, a mulher pela qual daria a própria vida. Ela estava triste, insegura, ele podia sentir, e ele ficava pensando: “fique calma, meu amor, fique calma, eu não a estou abandonando, não, enquanto eu viver vou cuidar de você, e vou honrar você...”, mas quando ele tentava abri a boca para dizer, Amanda gritava:

_ Mas me deixa sozinhaaaaa, merda! _ Explodiu Amanda, que se ressentia demais de toda a miséria e a humilhação que estavam passando. Não estava zangada com o marido, mas sim com a injustiça da vida, e o fato de ser deixada sozinha por longo tempo, trancada em um apartamento, cuidando da filha, com medo de tudo e de todos, não ajudava a manter a calma da fervente italiana. _ E para de chorar! Odeio homem que chora!

_ Sinto muito... Essa é minha natureza, sou assim. Se me emociono, choro. _ Disse ele, em voz baixa, mas com firmeza, desviando ainda mais o olhar para longe da mulher, que suspirou, frisou os olhos, e disse:

_ Sei que está fazendo o melhor que pode, mas isso não é suficiente para Layla, nossa filha merece mais que isso...

E ela faz um gesto amplo e raivoso, mostrando a apertada cozinha, onde tinham que preparar refeições a custa de rações do governo e o pouco que conseguiam encontrar e comprar.

_ Estamos vivendo assim há dois anos... _ murmurou, dolorosamente, Amanda _ e pelo visto vai ser assim para sempre... Desculpe, porra, você ta fazendo o que pode... Mas e Maya?

Ramirez repuxou a boca, pensando em sua filha mais velha. Na verdade, a mesma Layla bebê, só que vinda do futuro, e, segundo ela própria, presa no tempo atual. A moça, que havia desaparecido depois de salvar a si mesma pequena e ajudar a derrotar Shiva, apareceu seis meses atrás, dizendo ter corrido mundo, e ter adotado o nome de Maya. A moça era absurdamente reservada, uma linda jovem de cerca de vinte anos que parecia viver com medo. De fato, um dia, em prantos ela confessou, nos braços da mãe: tinha medo de que qualquer coisa que fizesse levasse a um terrível evento no futuro. O homem sentia seu coração em pedaços ao ver a filha, tão moça ainda, carregando tanta dor sobre os ombros, mas não podia fazer muito mais do que dar carinho a ela, já que Maya não queria falar sobre seus tormentos. Ele a aceitava como era, mas a mãe, inquieta como era, não conseguia aceitar a dor silenciosa da filha.

_ Ramirez, olhe para mim, estou falando de sua filha mais velha. Maya parece que está congelada ainda, pois não vive! Que se dane a humanidade toda odiar a gente, eu quero que minha filha tenha a vida mais normal que puder, e nenhum filho da puta do Sistema Solar vai impedir isso! Ramirez, olha prá mim! Eu quero uma vida para nós e para nossas filhas!!

O Homem abriu os olhos marejados, e respirou fundo, ainda sem encarar a linda e transtornada esposa, e ele foi dizendo:

_ Maya vai ficar bem. Vou conversar com ela amanhã. Todos vamos ficar bem...

_ Eu quero saber o que você anda fazendo quando some! Tenho esse direito, Ramirez, estou preoc... _ Disparou Amanda, mas o homem foi cortando dizendo:

_ Você fez isso comigo por muitos anos! Lembra? _ Disse, rispidamente, mas ainda sem olhar para ela. Agiu sem pensar, apenas cedeu, exausto que estava, a pressão do nervoso e da ansiedade que Amanda e ele próprio sentiam, e se arrependeu amargamente de ter dito aquilo assim que falou, mas era tarde.

Amanda ficou olhando para ele, furiosamente, por um longo momento, então se levantou, saiu da cozinha, e Ramirez a ouviu chamando a filhinha para brincar e batendo a porta do quarto. Maya, como sempre, estava fora. Enfurnada em alguma livraria, ou no telhado do edifício, onde costumava ficar sozinha, pensando, por horas, quando não estava trabalhando na biblioteca municipal ajudando a por em ordem os bancos de dados de lá.

Ramirez sabia que Amanda estava sob tremenda pressão, afinal de contas eles haviam decidido que ela deveria ficar com as filhas enquanto ele saia para arranjar emprego e dinheiro. A mãe leoa que era Amanda não conseguia se imaginar longe de sua bebê, e concordou, mas ela era uma mulher jovem e dinâmica demais para ficar trancada, enquanto o mundo lá fora rosnava para eles. Ramirez podia imaginar o que significava para a mulher ficar presa, era como tentar prender o vento ou a fúria do oceano, mas ele de fato estava se esforçando muito mesmo para dar algum conforto para elas. Quando viu a oportunidade de arrumar um emprego difícil, perigoso, mas que lhes assegurava um lugar para morar que não fosse um campo de refugiados, e uma ração de comida descente que dava para todos (ele já não agüentava mais mentir para Amanda que havia comido na rua quando trazia tudo o que conseguia para elas), agarrou a oportunidade. Ele sabia que se contasse à Amanda o que estava fazendo, ela o faria largar o emprego, e preferia morrer a ver suas garotas em um campo de refugiados de novo. Mas rezava todos os dias para que as coisas melhorassem, e para que Deus lhe permitisse ter saúde até que Amanda pudesse cuidar das filhas sozinha.

Sim, ele havia sido ferido por uma radiação em Shiva, para salvar Maya de ser morta, e essa radiação o estava matando. No começo, Amanda entrou em pânico, e por causa disso ele resolveu esconder os sintomas da doença, dizendo a ela que estava melhorando e já não sentia nada, mas sentia sim. Dores terríveis, e perda de visão.

Ficou sentado na mesinha da cozinha até que escurecesse, por cerca de duas horas, esperando voltar e enxergar. Ele não tinha coragem de dizer à Amanda que esses períodos de cegueira estavam aumentando, por isso tentava fingir que estava bem, embora morresse de medo de que ela percebesse e sofresse ao saber, por isso evitava olhar para ela.

Aos poucos, sua visão foi clareando, mesmo que ainda embaçada pelas lágrimas, e, por acaso, assim que conseguiu ver de novo, seu tablet pessoal tocou. Ele ativou o contato por voz (não queria que o vissem chorando) e disse:

_ Ramirez falando.

_ Áries, seguinte: o Capricórnio se afogou mergulhando atrás de uns figurões. Os chefes querem você assumindo o resgate agora.

_ Meu Deus, avisaram a mulher do Stan? Eu... Estou com problemas para sair hoje. _ Disse Ramirez, preocupado com o colega de trabalho morto, e pensando que seria um desastre ir trabalhar, e ficar preso no trabalho por mais um ou dois dias, logo depois de Amanda deixar tão claro que aquilo a angustiava.

_ Hey, irmãozinho, não mete essa pro teu camarada Aquário. Sabe que se não aparecer perde o trampo, e, olha só, vão pagar o triplo por esse mergulho. É grana para comprar o robô que disse que queria dar a tua esposa prá cuidar da casa prá ela, maluco! Vai ralar agora?

Sim, ele queria comprar uma máquina que ajudasse Amanda, na verdade, se pudesse, ele cobriria Amanda de ouro e jóias, de sedas e perfumes, ele a amava com devoção, mas também sabia ser prático aquele homem passional, e acima de tudo, tinha medo de perder aquele emprego.

_ Estou indo. Quero um perfil da missão pronto assim que eu chegar, e uma linha TT1 de conexão em alta velocidade.

_ Esse é meu filho de Marte, eu sabia que você não era um covarde, meu ariano! Vou deixar uma TT1 livre prá você, xará, vem voado.

Ramirez desligou o tablet e se levantou, ainda vacilando, as dores musculares geralmente vinham e sumiam junto com a cegueira, e desta vez ele teve de quase trincar os dentes para não grunhir de dor na frente de sua mulher. E, claro, ele não pretendia sair sem se despedir da esposa, mesmo que isso significasse mais alguns palavrões em italiano. Caminhou cuidadosamente até o único quarto do apartamento, e tocou a maçaneta. Estava aberta.

Abriu suavemente a porta, e viu uma cena delicada e enternecedora: Maya havia voltado, e dormiam, três das mulheres mais importantes da vida daquele homem, abraçadas, gentilmente ressonando, feito anjos.

_ Meus amores... _ Murmurou Ramirez, sorrindo _ Vou amar vocês para sempre, até o último dia de minha vida, aconteça o que acontecer.

E ele se foi.

...

Do Outro Lado (Aviso aos Navegantes - Lulu Santos)

No coração da cultura da Internet encontra-se uma força que quer saber tudo a seu respeito. _ Andrew Grove.

A VRNet é na verdade a alma do imenso hipercomputador no qual se transformou toda a malha de computadores, sob suas mais diversos formas, que povoa a Terra e todo o Sistema Solar. Ela é uma vasta matriz de dados, que ordena o fluxo de informações e comunicações de todos os bilhões de humanos e máquinas que dependiam dela para conversar, estudar, investir, produzir e viver. E a VRNet “falava” com seus usuários indiretamente, ordenando o fluxo de informações que eles solicitavam _ exibindo um relatório, uma imagem, um processo _ ou diretamente, quando um usuário “mergulhava” nos mundos virtuais da rede, podendo interagir com as informações sob a forma de um personagem virtual, um “avatar” de si mesmo. Dependendo da profundidade do “mergulho” o usuário conectado à rede experimenta capacidades e perigos cada vez maiores. Não é tão raro quanto se pensa que uma pessoa se perca nas imensas marés de dados da VRNet, e quando isso acontecia, mandava-se atrás dela um DataDiver, uma espécie de policial-bombeiro-paramédico do governo mundial responsável por resgatar dados e pessoas perdidas nas correntes profundas da rede.

Mas mesmo esses “mergulhadores” do espaço interior às vezes não tinham coragem (sim, uma mente perdida dentro da VRNet significava um corpo em coma ou morto aqui fora) ou permissão de ir além de um certo limite, e quando os bem pagos DataDivers não arriscavam seus pescoços, sempre se podia apelar para um bando de caçadores de dados malucos, que arriscavam suas vidas por pouca grana e muita emoção. Esses eram os MadDivers.

Mas mesmo entre os mergulhadores pirados existiam aqueles que tentavam fazer algo de útil, e que se dedicavam a salvar vidas e informações realmente preciosas, e é nesta classe que se enquadra a empresa de MadDiver para a qual Ramirez trabalhava. Eles se chamam simplesmente Finders, são sempre em número de doze “mergulhadores”, e vão tão fundo quanto for preciso para salvar uma vida, ou impedir que uma vida seja destruída por causa de uma informação perdida.

...

Solidão não é estar sozinho, é não se estar com quem se quer. _ Sonia Kamiya.

_ Como é que é?! _ Fez Ramirez, incrédulo. Ele estava na ante-sala de preparo do tanque de VRDiver 25 no prédio subterrâneo da Finders em Salt Lake City.

_ É isso mesmo, xará, temos uma Madre Teresa de Calcutá lá dentro. A DataDiver não quis sair quando foi ordenada, porque simplesmente não ia deixar civis desprotegidos para trás.

_ Virgem, fala sério. Se essa mulher realmente está se arriscando assim, parabéns para ela, mas eu nunca vi um “governo”(1) se arriscar a perder o emprego assim.

_ Você é uma figura, mané. A mulher ta sendo uma completa otária, e você já ta admirando ela. _ Disse a garota cujo nickname (2) era Virgem (ela fazia questão de frisar, especialmente para Ramirez, que aquilo era só seu nick. E ele, sempre fiel a sua esposa, fazia questão de se fingir de desentendido), ajudando Ramirez a plantar os sensores sobre o peito nu. Virgem sempre arrumava um jeito de ajudar Áries a se preparar para os mergulhos. _ Agora abre os braços que vou passar o gel dessenzibilizante, ariano. Ei, o Aquário mandou entregar esse tablet ali, ó. Ele disse que teu perfil da missão ta todo nele.

Enquanto Virgem massageava as costas largas de Ramirez com o gel _ que faria com que toda a sua pele ficasse dormente dentro do aminiolink (3) e permitisse uma conexão sem fatores alérgicos _ o homem examinava os dados:

_ Eis a pessoa que tenho que trazer de volta, ela é uma mulher muito bonita, olhos ao mesmo tempo inocentes e fortes, e decidiu ficar para trás enquanto o seu grupo de mergulho voltou, simplesmente porque não admitia deixar inocentes para trás. _ Ramirez fez questão de não falar em voz alta, com receio de ser impedido de última hora de ir atrás da brava DataDiver, mas ele também não pretendia sair da VRNet sem trazer todos os inocentes que a médica havia se arriscado para salvar _ Doutora Laura Dias, PHD em Neurologia e Interfaces Neurais, é uma DataDiver especializada em recuperação de mentes em... _ E Ramirez, brincalhão, fez uma pausa dramática para enfatizar a formação da doutora Laura _ ... Recuperação de Mentes em Dispersão Quântica de RV profunda. Meu Deus do céu, eu nem faço idéia do que é isso, já ouviu falar em “dispersão quântica”, Virgem?

_ Hã, ah, claro Ramirez, claro. Eu já te disse que você tem uma pele muito macia? _ Disse a garota, voz lânguida e insinuante, enquanto passava o gel nas coxas do homem.

_ Virgem... Jane... _ Fez Ramirez, tentando se desvencilhar dela gentilmente.

_ Oh, desculpe, é que eu adoro sujeitos com cara de homem, assim, feito você!

_ Virgem, acho que já está bom de gel. _ Disse Ramirez, com seu sempre gentil, mas fulminantemente charmoso sorriso, enquanto se afastava dela, se levantando. A moça deixou suas mãos correrem pelas pernas dele quando o mergulhador se levantou, e apreciou cada centímetro de pele em que tocou.

_ Tudo bem, Áries. Tudo bem. Mas porque, afinal de contas, não apresenta prá gente essa deusa que você ama, e que te faz dispensar uma loirinha toda linda feito eu? _ Disse ela, toda faceira, ciente de que era de fato uma garota de 19 anos capaz de paralisar o trânsito.

_ Porque _ foi dizendo Ramirez, caminhando em direção ao tanque de imersão, e ajeitando o seu neurolink (4) sobre a têmpora direita _ ela não precisa saber que eu posso virar um zumbi sem mente, feito o pobre do Stan.

_ Se isso acontecer, eu vou achar uma lástima não ter te experimentado antes. Mas, enfim, a tua Fadinha (não é assim que você a chama quando grava recados em seu tablet para ela?) vai ficar sabendo, afinal de contas vão te entregar em casa dentro de um saco plástico preto.

Ramirez preferiu ignorar a brincadeira sem graça da colega, e entrou no compartimento estanque, a antecâmara do tanque de mergulho VRDiver 25.

_ Procedimento padrão. Ramirez Martins, Guilherme. Nickname Áries. Sou um Diver treinado, estou plenamente saudável e consciente, e aceito o contrato de mergulho para a Agência Finders. Qualquer seqüela que eu venha a sofrer depois desta porta, inclusive morte cerebral, é responsabilidade minha. Ei, CM (5), confirma aí em cima, esse meu mergulho vai valer seis vezes o pagamento normal...

_ Três vezes, Ramirez... _ Veio a resposta jocosa.

_ Droga! _ Fez Ramirez, fingindo estar decepcionado _ Pensei que você ia deixar escapar um sim, e eu iria finalmente ter dinheiro para me mudar para o Brasil e comprar de volta a casa que minha mulher ama, Greg.

_ Não vai ser dessa vez que vai me enganar, Áries. E eu sou “senhor” Escorpião para você, não é porque é um dos nossos melhores caras que pode se achar estrela e querer ganhar demais não. O que seria da Finders sem seus mergulhadores escravos?

_ Disse tudo, Escorpião. Estou pronto, e as luzes do compartimento estanque já me deixaram limpo. Pode abrir a porta para o “quarto escuro dos pesadelos” para mim, por favor...

Apesar do gracejo, era sempre uma sensação incômoda para Ramirez, homem habituado a luz do sol e ao mar, entrar dentro do casulo do tanque de mergulho. Lugar escuro, com atmosfera densa formada por uma nuvem de nanomeks (6) responsáveis por permear seu corpo e espalhar por todas as suas células o campo de imersão (7). A nuvem de micro-mecanismos o ajudava a se conectar a VRNet, mas dificultava bastante a sua respiração normal. Um som abafado e sombrio preenchia toda a sala em forma de cúpula, com seus quarenta metros quadrados, e bem no centro, para onde o piso de toda a sala se inclinava ligeiramente, um tanque de “águas” negras, o tanque de mergulho virtual cheio de aminiolink. Ramirez sabia que o líquido era extremamente rico em oxigênio, e que poderia respirar dentro dele, mas era sempre uma agonia aspirar o caldo oleoso para dentro dos pulmões.

Vestindo apenas uma sunga de banho, e com a pele se arrepiando pela interação entre o gel que Virgem passou sobre ele e as nuvens de nanomeks, Ramirez caminhou até o tanque, colocou um umbilical sobre o peito, fez a conexão dos pequenos filamento óticos ao seu neurolink, e pôs o sistema para funcionar, dizendo em voz alta:

_ Estou no tanque. Peço permissão do CM para mergulhar.

_ Liberado, Áries, e boa sorte.

Sem pressa, Ramirez se sentou a beira do tanque, e deslizou para dentro da água como um sujeito nascido no Havaí e com grande intimidade com o mar faria. Depois de engasgar e tossir um pouco (a cada mergulho sofria menos para inalar o aminiolink), seu corpo foi se encolhendo, naturalmente, para uma posição fetal, e sua mente foi se desligando do mundo físico, e caindo, caindo, caindo dentro das camadas mais profundas, obscuras, e cheias de pesadelos da VRNet.

Enquanto descia, Ramirez só conseguia se sentir mais e mais só, e ansiava pelo abraço de Amanda, apenas um abraço, e nada mais, pois sentia uma falta desesperada dela, como um afogado sentindo falta de ar para respirar. Mas tudo o que tinha era uma voz obscura e lúgubre vinda de seu subconsciente que teimava em repetir uma frase que ele havia lido, ou ouvido, em algum lugar:

_ Ao morrer... Todos estamos sós...

...

Teu Encanto de Sereia (Ciclo Milenar - Jorge Vercilo / Firestarter - Prodigy)

Você se pergunta: quem sou eu para ser brilhante, belo, talentoso e fabuloso? Na realidade (diante de Deus) quem é você para não sê-lo? _ Marianne Wialliamson (adaptação)

A mulher estava correndo sozinha em uma imensa planície de neve branca, escarpada e rochosa. Ela corria com uma elegância singela, em um passo de maratona. Levava uma pequena mochila nas costas, e estava paramentada com roupas adequadas para sobreviver ali.

Estava do Tibet, no ano de 1997, em pleno regime tirânico chinês sobre os habitantes daquela pacífica nação. O regime pretendia anexar aquele país e esmagar sua cultura, seu povo, e sua fé. Soldados chineses passaram a invadir e morar em mosteiros budistas, tentando fazer o povo tibetano renunciar à liderança espiritual do Dalai Lama, que vivia no exílio na Índia. Milhares de pessoas, perseguidas pelo regime chinês, tentavam uma fuga desesperada, cruzando a fronteira para o Nepal, enfrentando o gelo e as montanhas. Monges e monjas em fuga, levando suas crianças consigo, muitas vezes morriam de frio e fome, nas encostas geladas, tentando alcançar a liberdade.

A mulher, correndo com a leveza de uma atleta olímpica, sabia que embora aquilo correspondesse exatamente ao que havia ocorrido de fato no Tibet do século vinte, este lugar à volta dela, cada floco de neve, cada nuance de cor, e quase todas as pessoas que encontrava pelo caminho não eram reais. Mesmo sabendo que tudo aquilo era uma simulação, que tudo era realidade virtual dentro de uma bolha de memória quântica da VRNet, ainda assim ela tinha que usar todo o poder de sua concentração treinada de DataDiver para não sentir o frio cortante, nem a fadiga muscular de estar correndo a quase três mil metros acima do nível do mar há mais de hora e meia. Entretanto mesmo que ela sentisse toda a fadiga e a dor, ainda assim não desistiria, pois a doutora Laura Dias nunca se permitia desistir quando uma pessoa inocente precisava dela.

Laura, por baixo de suas roupas térmicas, era uma negra de formas generosas e torneadas, musculatura talhada pelo esporte e pela profissão (manter o corpo em forma, com seções de ioga e Tai-Kuon-Do era disciplina quase diária da elegante médica), o que fazia a DataDiver possuir uma exótica e impressionante beleza, com seus olhos doces e determinados, cor de mel, e seus cacheados cabelos castanhos.

Mas pouca coisa em sua aparência poderia preparar um pretendente para a imensa beleza de seu coração e de seu caráter. Jovem, com apenas 28 anos, era determinada, embora gentil e generosa. Havia se formado muito nova ainda, com meros 20 anos, em medicina e se especializado em neurologia, indo trabalhar para o governo quase no mesmo momento em que se graduou, e passando rapidamente a fazer parte de uma das equipes de DataDivers responsáveis pelo resgate de pessoas em “VRComa”, como eles chamavam o estado clínico de um usuário que perdia sua mente dentro da rede. Codinome Sheydiaz, ela rapidamente se tornou uma das mais talentosas “mergulhadoras” de sua equipe, e estava para ser promovida a líder, quando foi destacada para esta missão.

Um grupo de historiadores e programadores de Inteligências Artificiais _ ou apenas IA _ acompanhados de seus filhos e cônjuges, haviam mergulhado neste mundo simulando o Tibet antigo, com a finalidade de estudar os eventos da época, e desenvolver algumas IA que simulariam mais detalhadamente monges e monjas de então, para verificar alguns algoritmos sencientes capazes de nuances filosófico-religiosas, ou seja, seres artificiais capazes de ter e sentir fé. Tudo corria bem, até que uma sobrecarga neural vinda ninguém soube explicar de onde fez com que todos os usuários imersos ali ficassem presos em um ciclo de repetição, onde passaram a acreditar que eram pessoas mesmo da época: um grupo de monges, monjas e crianças fugindo para o Nepal. Deste modo, precisavam de alguém que chegasse até eles, e os despertasse sutilmente. Para isso foram destacados a médica Sheydiaz e sua equipe.

A missão correu bem no início, e os DataDivers convenceram os refugiados que eram de uma força de paz da ONU, e que pretendiam escolta-los até um ponto em Katmandu, no Nepal, ponto este que na verdade era uma via de escape daquela realidade, por onde poderiam tirar as pessoas que vieram resgatar daquela prisão virtual. Mas no meio do caminho foram atacados por um grupo de soldados sem identificação, mas possivelmente chineses, e todos os refugiados foram mortos (o que causava um coma irreversível, e às vezes a morte verdadeira, ao corpo adormecido no mundo real), a exceção das crianças, levadas pelos soldados. Da equipe de seis DataDivers de Sheydiaz, só ela e mais dois sobraram.

Neste momento, o oficial que estava no Comando da Missão mandou que todos os DataDivers voltassem. Laura se recusou a deixar as crianças para trás, sendo violentamente coagida pelo comando, que alegava que outra equipe iria resgatar as crianças, mas isso não convenceu a doutora, que acabou tendo que lutar com os próprios colegas para ficar e ajudar os inocentes levados pelos soldados. Lembrando disso, Sheydiaz perdeu um pouco da concentração e do fôlego, parando um pouco no sopé de um rochedo gelado. O céu era de um azul profundo e sem nuvens, e ela respirou fundo, em grandes goles, o ar congelado. Era como aspirar pequeninas navalhas, e isto a fez lacrimejar, e curvar o belo corpo para frente, apoiando-se nos joelhos, esforçando-se para voltar a se concentrar.

_ As crianças, Laura... Elas... Precisam de você. _ Disse para si mesma, com sua voz ligeiramente rouca, geralmente macia e doce, mas agora cheia de tenacidade e perseverança, apesar de ofegante. Ela realmente precisava fixar a imagem das crianças, dois meninos e uma menina, sendo levadas pelos soldados, para conseguir esquecer que teve que lutar até a morte com um dos colegas. Um deles desistiu e fugiu para Katmandu, o outro, o estressado agente Kind, um velho colega de academia, possesso, tentou empurrar Sheydiaz em um desfiladeiro, e, por mais que ela se horrorizasse com a única saída possível, não teve outra escolha senão joga-lo primeiro. Toda vez que lembrava disso seu estômago revirava, ela sentia náuseas, e um remorso profundo tomava conta de seu bondoso coração. Mas ela não podia ter feito outra coisa, se tivesse deixado o homem ganhar, as crianças estariam entregues a própria sorte. _ Que se dane! _ Disse sem convicção nenhuma, tentando espantar o remorso _ As crianças precisam de mim. Elas precisam muito de mim..

E Sheydiaz voltou a correr, primeiro devagar, com esforço, depois acelerando como se fosse uma máquina, concentrando toda a sua vontade em burlar as leis naturais de dentro da VRnet para que ela pudesse suportar a dor de correr sem parar, por quilômetros sem fim, seguindo seu instinto apurado de Diver, que indicava onde ela poderia encontrar outras “pessoas reais” como ela dentro daquele mundo. Como essa simulação estava trancada a qualquer outro usuário (procedimento padrão durante uma intervenção DataDiver) então onde seu sentido dizia ser o caminho para encontrar outros usuários humanos, só poderia levar às crianças.

...

I Feel (I Feel Good - James Brown / Block Rockin' Beats - Chemical Brothers)

Uma pessoa realmente grande é aquela que nos dá uma chance. _ Paul Duffy.

_ Qual a primeira coisa que você vai fazer quando mergulhar e “aparecer” lá embaixo? _ Perguntou o instrutor de Ramirez em seu primeiro dia de aula, há quatro meses atrás, quando o marido de Amanda teve que aprender a ser um Diver às pressas, para não perder a oportunidade de emprego.

_ Me situar, saber onde estou, porque o algorítimo que modela cada mundo se auto-regula e ele vai me fazer “aparecer” em algum lugar coerente mas... _ Começou a responder o ex-policial, ao que o homem que o instruía gritou:

_ Abrir os olhos, Áries, abrir apenas seus malditos olhos, recruta!

Foi lembrando da resposta grosseira de seu instrutor, que Ramirez sentiu a descarga elétrica por todo o seu corpo enquanto ele era “materializado” dentro daquele mundo da VRNet. Logo a seguir ele abriu seus olhos devagar.

De fato, o programa que gerenciava os mundos virtuais colocava cada Diver em um local o mais próximo possível do alvo escolhido pelos operadores do CM, mas como o sistema se auto-regulava, e como era necessário que o “mergulhador” surgisse em um ponto onde ninguém estivesse prestando atenção naquele exato segundo, de modo que a sensação de realidade não fosse abalada, a pessoa que “entrava” surgia sempre em algum ponto aleatório, e sempre de olhos fechados.

Ramirez estava de pé, em um canto pouco iluminado de algo que poderia ser uma hospedaria. Alguém abriu uma porta na parede oposta e entrou, trazendo consigo uma lufada de ar gélido e rusgas de neve. O lugar estava apinhado de pessoas, mas ninguém (como era de se esperar) estava prestando atenção a ele. Áries passaria por apenas mais um turista, um montanhista com trajes térmicos para o frio, botas espessas com travas, uma pesada mochila de campanha com equipamento de escalada e rações, além de uma pistola 765 com munição extra, escondida em um discreto coldre com velcro na parte interna do casaco.

_ Ótimo, pelo menos desta vez tenho uma arma. _ Murmurou.

_ Passe para cá a arma! _ Disse uma voz masculina ansiosa vinda das sombras detrás dele, enquanto Ramirez sentia uma pontada nas costas, uma lâmina ou uma arma. Pensou em como poderia usar um golpe de arte marcial para desarmar seu agressor, mas tentou lembrar que aquilo ali era um mundo da VRNet, não algum tolo filme antigo de ação, e que deveria tentar ser discreto sempre que possível, para que os algoritmos daquela realidade não se voltassem contra ele.

_ Calma, amigo, não faça uma besteira, pode chamar a atenção e ser preso, este lugar está cheio de gente. _ Enquanto falava, Ramirez se concentrou em fazer o “download” de um software de tradução para as línguas locais que poderia ser muito útil se seu “amigo” de repente parasse de falar inglês.

_ Então passa rápido a arma! _ Disse o agressor, tossindo um pouco _ Não me importo, sou um homem desesperado, preciso sair daqui e encontrar Dadon.

_ Dadon é alguém que precisa de ajuda?

_ Sim, minha sobrinha, levada por guardas amaldiçoados de volta ao Tibet.

_ Escute, eu sou um soldado da força de paz da ONU, em missão secreta de auxílio aos tibetanos foragidos, vou colocar minhas mãos bem a vista, assim, e vou me virar devagar. Vou lhe mostrar minhas credenciais, então vou ajudar o senhor a achar sua sobrinha, está bem? _ E enquanto falava, Ramirez foi virando bem devagar. O homem vacilou, mas não fez nenhuma menção de agredi-lo, e então, quando Áries o olhou de frente, pode fitar os olhos do pobre homem, que não conseguiu desviar o olhar do Diver, que “escaneou” sua identidade virtual, e confirmou que aquele homem era real, uma das pessoas que haviam ficado presas naquele mundo e que foram dadas como mortas. Na verdade, a um pedido mental seu, Ramirez teve ciência da identidade do homem, um programador da KORTEX chamado Palden Gyatsu, de origem realmente tibetada, mas nascido em 2.087 no mundo real. Ao que pôde entender, o homem ainda estava pensando que era um monge budista fugindo dos chineses. Áries tentou traze-lo a razão: _ Senhor, preciso levar o senhor de volta. Monges não agem assim, nem mesmo no desespero... O senhor tem que voltar à realidade comigo, precisa de um médico.

_ Não, não... _ Foi a resposta fraca mas convicta do homem, que surgiu das sombras como um pobre ancião vestindo um hábito vermelho-escuro e profundamente desgastado pelo frio, segurando um caco de vidro que lhe feria as mãos _ Minha sobrinha foi levada por chineses, precisa ajuda-la, ela e outras duas crianças foram levadas. Serão interrogadas e torturadas, por favor, ajude-as.

_ Para onde eles as levaram? _ Perguntou Ramirez, enquanto tentava chamar mentalmente o CM e pedir a retirada do homem dali, aproveitando a mesma brecha que foi usada para levar o Diver para dentro.

_ Pelo desfiladeiro de Nangpa La, onde eles emboscaram a nós e a alguns soldados como o senhor a umas duas horas atrás, e levaram nossas crianças. Pensaram que eu havia morrido, mas eu tinha apenas perdido os sentidos. Por favor, senhor, traga Dadon de volta.

_ Eu trarei, senhor, lhe dou minha palavra. _ Disse Ramirez, enquanto colocava gentilmente a mão sobre o peito do velho e cansado monge, e emitia através da aura de seu corpo virtual um fluxo de dados que acalmaria o ancião, e prepararia sua mente para voltar ao mundo real. Assim que ouviu em sua mente a voz de Escorpião dizendo “pode mandar o homem”, Ramirez aumentou o fluxo de dados tranqüilizantes e Gyatsu desfaleceu em seus braços, desaparecendo suavemente no ar, como se nunca houvesse estado ali. Em algum lugar lá fora, o senhor Palden Gyatsu era retirado do mergulho e tratado por uma equipe de médicos.

As coisas estavam começando muito bem para o Diver Áries. Mal chegou e já havia salvo uma vida.

...

É típico do futuro ser perigoso... Os principais avanços da civilização são processos, todos eles, que destroem as sociedades em que ocorrem. _ Alfred North Withehead.

Ramirez olhou a sua volta e fechou os olhos, como se meditasse, e disse em pensamento:

“Greg, ele chegou bem?”

“Parece que vai ficar bem. Está em choque, mas vai sair dessa. O que vai fazer agora? Não pudemos ouvir o que conversaram, a comunicação está ruim.”

“Ele disse que a sobrinha foi levada por chineses. Vou atrás dela.”

“Seu alvo é a dout... Sheydiaz, ela é... mirez, deve cuidar de trazer Laura de volta, sã e salva.”

“A menina raptada é uma das crianças atrás das quais a doutora Laura está, então encontrar as crianças é o meio mais rápido de encontrar a médica. E por outro lado, se essa criança for uma menina real? Não havia crianças no grupo? E se alguma criança sobreviveu mesmo? Não posso deixar de investigar isto.”

“...amirez, sua missão!” _ veio a mensagem truncada.

“Greg, eu dei minha palavra que traria a menina de volta. E a comunicação está falha mesmo, vou cortar o elo. Não se preocupe, tudo sempre acaba bem.” _ Pensou o Diver, com seu sorriso charmoso. Com a força de sua vontade cortou e elo telepático com o CM, diante dos veementes protestos de Escorpião. De novo, Ramirez estava só.

Informou-se com outros turistas, e ficou sabendo que aquele ali era o alojamento para turistas de Benkar, no Nepal, e que estavam todos apreensivos com o fato de estar correndo boatos de incursões de soldados de forças especiais chinesas pelas trilhas das montanhas. Os tais homens usariam uniformes pretos, sem nenhuma identificação, e já teriam feito vítimas. Autoridades nepalesas estavam vindo para Benkar averiguar o fato, mas levariam dias, visto a região estar sob nevascas há duas semanas.

Áries achou que não deveria perder mais nem um minuto, e lançou mão de seus equipamentos, saindo do alojamento sob o olhar de reprovação de turistas e nepalenses, e seguiu trilha acima, em direção aos desfiladeiros. Assim que teve certeza de que estava sozinho, aspirou profundamente o ar, juntou as mãos lentamente diante do amplo e forte peito, e manteve silenciosa postura de meditação, estava concentrando suas forças para, subitamente, como realmente o fez, começar a correr a largos passos, subindo a trilha mais rapidamente e agilmente que o mais experiente dos guias sherpas poderia fazer.

Ele galgava a trilha sob as frias e cortantes rajadas de neve, enxergando mais, correndo mais, e saltando mais que qualquer pessoa no mundo real poderia fazer. Mais que qualquer "programa" ali poderia fazer, a não ser outro Diver. O que deixava ramirez com a certeza de que poderia deixar facilmente qualquer destacamento chinês para trás.

Correu assim por quatro horas, certo de que não seria notado.

Ledo engano. Entre dois afloramentos rochosos, Ramirez viu apenas sombras negras saltando na sua frente. Uma delas aplicando no Diver um violento e inesperado chute, que o fez cair para trás, recuando quase dois metros.

Ramirez se levantou e girou ambos os braços em um lento e gracioso movimento, terminando em uma sólida base de luta, com ambos os pés firmemente plantados no chão. Seus atacantes avançaram, e todos se engalfinharam em uma profusão de golpes. Ramirez atacou alternando socos de Kravmagá com chutes violentos de Muay Tay, contra as vigorosas manobras de Kung Fu de seus oponentes.

Áries lutava bravamente com os três homens cerca de vinte centímetros mais baixos que ele, mas excelentes adversários. Vestiam fardas pretas e usavam gorros de lã negra que deixava apenas seus olhos rasgados à mostra. O Diver estava surpreso que “programas” simulando soldados chineses conseguissem aquela rapidez de golpes.

"Que merda! Esses caras lutam em formas da Arte que eu desconheço. Preciso me concentrar mais, ficar mais sereno, preciso agir sem raciocinar..." _ E pensando assim, enquanto desviava socos e chutes mortais, Áries refinou sua luta, desligando sua mente da ira e deixando que a porção incosnciente de sua mente guiasse suas mãos e pernas. Por um breve momento ele ficou superior aos seus oponentes, derrubando dois deles e mantendo o outro acuado. Isso deixou Ramirez com a sensação de que sua vitória deveria ocorrer a qualquer momento.

Estava enganado de novo. Os três lutadores começaram a acelerar os golpes de tal maneira que Ramirez não mais conseguia aplicar nenhuma manobra ofensiva, ficando apenas na defensiva, aparando golpes e mais golpes a uma velocidade cada vez mais alta. Os combatentes se moviam quase mais rápido do que o olho humano pdoeria acompanhar, e eram já vultos empenhados em uma dança mortal.

Arremessado diversas vezes contra as paredes de rochas, e quase despencando desfiladeiro abaixo por mais de uma vez, Ramirez estava tentando achar um meio de escapar com vida daquilo quando alguém arremessou um sinalizador incandescente bem no meio da briga, e os soldados de preto recuaram, parecendo aturdidos com a chama. Então uma linda mulher de pele negra entrou em cena, carregando outro sinalizador. Ramirez, tonto pelos golpes terríveis que recebeu, levou um longo momento para identificar a doutora Laura Dias.

Como os soldados de fato recuavam, acuados pela luz branca e cegante do sinalizador, Laura pegou com a mão desocupada o sinalizador arremessado por ela e que ardia no chão, e estendeu ambos na direção dos atacantes, que pareceram encolher diante da chama branca.

_ Eles têm horror ao fogo, esses demônios. Achei que fossem mesmo soldados chineses, mas soldados chineses são só homens. Essas coisas são vírus de computador!

_ Doutora Laura _ Disse Ramirez, recuperando o fôlego _ Eu vim buscar você...

_ Cala a boca e não tira os olhos deles.

Ramirez era um homem extremamente pacífico. Não costumava ser agressivo sem a devida necessidade ou com pessoas que não pudesse enfrentar de igual para igual, pelo menos. Enquanto Áries lutava com os tais soldados, havia tido a oportunidade de olhar nos olhos deles, e ver que de fato eles não eram criaturas normais. Não eram reais, nem tampouco geravam uma leitura de programas. Chamá-los de vírus era precipitação, mas com certeza humanos não eram. O que precipitou a decisão do Diver: Áries sacou sua pistola e disparou duas vezes, acertando dois deles nos joelhos. Estes caíram no chão sem emitir um som, embora se contorcessem aparentando alguma dor. O terceiro ameaçou saltar sobre Laura, mas esta levantou seus sinalizadores, e ele voltou a recuar, o que fez a médica baixar a guarda. Então o soldado ainda sem ferimentos saltou sobre ela. Ao que Ramirez saltou também, tirando-a da frente do agressor meio segundo antes de este passar, com uma faca de campanha afiada na mão, que a criatura sacou de uma bainha na perna enquanto pulava sobre a médica.

O atacante ileso fugiu, veloz como um raio, e Áries e Sheydiaz caíram na neve, abraçados, a tempo de verem os outros dois feridos sacarem suas facas e cravarem em seus próprios peitos, suicidando-se ambos, mais uma vez sem deixar escapar um único grunhido de dor.

A mulher, que com suas formas generosas (perceptíveis mesmo sob a roupa de frio) havia ficado por baixo do homem, agarrou o rosto dele, e o encarou bem de perto. Sabendo que Sheydiaz queria “escaneá-lo” e verificar sua real identidade, ele não opôs resistência. Áries sabia que as barreiras em sua mente só a deixariam saber o essencial. A um centímetro um do outro, eles se olhavam bem dentro dos olhos por um longo e “caloroso” momento.

_ Ficar deitado sobre você não é o que eu chamaria de desagradável, doutora, mas tenho que lhe ser franco: eu sou casado. _ Disse Ramirez, ainda encarando a moçca, e sorrindo levemente, tentando dar um tom brincalhão à voz para amenizar a selvageria do momento de luta pelo qual haviam passado.

Subitamente tímida, ela desviou o olhar do dele, e, em pensamento, concordou que ficar ali, deitada sob aquele homem muito atraente, com um sorriso sedutor, másculo e quente, era uma alternativa muito confortável a correr no gelo. Mas então se esforçou para se concentrar em sua missão, resgatar as crianças. Aquele Diver, que ela havia identificado pelo contato visual como sendo um “caçador de recompensas” (9), não a iria arrancar dali sem que ela resgatasse as crianças.

Levantando-se, ela limpou a neve de seu casaco térmico enquanto o MadDiver foi dizendo:

_ Quem eram esses... “Soldados”?

_ Não sei. São programas muito anormais. _ Ramirez percebia na voz da doutora que ela se esforçava corajosamente para lidar com toda aquela violência. A jovem continuou a falar _ Não sei o que eles querem, só sei que esses três ficaram para trás para me atrasar, enquanto outros quatro levaram as crianças do grupo que vim resgatar. São uma menina e dois meninos reais... Olha, cara, nem você nem ninguém mais vai conseguir me arrancar daqui sem essas crianças.

Ramirez ficou subitamente muito sério, e encarou a médica, que chegava a altura de seu nariz. Os olhos dela, bastante amendoados, tinham um brilho sereno, doce, mas determinado, e o homem a achou ainda mais bela que a imagem do perfil da missão. Pois encarando-a, então ele disse:

_ Nem passou pela minha cabeça sair daqui sem levar as crianças, Laura. Minha missão, creio que sabe, é te levar de volta sim, mas eu tenho filhas, e não deixaria jamais ninguém para trás, ainda mais sendo crianças. Para que lado vamos seguir?

_ Vai comigo? _ Disse a médica, incrédula que um MadDiver fosse arriscar ficar sem pagamento descumprindo ordens de missão por uma causa tão altruísta.

Ele juntou algumas de suas coisas, espalhadas durante a luta pelo chão, e disse, fitando-a nos olhos de novo:

_ Eu também não volto sem elas. Ambos temos um vetor de saída em Katmandu, então vamos na mesma direção, tanto para o Tibet para pegar nossas crianças, como de volta, para tirar elas em segurança daqui. Sim, eu vou contigo, Sheydiaz.

Laura preferiu ficar quieta, e ambos começaram a subir a trilha de novo. Após alguns minutos de caminhada (estavam cansados demais para correr agora, teriam de recuperar o fôlego ainda por mais alguns minutos), a médica sorriu, exibindo um par de covinhas que a deixavam com ar de menina arteira, e disse:

_ Tem comida aí?

_ Claro, tome. _ Foi a resposta de Áries, tirando da mochila um impermeável com barras de cereais e chocolates dentro.

_ Você não me disse seu nome, só sei seu nick pelo contato visual. Eu perdi minhas rações, e estou morrendo de fome, obrigada. _ Disse a linda médica, enchendo a boca de chocolates feito uma menina, e cobrindo o empolgante sorriso com uma das mãos.

_ Me chamo Ramirez, Guilherme Ramirez Martins. Coma a vontade, isso vai te ajudar a se concentrar mais rápido... Você me faz lembrar alguém... _ Disse ele, com seu sorriso bonitão, olhando apra ela por um momento, de lado, e voltando a prestar cuidadosa atenção no caminho a frente. Ramirez não pretendia ser pego de surpresa de novo.

_ Legal? _ Perguntou Laura.

_ O quê?

_ A pessoa que te faço lembrar, é legal?

_ Muito. Minha irmã, Milena. Se ela estivesse aqui, também nunca desistiria das crianças.

Com o cantinho de seus belos olhos castanhos e amendoados, a médica fitou o homem, que continuava a apontar um olhar aquilino para frente, como se nada pudesse escapar de seus olhos azuis.

Laura estava começando a achar possível gostar do sujeito.

...

Inevitável (Inevitable – Shakira)

O amor não “acontece”: ele é construído. _ Cindy Francis / Tereza Maldonado.

Na manhã seguinte, Amanda acordou.

Sem entender como, sabia que Ramirez não estava, e tentou afastar a mágoa da ausência dele pensando em suas filhas. Ela sentia uma leve dormência no braço esquerdo, que estava por baixo de Layla. A mãe, sempre atenta, antes mesmo de liberar o braço formigante, olhou as filhas. A bebê tinha um sorrisinho, como se sonhasse com aquelas coisinhas divertidas que costumam povoar os sonhos inocentes das crianças. “Talvez...”, pensou Amanda, sorrindo, “...esteja sonhando com o tal Senhor Bochecha, essa moleca. Ainda vou descobrir um dia como é que ela adivinhou o nome do amigo imaginário que a avó dela tinha quando era criança! Ninguém contou a ela e essa fadica descobriu!”.

Então Vincentti olhou um pouco mais além de sua caçulinha e, com seus maravilhosos olhos cheios de um poderoso amor, ficou observando sua “mais velha”. Maya tinha aquele semblante meio tristinho que ela carregava mesmo acordada. Amanda deslizou cuidadosamente o braço de debaixo de Layla, esfregou a pele até a dormência passar, e se apoiou no cotovelo, esticando a mão direita por sobre Layla e tirando uma mecha de cabelo que cobria os olhos de Maya, acariciando, muito levemente, o rosto da filha logo depois.

“Maya...”, Pensou Amanda, um átimo de preocupação sofrida a percorrer seu semblante, “... Se eu pudesse, minha filha, arrancava o planeta da órbita, explodia todas as estrelas do universo, enfrentava um bando de Corredores com as mãos nuas por você, meu bem... Mas não posso entrar neste teu coração sem você me deixar... Você virou uma mulher. Uma linda Vincentti. E leva muito a sério essa bobagem de que nós não choramos que sua mãe fala, e fica aí, amore mio, remoendo essa dor toda... Parla per me, amore, o que te fizeram no futuro? O que te causa tanto medo, amore da tua mamma?...”

Como se tivesse lido os pensamentos da mãe, Maya abriu os olhos, por um momento assustada, a seguir abrindo seu encantador sorriso. Amanda simplesmente adorava o sorriso de sua filha mais velha, ele lembrava o sorriso do pai, muito embora Ramirez teimasse em dizer que achava o sorriso de Layla e de Maya parecidos ao da mãe.

_ Mamãe... _ Fez a jovem mulher, que vestia um moletom e se espreguiçava feito a mãe, como uma gata bonita e manhosa.

_ Amore... _ Fez Amanda, em um arroubo de ternura _ Bem vinda do mundo dos sonhos...

_ Aqui é meu mundo dos sonhos, mamma. _ Respondeu a jovem, de pronto.

_ Hummm, tens o amor na ponta da língua, feito teu pai. Fala e emociona a gente. _ Disse Amanda, com um de seus luminosos sorrisos. Para Maya, aquele sorriso era o sol. _ Sabe, filha, que a doçura e esse “amor saindo pelos poros” do teu pai foi o que me fez me apaixonar por ele.

_ Ah, claro que o fato de ele ser uma tremendo gatão não foi importante! _ Brincou a filha, num de seus raros rompantes de bom-humor.

_ Ah, Dio mio, isso quase nem conta! _ Respondeu Amanda, irônica.

E as duas tiveram que fazer força para rir baixinho, de modo a não acordar Laylinha, que ressonava suavemente entre elas.

_ É vero, amo teu pai como amo vocês, um amor maior que eu. Não conte prá ele, filha, mas morreria por aquele homem, mesmo que ele não fosse gatão! _ Tentou brincar Amanda, enquanto falava com sinceridade de seu amor por sua família, mas Maya imediatamente se retraiu, parecendo ficar muito triste com a palavra “morte”. Percebendo isso, Amanda disse: _ O que foi, bambina?... É isso?... Eu vou morrer no futuro? É isso que te entristece?

_ Não quero falar sobre isso, mamma... _ Disse Maya, em uma voz miudinha e quase sumida, começando lentamente a se levantar.

_ ... Se eu morrer por vocês, filha, morrerei muito, muito, muito feliche... _ Tentou Amanda.

_ Mãe, eu já disse, não quero conversar sobre o futuro... Deixe ele lá... Ele já me assombra demais... _ sua voz se embargava, enquanto a moça tentava segurar lágrimas doloridas _ Eu sempre sinto saudades, mamma...

E a moça saiu as pressas do quarto, sendo seguida por sua mãe. Na sala, a jovem começa a soluçar, profundamente sentida, e diz:

_ Eu sinto saudades o tempo todo, mamma... Olho para vocês e sinto tanta saudade! Oh meu Deus, eu sei, mamãe, que uma Vincentti não hora... Oh, mamãe, mas sinto tanto, tanta dor, tanta saudade, tanta tristeza, tanta dor, mamãe...

Amanda fica por um momento olhando a filha, que ela segurava com ambas as mãos, como quem agarra algo precioso que parece tentar escapar por entre seus dedos. Então, a vigorosa italiana puxou a filha para si, e, também deixando rolar suas lágrimas, abraçou com força a jovem tão amada, e ficaram assim, abraçadas e chorando no meio da sala por um longo momento. Então, a mãe, com sua voz encorpada e firme, disse, ainda assim com serenidade:

_ Não conta prá ninguém... Mas eu admiro demais, e amo demais, mocinha, esse dom seu e de seu pai, de não terem medo de se emocionarem de verdade... Te amo, filha, te amo agora, non amanhã! Te amo chorona, com saudade, triste, feliche, zangada! É uma coisa que teu pai me ensinou, filha: o amor liberta a gente. Só amando a gente é livre de verdade! Se livra dessa dor, Maya, eu e teu pai te amamos tanto, que dói ver você assim, sofrendo calada, porra.

Maya olhou enternecida para a mãe. Aquele era a única mulher no universo que conseguia pronunciar um palavrão com delicadeza e amor. A jovem admirava desesperadamente a mãe, tanto que, embora devesse sempre ficar quieta, para não prejudicar o desenrolar dos eventos do futuro, não resistiu em dizer:

_ Escute! Você é a pura liberdade, mamma, sempre foi e sempre será! _ E a jovem acaricia a pele clara e bela do rosto de sua mãe, tão jovem e linda, tão cheia de vida _ E tem razão, o amor do papai te liberta, porque ele vê sua alma, e sempre viu que mulher magnífica você é. Nenhum outro homem neste mundo te amou nem teve tanta fé na pessoa maravilhosa que você é quanto ele, e ainda bem que a senhora viu isso. Vocês aprenderam a ir além da paixão, mamma, além dos próprios defeitos e dores, vocês construíram um Amor maior que a vida... _ então ela faz uma longa pausa. A mãe, admirada com a maturidade e o amor da filha, fica em silêncio, os grandes olhos azuis brilhando, quando a filha continuou, baixando os próprios olhos e retomando o tom sofrido de sua voz: _ Então eu queria seguir o exemplo de vocês, ser grande como vocês, e te dizer que vou esquecer o futuro e parar de sofrer, mas o futuro não me deixa esquecer, ele sempre vem para cima de mim como um meteoro, mamma...

E Maya olha em direção a porta da rua. Amanda segue seu olhar a tempo de ver o terminal tablet ao lado da porta se iluminar, e disparar um som musical de campainha.

Alguém havia chegado.

...

Dark To See (Knocking on heavens door – Avril Lavigne)

O que a lagarta chama de fim do mundo, o mestre chama de borboleta. _ Richard Bach.

Subiram o pequeno aclive rochoso com cuidado, e olharam furtivamente sobre o afloramento de pedra. Depois olharam um para o outro. Haviam corrido por quase quatro horas a mais, desde que retomaram o fôlego. Na verdade vinham escalando encostas escarpadas e nevadas na última hora, e estavam bastante cansados, mesmo que tenham se mantido em absoluto silêncio concentrado desde que voltaram a correr. Não estavam com ânimos para rodeios, e pelo visto a situação os estava ajudando.

_ O que eles estão fazendo? _ Foi a pergunta murmurada por Laura.

_ Meditando, acho, tentando alcançar a iluminação e se arrependendo dos seus erros... _ Respondeu Áries.

_ O caramba! Estão manipulando dados, estão escaneando as crianças, ou fazendo algum contato com alguém.

_ É o que parece, Laura... Eu fui irônico. _ Respondeu o homem, sorrindo e tocando levemente a mão da moça. _ Vamos levantar, creio que estamos posicionados bem longe para um ataque direto, e eles não parecem estar nem aí para mais nada.

_ Tem razão. _ Disse a médica, colocando-se de pé. Ao seu lado Áries se ergueu, e ambos formaram uma silhueta contra a noite apinhada de estrelas. As nevascas pararam de cair, e o céu se abrira ao por do sol.

Os Divers aguçavam a visão, concentrando-se no aperfeiçoamento momentâneo de suas células visuais, e para a criação de um canal atmosférico perfeitamente estável, por onde a luz vinda de longe chegasse aos seus olhos com o máximo de nitidez possível com a luz da lua cheia. A cerca de quilômetro e meio dali Laura e Ramirez podiam ver quatro fogueiras que ardiam, em círculo. De frente para cada fogueira e de costas para o centro do círculo formado por elas, os quatro soldados vestidos de negro jaziam em posição iogue de meditação. No centro do círculo, três crianças estavam silenciosas e pacíficas, uma sentada e duas deitadas.

_ Acho que tenho um binóculo aqui. _ Disse Ramirez, tirando a mochila.

_ Seria bom, poderíamos ver melhor sem tanto esforço... _ Murmurou Sheydiaz piscando os olhos cansados. Era duro forçar tanto a visão.

_ Aqui está. Deixe ver. _ Ramirez posicionou o antiquado binóculo digital, e o ajustou _ Estão sentados apenas... Espere...

_ O que foi, Ramirez?

_ Espere... Não...

_ Deus! O que foi, cara?

Ramirez deu um salto por sobre o rochedo, e caiu no declive abaixo, descendo aos pulos e correndo pelo gelo em direção aos soldados e as crianças, sacando e destravando sua pistola enquanto corria. Laura ficou aturdida, e demorou um momento para seguir Ramirez. Não tanto com a disparada súbita de Áries, mas muito mais pelo que ele gritou:

_ Estão mortas! _ Seus olhos lacrimejando, seu coração explodindo no peito.

...

O Vento Forte e Seco (Música Urbana – Cássia Eller)

A morte e o morrer são assuntos que evocam emoções tão profundas e perturbadoras que nós normalmente tentamos viver negando a morte, ainda que possamos morrer amanhã, completamente despreparados e indefesos. _ Lama Chagdud Tulku Rinpoche.

Os Divers alcançaram o círculo de fogo no momento mesmo em que um dos soldados sacou uma grande faca, e se dirigiu a última e trêmula criança. As outras duas, mortas, estavam deitadas ao lado da sobrevivente. Ramirez não conseguia um ângulo de tiro, e não disparava por medo de atingir a criança. Os outros três soldados sacaram pistolas, e então o Diver teve que se concentrar em fazer outro milagre: sobreviver aos tiros. Zigue-zagueando, saltou uma saraivada de balas, e fez um disparo assim que tocou o chão, fazendo uma das fogueiras estourar em cima de um dos soldados, que começou a gritar e se agitar, como se estivesse em pânico por perder o controle sobre sua fogueira.

Achando que as armas eram inúteis contra Áries, os três soldados começaram a correr contra ele, que, em desespero para salvar a última criança, corria desesperadamente. Eles o alcançaram e se atiraram sobre ele com facas em punho.

Ramirez desarmou o primeiro oponente com um golpe preciso em seu pulso, o segundo ele fez cair para trás com um bruto soco, o terceiro passou a faca no rosto de Áries, fazendo minar sangue, que escorreu denso pelo pescoço do homem. Ramirez sabia que se tentasse disparar contra o assassino (que já estava quase sobre sua vítima no centro do círculo de fogueiras) seria esfaqueado pelo terceiro homem, e poderia errar seu alvo. No entanto, se tentasse se defender, o quarto homem mataria a criança.

Tinha de arriscar.

Contraiu toda a sua musculatura, fez mira, e acertou a cabeça do homem que erguia a faca sobre uma menina de cabelos negros, que mantinha os olhos fechados. Por enquanto, a criança estava salva.

_ Ramirez! _ Ele ouviu a voz da médica, gritando atrás de si, em desespero.

Então o aço frio da lâmina cortou violentamente a carne do homem, cravando-se profundamente no abdome de Ramirez, que se projetou para frente, tal a força com que ele foi esfaqueado, e tossiu um jato de sangue sobre a neve branca. Seu assassino ainda desferiu outro golpe, enterrando a faca no mesmo lugar mais uma vez. Ramirez caiu de joelhos, e viu seu sangue pintar de vermelho o gelo cinzento abaixo de si. Ele cerrou os olhos, muito triste de que tudo terminasse assim, e só conseguiu dirigir um pensamento, cheio de amor, para uma pessoa:

_ Amanda... _ Murmurou ele.

...

Tarde Demais para Perdoar? (Perdono – Tiziano Ferro)

Não sou teu dono! Apenas te amo. Por isso te liberto, pois para mim mais vale ver teu sorriso longe dos meus braços do que sentir tuas lágrimas a molhar meu peito. _ D.C.

A mulher que batia a sua porta era uma loira com ar de ninfeta. Mas algo em seu olhar denotava mais experiência do que teria uma menininha. Amanda abriu, e encarou a garota, com seu habitual ar arrogante, e foi dizendo:

_ O que quer?

_ Seu marido está morrendo. _ Disse Virgem, levantando ambas as mãos vazias e espalmadas para Vincentti, em sinal de que não queria brigas, só ajudar _ Eu trabalho com ele, e ele precisa muito de você. Quero te ajudar a encontrar Ramirez, a tempo de se despedir dele.

Amanda ficou olhando a mulher. Virgem não se moveu, e, observando o delicado rosto da italiana, constatou a intensa beleza que fascinava Áries. “Essa mulher é realmente muito bonita mesmo, dá prá entender o por quê do carinha ficar de quatro por ela.”

_ O olhar, Jane. _ Disse Layla, que entrava na sala sonolenta, esfregando os olhinhos com as mãos gorduchas _ Papai ama mais que tudo o modo de mamãe olhar... Ele diz que mamãe é tão bonita porque tem uma alma linda... Mamãe, cadê papai?

_ Como diabos ela sabe meu nome? _ Perguntou Virgem, olhando assustada para a menininha linda que só havia visto em fotografias que Ramirez mostrava às pessoas todo orgulhoso _ Ela lê mentes, a pimpolha?

_ Maya, leve sua irmã para o quarto. Layla, fica com Maya quietinha... _ Começou Amanda, a voz ficando tensa.

_ Mas mamma... _ Choramingou a menininha.

_ Amore, lembra do que a tua mamma disse sobre confiar nela? Confia na mamma que te ama mais que tudo, e vai para o quarto com tua irmã...

_ Maya sou eu, mamma... _ Disse a menina, ligeiramente teimosa, levantando os brazinhos e sendo pega no colo por Maya.

_ Leve ela para o quarto, Maya.

_ Sua filha mais velha é uma moça muito linda. _ Disse Virgem, tentando amenizar o clima.

_ Obrigada _ murmurou Maya, olhando para a mãe, que entendeu a mensagem silenciosa, e disse a filha mais velha:

_ Se eu precisar de vocês, eu chamo, está bem?

Maya levou Layla para o quarto, pegando o Panda no colo também, no meio do caminho. O urso, também esfregando os olhos, acabava de sair do quarto quando foi tirado do chão com um “ooops”, assim que Maya passou por ele. Sozinhas na sala, Amanda e Jane se encararam. Após um momento, a voz intensa da italiana se fez ouvir:

_ Me explica rapidinho quem é você, o que você quer, e que história é essa?

_ Posso entrar? _ Perguntou Virgem ainda da porta.

_ Sente ali _ Disse Amanda, autoritária, apontando o sofá _ e fale.

A loura se sentou graciosamente, com suas torneadas pernas se cruzando com elegância. Ela então ajeita uma mecha dourada de seus cabelos, que perguntou:

_ Posso fumar?

_ Não, mas pode falar agora, antes da minha paciência acabar.

_ Nossa, intensa você...

_ Porra, garota, você vem a minha casa, e me diz que meu marido está em perigo...

_ Morrendo.

_ Então, fala catzo!

_ Ok. Ok. Sabe sobre os profissionais de Diver?

_ Sei sim. Sei montar uma interface de Diver de olhos fechados. _ Disse Amanda, uma especialista em manutenção que sempre se mantinha atualizada, estudando sempre que podia novos equipamentos, e novos sistemas de reparo. Vincentti podia concertar quase qualquer mecanismo já inventado. Ultimamente andava se interessando em estudar tecnologia muito antiga. Teve essa idéia quando teve que usar um sistema de computador com mais de cem anos dentro de uma base antiga C7.

_ Jura? Que máximo. Eu só sei usar mesmo. Bem, me chamo Jane Arquette, eu sou uma Diver. Uma Diver alternativa, claro...

_ MadDiver! _ Disse Amanda, que há uma semana tinha discutido com Ramirez para poder ver na Discovery um especial sobre os MadDiver, o marido queria ver desenhos animados antigos com as filhas, e não o documentário. A italiana já estava ficando desconfiada de que sabia o por quê.

_ Tá por dentro. Então, seu marido é um de nós. Ele disse que vocês estavam na pior, e quando pintou a oportunidade de trabalhar na Finders e ganhar um troco melhor...

_ Ohé, li!! _ Berrou Amanda, ficando de pé _ Mannaggia la!!! Isso é arriscado! Esse blaterare tem filhas prá cuidar!!

Colocando charmosamente dois dedos sobre a testa, Jane frisou os olhos, sorrindo levemente, e disse:

_ Ele disse que você não gostaria nada de saber sobre o trabalho dele. O que é isso que está dizendo? Eu não falo italiano...

_ Oh, amorzinho, eu traduzo para você. _ Disse ela, encarando Virgem, que se inclinou para trás diante da investida de Vincentti, que dizia: _ PORRA! FILHO DA PUTAAA! Esse PENTELHO tem filhas prá cuidar e fica arriscando o caralho do pescoço mergulhando em mundos virtuais por aí sem me consultar?! Fala logo, porra, o que aconteceu com MEU marido!

_ Ele estava tentando salvar uma criança quando foi mortalmente ferido... _ Disse Virgem, de um só fôlego _ Eu gosto dele... Calma, clama! Somos amigos! Ele é simplesmente maluco por você, garota! Confesso que o cara é um pedaço, mas me olha nos olhos, eu tou sendo sincera: admiro a família de vocês. Eu nunca tive uma família assim, tão cheia de amor e confiança! Por isso quero te mostrar como chegar ao teu marido, porque eu tenho a esperança de que você talvez possa fazer alguma coisa...

_ E como eu chego até ele? _ Os olhos de Amanda ferviam. Era óbvio que ela enfrentaria qualquer coisa pelo homem que ama.

_ Aqui, tome este endereço. É a sede da agência Finders de MadDivers. Malcom DeLucca é o dono, ele é tão apaixonado por crendices antigas, que sempre mantém doze Divers contratados, e cada um tem um signo e usa o nome do signo como Nickname, o meu é Virgem...

_ Ramirez é o Áries._ Disse Amanda, que de fato havia encarado fundo os olhos da garota, e achava que ela não estava mentindo. Vincentti sentia uma certa tontura, e suava, nervosa. Era difícil imaginar sua vida sem Ramirez. _ Pode me colocar lá dentro?

_ Perco o emprego se fizer isso. Perco o emprego se disser que fui eu que te disse isso, mas confio em Áries, e ele diz que você é a mulher mais correta, honrada e verdadeira que existe no mundo, então acho que não vai me prejudicar... Não é?

Amanda fitou olhando Jane bem nos olhos, por um longo e tenso instante. Jane, acostumada aos perigos terríveis dos mundos virtuais, estava começando a “encolher” sob o olhar incandescente de Vincentti. De repente a italiana sorriu, e disse:

_ Só vou te prejudicar se estiver mentindo, queridinha. Não é só minha caçula que é bruxa não, cara. Me dá esse endereço aqui, e cai fora. Obrigada.

Jane foi saindo, até aliviada de ficar longe da fúria de Amanda, mas não se conteve, virando-se, já na porta da rua, e dizendo:

_ Amanda, esse cara te ama desesperadamente, a você a as filhas de vocês. Nós mergulhamos cada um por seu próprio motivo. Eu porque não tenho muito apego a nada mesmo. Ele se sacrifica fazendo os “mergulhos” para tentar dar uma vida melhor para vocês. Não fique com raiva dele por não te contar. Ele só estava querendo te poupar.

_ Eu sei...

Jane estendeu a mão para Amanda, que, depois de um instante desconfiado, apertou a mão da moça, dizendo:

_ Obrigada, Jane. Eu sou assim mesmo.

_ De nada, Amanda. Salve seu homem, ele precisa de você. Se ele fosse meu, eu nem sei o que faria por um cara que me amasse assim, um... Amor maior que a vida... Como ele diz, quando fala sobre vocês. Boa sorte, figura.

E Virgem se foi.

Amanda se sentou na pequena sala do apartamento, e ficou olhando o pedaço de plástico onde Jane havia anotado o endereço da Finders. Sua mente estava em turbilhão. Havia trabalhado por muitos anos em uma agência secreta onde precisava desconfiar de tudo e de todos para sobreviver, e vivera uma vida que considerava livre, mas que havia descoberto ser vazia, então um homem, que acreditou nela acima dela mesma, a fez sentir e entender o amor. Agora uma estranha vem dizer que ele estava em um lugar perigoso às portas da morte.

Amanda pegou seu tablet e ligou para o de Ramirez. O rosto bonito do marido apareceu, com seu sorriso de menino grande e doce, e a gravação disse:

_ Olá, Fadinha que tem casinha própria no meu coração! Desculpe, neste instante não posso te atender, mas sabe que tudo que faço para você é com muito amor, e vou te responder rapidinho assim que puder, está bem? “Não sou teu dono! Apenas te amo”. Beijo.

A gravação era nova, e a frase era de um pensamento que ele escreveu em um cartão no aniversário dela no ano anterior. Foi uma época difícil, estavam vivendo em um acampamento de refugiados, mas Ramirez e as filhas se viraram como puderam, e conseguiram fazer o dia ser muito especial e bonito para Amanda. Eles haviam brigado um dia antes, e Amanda, sem pensar, disse a ele, mais para irritar o marido que por ser verdade aquilo, que sentia falta de sua época de solteira, vivendo as noites de bar em bar, livre, nem aí para qualquer coisa. Ele deu a ela o cartão, e disse que ela era muito mais que aquilo, que a amaria até o fim da vida, mas que preferia vê-la livre e feliz, que ser ele próprio feliz. Beijaram-se como se fosse a primeira vez, e decidiram que nunca mais brigariam de novo por causa de bobagens. Foi quando Ramirez disse a ela que amor de verdade é a maior fonte de liberdade. Na gravação do tablet, Ramirez sorriu, piscou, e a ligação se desfez.

_ Eu acho que tinha me esquecido... _ Disse Amanda, em uma voz sumida, como fosse uma menininha assustada, segurando as lágrimas _ ... Da nossa promessa, amore mio... Oh, Ramirez... Não me deixe sozinha... Eu quero ser sua...

...

Viver Mais (Canção Para Você Viver Mais – Pato Fu)

Há muitos métodos, extraordinários e ordinários, para nos prepararmos para a transformação da morte. O maior desses métodos resulta em iluminação no tempo de vida da pessoa. A realização iluminada está além da vida e da morte, mas requer uma prática meditativa impecável. _ Lama Chagdud Tulku Rinpoche.

Pensar em sua pequena guerreira italiana lhe deu novas forças, e Ramirez lançou o pé para fora, girando o corpo e dando um violento “rabo-de-arraia” no homem que o esfaqueou. O sujeito despencou na neve, e Ramirez agarrou-lhe a mão com a faca, torcendo o braço do homem, girando-lhe a mão armada, enterrando-lhe a própria faca no pescoço. O soldado morreu sem um grito, e ficou imóvel. Áries, exausto, caiu por cima do morto, engasgando e cuspindo outro jorro de sangue no chão.

“Os outros caras, Laura vai encarar eles sozinha...”, pensava, e tentava se virar. Assim que conseguiu olhar para trás, viu Laura enfiar um sinalizador no casaco do outro soldado, e puxar o estopim, fazendo o homem pegar fogo. Ainda assim ele a golpeou várias vezes com os punhos, e sacou sua faca, ameaçando a moça, que o desarmou com um soco, e, com uma bela cambalhota, golpeou o rosto do soldado com ambos os pés.

O soldado que Ramirez derrubou com um soco estava se levantando. Ramirez arrancou a faca do pescoço do morto, e arremessou, acertando em cheio o outro que se levantava. O esforço para arremessar a faca fez a mancha de sangue no estômago de Ramirez crescer ainda mais. A hemorragia estava aumentando, e ele sabia que precisava parar de se concentrar na luta, e voltar sua força de vontade contra si mesmo, para estancar o sangramento e evitar a morte. Sua vista escurecia, e ele só conseguia pensar se Laura e Dadon estavam bem, se estavam em condições de voltar para casa sem ele...

_ Ramirez! _ Disse Laura, caindo ao lado do amigo ferido _ Ramirez, meu Deus, temos que parar esse sangramento!

Ela arrancava a roupa de cima do ferimento com o máximo de cuidado, mas o mais rapidamente que conseguia, e preparava o que tinha a mão para um atendimento de urgência. Pressionando o ferimento, olhava suplicante para a menina tibetana, que, suavemente, se levantou e caminhou até eles.

_ Você é a menina Dadon, não é? _ Disse Sheydiaz, chorando. Estava tão desesperada em ver o bom Ramirez morrer em suas mãos que não conseguia conter as lágrimas _ Pode me ajudar, Dadon? Você está bem?

_ Estou com febre. _ Disse a mocinha, de uns doze ou quatorze anos, tímida, sem olhar direito para Laura _ Mas posso ajudar.

A mocinha, de cabelos na altura dos ombros, lisos e negros, quase tão negros quanto seus olhos, tinha um belo e delicado rosto oriental. Tímida, ela parecia insegura, mas agiu como quem soubesse o que estava fazendo, pegando uma tira de tecido vermelho-escuro de sua própria roupa, e fazendo uma compressa com ele, rapidamente, colocando-o sobre o ferimento do abdome de Áries, e pressionando firmemente. Ramirez grunhiu de dor, mas isso diminuiu o sangramento. Dadon abaixou-se lentamente, e sussurrou ao ouvido de Ramirez:

_ Meu futuro Arahant (10), preciso que viva, preciso que me leve daqui. Precisamos trilhar um caminho juntos, temos um conto a escrever, e uma história para contar, em nosso caminho ao Annutara Samyak Sambodhi (11).

Sheydiaz havia entrado em um estado emocional controlado, como sempre fazia quando tinha que salvar uma vida. Não prestou atenção ao que Dadon sussurrou para seu paciente, só conseguia enxergar seu paciente. Certa vez, ficou de joelhos, operando um colega ferido com um estilhaço de granada, em um mundo que imitava a Segunda Guerra Mundial, enquanto a sua volta zuniam balas e explodiam bombas, ela nem sequer piscava, tão concentrada ficou em salvar, com êxito, aquela vida.

A médica sabia que não bastava estancar o sangramento externo. O paciente estava com hemorragia interna, e sem equipamentos sofisticados ela só podia contar com suas perícias como Diver. Após fazer o primeiro atendimento, a desinfecção do ferimento, o fechamento dele com uma sutura antiquada, ela respirou profundamente, e fechou os olhos. No céu, explodia uma nova tempestade de neve, em seu coração, Sheydiaz procurava a mais absoluta serenidade, para canalizar os fluxos de dados que compunham seu corpo virtual (saudável) para o corpo de Ramirez, para que seus dados, íntegros, corrigissem os dados falhos e feridos dele.

Súbito, suas auras virtuais se misturaram, e Sheydiaz pode sentir o coração dele. Ramirez era um homem real, com defeitos, talvez os principais deles fossem a passionalidade e a precipitação ansiosa de suas atitudes, mas ele continha grandes virtudes também, a maior delas se resumia a uma simples frase: ele queria ser o melhor homem que pudesse ser. E era um homem bom de verdade. Sheydiaz já havia unido sua aura virtual a muitos pacientes que tentou salvar dentro da VRNet, mas poucos tinham tanta vontade de crescer, de ser uma pessoa melhor a cada dia. Por um segundo, admirou profundamente aquele homem simples e bom, e, agora sim, para ela, ele era lindo, um lindo homem.

_ Não morra, meu lindo... _ Sussurrou a médica, suavemente, com sua voz rouca e doce, e com ambas as mãos postas sobre o ferimento dele, sem perceber que Dadon fazia o mesmo _ Vou sentir sua falta, meu amigo lindo.

Laura sentia sua alma vacilar, enquanto cada byte de informação que compunha seu corpo virtual circulava entre ela e seu paciente. Era como se ela morresse um pouco para que ele vivesse um pouco. A médica chegava mesmo a sentir a dor do corte profundo dele.

À volta deles a nevasca rugia, um monstro branco e imenso, subitamente libertado de sua jaula, hávido por engolir tudo e todos. As rajadas de neve batiam neles como facas afiadas, mas Laura não fez a menor menção de se levantar. Ela nunca desistia de ninguém.

Da muralha de neve que se agitava em volta de Sheydiaz, Dadon e Ramirez, começaram a brotar vultos. Eles vinham na direção dos três em passos decididos, e pararam a volta deles, como criaturas feitas de sombras. Assim que Laura estabilizou o estado de Ramirez, e teve certeza de que agora ele teria uma chance, ela abriu os olhos e se sobressaltou. Estava cercada de monges e monjas.

_ Não tenha medo, queremos ajudar vocês. _ Disseram.

_ Este homem... _ Disse ela, quase morta de frio, pois concentrou toda a sua força vital em ajudar o amigo à beira da morte _ Precisa de cuidados...

E Laura caiu, desmaiada, ao lado de Ramirez.

Quando ela voltou a abrir os olhos, estava sendo levada em uma padiola rústica, envolta em peles, colina acima. Podia ver o bruxulear dos restos das fogueiras no pequeno vale abaixo, e sabia que estava sendo levada para longe dali pelos monges. Agitou-se para tentar ver seus outros dois companheiros, e a própria Dadon, que caminhava ao seu lado, sorriu para ela, um sorriso tímido, mal a encarando, e disse:

_ Sua valorosa ajuda o salvou, ele agora tem uma chance. Descanse.

Sheydiaz não sabia bem o por quê, mas confiava em Dadon. A médica sorriu, fracamente, e cerrou os olhos, dormindo, exausta. Dadon sorriu mais uma vez, e prosseguiu, estoicamente através do gelo e do vento cortante, acompanhando o passo dos monges adultos, que subiam a colina. A menina murmurava para si mesma:

_ Possa o Dhamma (12) viver tanto quanto meus filhos e netos, durar tanto quanto o sol e a lua, e que as pessoas sigam o caminho do Dhamma, porque, para aqueles que o seguem, a felicidade nesta e em outras vidas será alcançada.

...

Tua Ausência é Todo o Meu Tormento (Quero Que Você Me Aqueça... – J.Quest)

As pessoas entram em nossa vida por acaso, mas não é por acaso que elas permanecem. _ Lilian Tonet.

_ Mas, mamãe, é melhor que eu vá... _ Disse Maya, sem a menor convicção.

O peito de Amanda queimava. Não iria enfrentar alienígenas, nem nada assim, mas nunca havia se sentido em uma “missão” mais tensa. Era seu amor, era seu homem, era a vida que fazia sua vida ter sentido, a vida que lhe deu sua filha, era essa vida fundamental que ela iria salvar! A italiana jogou algumas roupas sobre a cama do apertado quarto, e escolheu um conjunto negro e branco.

_ Maya, eu preciso trazer seu pai de volta! E preciso que sua irmã fique segura. Você, com essa sua armadura, pode deter um exército. Cuide dela.

_ Fique com ela, eu vou tentar trazer o papai...

_ Non! Io prometi àquele homem meu amor. Ele sempre cuida de mim, sempre tem tempo para mim, sempre se esforça por mim, e se eu não cuidar dele, que droga de amor é esse que eu sinto? Egoísmo? Non, é amor verdadeiro!

_ Mas mamãe, não tem lógica, eu sou mais forte...

_ Ahhhh! Quieta! Per favore, filha, me deixa fazer o que eu preciso. Eu morro se ficar aqui esperando, isto é um problema que eu preciso resolver. Preciso trazer esse cara de volta para minha vida. Vou tentar resolver tudo na conversa, eles não vão poder me impedir de ver seu pai, afinal de contas, é meu marido, e eles tiraram tudo de nós, menos nosso orgulho e nossa certidão de casamento. Fique aqui e cuide que nada aconteça com Layla, eu cuido de Ramirez. Non discute, obedece! Me deixa mostrar para este homem o quanto eu o amo!

E vestida com sua melhor roupa, um conjunto sintético negro e brilhante, com uma capa de couro branco por sobre tudo, a malhada barriga a vista, o colo alvo e magnífico exposto, bota de salto, a italiana desceu. Levava uma pequena bolsa consigo, com seu tablet, seus créditos e alguma maquiagem. Passou pela portaria como nos velhos tempos, como uma agente indo para uma missão, concentrada, séria, sexy, linda, perigosa, intensa, mortal.

Desconcentrou-se apenas por alguns segundos, quando, na portaria de seu prédio, teve um pequeno deja vu, e lembrou de um saguão de hotel, muitos anos atrás, quando saiu para encontrar e distrair o belo policial Guilherme Ramirez, e se entregou aos desejos dele. Amanda respirou fundo quando sentiu medo de perder seu amor. Engoliu o nó em sua garganta, tomou coragem, e recomeçou a andar.

Amanda sabe como poucas a fina arte de andar de salto alto, e seus passos de felina indo caçar faziam seu corpo ardente de mulher atrair olhares. Seu pensamento era um só: mandar tudo para o inferno, e trazer seu marido, amigo, parceiro, cúmplice, são e salvo de volta.

Os homens, vizinhos e transeuntes, paravam para vê-la passar. Era como ver um anjo enfurecido passar. Seus cachos negros soltos se agitavam no ar, seus olhos azuis ardendo em chamas. Ela não podia chegar perto de uma arma, desde que passou a ser vigiada pelo governo como ex-agente do C7, mas estava tão nervosa, e tão certa de que nada a impediria de ajudar Ramirez a sobreviver, que não fazia muita questão de armas.

Pegou um táxi, e quando desceu, um jovem, talvez de uns dezessete anos, impressionado com sua beleza, e sem reconhecer a ex-C7, mexeu com ela e foi totalmente ignorado. Amanda quase passou por cima dele, e os colegas dele, alguns rapazes e algumas moças, riram do pobre garoto. Vincentti parou um pouco depois das crianças, e sacou da bolsa óculos escuros que se conectavam com seu tablet, que ela havia modificado para funcionar como um sensor e uma base de dados. Ela pôs os óculos, e prendeu o tablet na cintura, sussurrando para o microfone embutido na haste dos óculos:

_ Edifício Didier Massard, número 12 da Scott Hammer Avenue, centro. Quero a planta. _ Ao que seu tablet projetou nos óculos as plantas e os dados sobre o prédio. _ Segurança. _ Ao que o tablet, modificado por ela para não ter travas de segurança, exibiu um esquema da segurança do prédio: um sistema padrão, mas bem feito.

A italiana parecia muito mais alta do que era, tal era sua elegância, seu charme sedutor e selvagem, enquanto simplesmente caminhava pela calçada em frente ao prédio comercial em que funcionava a agência Finders. Abusada, ao entrar, ela olhou direto para as câmaras de segurança, quando os escaners a reconhecessem, os operadores de segurança já começariam a “tremer na base” com o fato de terem uma ex-C7 no prédio. Aproximando-se da recepção, ela pôs a bolsa sobre o balcão, muito séria, e disse:

_ Bom dia. _ Disse ela, para a recepcionista humana, o que significava que aquele prédio tinha um condomínio bastante caro. A jovem oriental arregalou os olhos, e reconheceu Amanda, gaguejando:

_ B-bom dia, senhora... A senhora?

_ Quero falar com o senhor Malcom DeLucca, da Finders. Agora.

Em cinco minutos Amanda foi levada até uma sala de reuniões no térreo, e encontrou ali um jovem loiro, atraente, com um sorriso impressionante e carismático.

_ Senhor DeLucca? _ Perguntou ela, assim que pôs os olhos nele.

_ Sente-se, madame Vincentti. É um prazer conhece-la, seu marido me mostrou uma foto sua há algum tempo, mas nenhuma foto pode fazer jus a tamanha beleza.

Amanda se sentou, com impecável elegância. Guerreira e moleca, aquela mulher sabia se portar quando queria. Colocou a bolsa de lado, e cruzou graciosamente as mãos sobre o colo. Entretanto, não tirou os óculos.

_ Percebo que não pretende negar que meu marido trabalhe com o senhor. O que houve com Ramirez? _ Perguntou, tirando alguns cachos de seus cabelos negros da testa.

_ E porquê deveria? A esposa de um homem tem todo o direito de saber onde ele trabalha, não? Bem, vejamos alguns documentos _ Disse ele, abrindo uma pasta e retirando uma série de papéis metalizados, cópias legalmente válidas de contratos assinados e com confirmação de retina. Amanda sabia o que era aquilo, o contrato de trabalho de Ramirez.

_ Io só quero saber se meu marido está bem, e levar ele para casa. Disseram-me que ele estava correndo perigo... _ Disse ela, deixando escapar um pouquinho de sua exasperação.

_ Sim. E suponho que não vai me dizer quem lhe disse isso, claro.

Amanda ficou em silêncio, sentada com as costas retas, olhando, por detrás de seus óculos escuros, diretamente nos olhos de Malcom. Ele então prosseguiu:

_ Ocorre, senhora Vincentti Ramirez, que a pessoa que te informou sobre o assunto estava desatualizada. Seu marido faleceu há uma hora e dezoito minutos. Quero que a senhora examine esses papéis, e verá que ele assinou corretamente todos os documentos que eximem de culpa nossa empresa.

Foi um momento horrível para Amanda. Um escuro e sombrio abismo se abriu abaixo dela, e a italiana, por um segundo, vislumbrou um futuro onde teria de viver sem seu coração, pois ele havia morrido há uma hora e dezoito minutos atrás. Sentia-se confusa, não conseguia alinhar seus pensamentos, e desejou profundamente que pudesse pedir Controle Sistêmico (13) a Orwel (14) e ficar naquela condição especial: fria, forte, controlada, sem medo... Pois sentia um medo terrível e cáustico de que Ramirez estivesse morto. Mesmo com todo o seu esforço e seu enorme orgulho, não conseguiu evitar que duas lágrimas escorressem de seus olhos, enquanto ela, sem se mover, ainda fitando DeLucca, disse, com a voz fraca:

_ Quero ver meu marido...

_ Vamos liberar o corpo em cerca de 48 horas. _ Respondeu DeLucca.

_ Quero ver meu marido. _ Murmurou Amanda.

_ A senhora deve ser do signo de leão, não é? _ Perguntou Malcom, sorrindo brevemente. Logo a seguir fazendo cara de pêsames, ele acrescentou: _ Eu sinto sua perda, senhora Ramirez, mas vai poder verificar nos documentos que estamos legalmente amparados para estudar o fenômeno que causou a morte de seu marido antes de entrega-lo à família...

Subitamente Amanda se projetou para frente. O movimento foi tão rápido, que pegou DeLucca totalmente de surpresa. Ela agarrou a gravata do terno elegante dele, e puxou o homem para si, encarando-o bem de perto, e dizendo, pausadamente mas com autoridade:

_ SOU DE ESCORPIÃO, E... EU... QUERO... VER... MEU... MARIDO... AGORA!!

_ Não é possível vê-lo agora... _ Balbuciou o homem, impressionado com a força daquela mulher.

_ Porque? _ Perguntou Amanda. Sua voz estava fria, incisiva, perigosamente gélida.

_ Ele ainda está no tanque de imersão, fechado...

_ Eu vou até lá agora. _ Disse a mulher. DeLucca engoliu em seco, mas tentou retomar o controle, dizendo, arrogantemente:

_ A senhora vai ser processada, a segurança está vindo...

_ Ele ainda não morreu. Você está mentindo sobre ele.

_ Eu... Eu mesmo o vi morto. _ Mas DeLucca vacilou, por um minúsculo momento, e Amanda soube que Ramirez ainda estava vivo.

_ Me leve até ele agora.

_ N-não...

Amanda girou Malcom DeLucca no ar, arremessando-o na poltrona onde antes ela própria esteve sentada. O executivo bateu com força no estofado, e o móvel inteiro foi arremessado para trás, batendo com violência contra a parede oposta. O homem tossia e gritava, assustado:

_ Você não sabe no que está se metendo, tem federais no prédio inteiro!! Socorro!

Neste segundo um grupo corpulento de seguranças entrou porta adentro. Eram dois homens e duas mulheres, que segundo o tablet de Amanda, eram treinados em Kravmagá e usavam aparelhos de choque para atordoar. Depois de treinar com Milena, sua cunhada, e com Ramirez, Kravmagá era só mais uma das formas de luta que Vincentti conhecia. Por trás dos óculos escuros ela fechou os olhos, seu corpo estava tenso e pronto para o combate, mas sua alma estava silenciosa, como a calmaria antes de uma terrível tempestade de fúria. Ela não sabia como, mas agora tinha uma fria certeza: seu Controle Sistêmico estava ativado.

Os seguranças saltaram sobre ela. Amanda abriu os olhos, e sorriu, gélida. Era como se eles se movessem em câmara lenta.

...

Sonhos Pra Te Acordar (Verbos Sujeitos – Zélia Duncan)

Tudo o que sabemos do amor, é que o amor é tudo que existe. _ Emily Dickinson.

Ramirez piscou, cansado, e abriu os olhos. Estava em algum lugar imerso em semi-escuridão. Sentia dor, mas estava vivo e consciente. Percebeu seu hálito sair em brasa da boca, e imediatamente entendeu que estava bastante febril. Tentou se levantar, mas mãos suaves o empurraram de volta, e uma voz levemente grave, mas feminina e sensual, sussurrou para ele:

_ Fique quietinho onde está, meu lindo.

_ Laura?

_ Sim, sou eu. Estamos em um pequeno mosteiro em algum lugar da fronteira, eles nos ajudaram a sobreviver. Vim ver como meu paciente estava, bem a tempo de impedir você de fazer uma besteira. Você deveria estar morto, rapaz. Graças a Deus consegui não perder você...

Ramirez sentiu um vacilar suave na voz da linda médica, e sorriu. Ele sabia o que havia acontecido: Ela agora o conhecia intimamente. Os DataDiver médicos podiam usar seu poder de processamento para misturar as auras virtuais deles próprios com as de seus pacientes. Por isso Ramirez estava com aquela sensação de que conhecia a médica profundamente, como se fossem amigos próximos há muitos anos. Ele ainda podia sentir a delicada feminilidade dela, sua impressionante bondade, seus defeitos, o principal deles uma insegurança que ela vivia combatendo, e suas imensas qualidades: humanidade, justiça, dedicação, sensibilidade. Era impossível não gostar de Sheydiaz. Quem a conhecia assim tão profundamente, se apegava ao carisma dela, e Ramirez a admirava muito agora.

_ Você... É uma mulher impressionante, Laura... _ Disse ele, cautelosamente.

Ela havia se levantado, e estava abrindo uma cortina, deixando luz solar entrar e iluminar todo o ambiente. Laura estava com sua impressionante cabeleira de cachos solta, e vestindo uma roupa bem mais leve, que permitia o vislumbre de suas formas perfeitas. Ela se virou, encarando-o e sorrindo, exibindo as bonitas covinhas de quando sorria, e dizendo:

_ Obrigada, moço. E você... _ Disse ela, brincalhona e adorável _ É feioso por fora, perto de quanto é bonitão dentro do seu coração, sabia?

Ele sorriu, charmoso, e disse:

_ O melhor elogio que já recebi, obrigado.

Ramirez estava embaixo de cobertas de pele, em uma cama baixa como uma maca. Estava com o peito nu, uma atadura na cintura, e assim que a médica se distraiu tentou se sentar, mas percebeu que não era apenas o peito que estava nu, e voltou rápido para baixo das peles, tímido. Grunhiu de dor devido ao rápido movimento. Laura, que estava atiçando o fogo da pequena lareira que aquecia o ambiente, olhou Ramirez com reprovação, mas falou suavemente:

_ Ah, suas roupas estavam totalmente ensangüentadas, e eu as tirei com a ajuda dos monges. Não abusei de você não, fica calmo. _ Disse ela sorrindo novamente, e acrescentando, mais séria: _ Achei que não seria bom ficar mexendo em você enquanto repousava, então deixamos algumas roupas novas ali na cadeira, creio que servirão. O monge que as doou era bastante alto, como você. Sua mochila com seus equipamentos também estão ali. Pode se trocar, eu vou sair...

_ Laura, e a menina?

_ Dadon se saiu bem, mas está muito doente. Esteve exposta ao frio intenso por muito tempo, ela mal pode andar, e esta com uma febre constante. Assim como você, que está muito quente para meu gosto, mas consegui dividir bem os antitérmicos de que disponho...

_ Pelo amor de Deus, dê os remédios para a menina!

_ Ahh, seu herói bobo. Eu sou a médica aqui, e sei o quanto ela pode tomar de remédios. Dá para dividir sim. O que preciso é remover Dadon e você para um hospital, ou para fora daqui. Ambos precisam de mais que alguns antitérmicos.

_ Então vamos tirar ela daqui... Sabe, Laura, tenho dois filhos e duas filhas... _ Ramirez parou um segundo, tentando corrigir a coisa, afinal de contas Layla e Maya eram uma só, mas para ele e Amanda, eram duas _ Ou melhor, três filhas, uma bebê, uma moça, e uma já crescida. Nem imagino o que seria perder alguma de minhas crianças. Acho que eu enlouqueceria...

_ Eu senti _ Disse a médica, fechando seus belíssimos olhos amendoados e sorrindo _ Pude sentir, quando toquei a sua alma... O amor por suas crianças... O amor por sua mulher...

_ Amanda... _ Sussurrou ele, saudoso de seu Amor Maior que a Vida. Laura caminhou até a porta, e antes de sair, olhou intensamente para o homem, e disse, com sua voz rouca, delicada e repleta de emoções:

_ Sabe, Ramirez, no fundo, bem no fundo, todas as mulheres, mesmo essas garotinhas de hoje em dia que se acham poderosas por saírem por aí balançando seus cartões de saúde, seduzindo e rebocando garotos a torto e a direita, todas elas sonham em ser especiais para um homem, e sonham em ser amadas assim, como você ama essa garota, um amor maior... Uma pena que homens capazes de amar assim, com tesão, mas com delicadeza e sensibilidade, sejam tão raros... Sorte de Amanda, que soube te conquistar. _ e a médica sorriu mais uma vez, seu sorriso encantador, suspirou, e por fim falou, enquanto ia saindo pela porta: _ Durma mais um pouco, meu lindo. Vou ver Dadon e te trago notícias em meia hora.

Ramirez ficou sem palavra. Não sabia o que dizer, e se sentia um menino tolo, ficando sem jeito assim, mas não pode dizer nada. Sorte dele que a mulher saiu logo, deixando-o sozinho. Ele se acomodou devagar na cama, e ficou olhando para a lareira, o olhar distante.

“Estou só...”, pensou ele, “Será que você tem consciência, minha Fadinha, do quanto me machuca ficar longe de você, sem te ver, sem ao menos falar com você? Será que você me ama como eu te amo? Assim, um amor tão grande? Será que você sente uma saudade de mim tão dolorida feito a que sinto de você? Sei que me ama, sei disso... Mas será que sente minha falta?”

Pensando assim, ele começou a ceder ao sono. Adormeceu um instante depois, tão cansado que estava, e então sonhou: ele estava deitado em uma rede, na varanda de uma casa, uma varanda pequena, mas muito aconchegante. Podia sentir uma suave brisa marítima vinda de fora. Não estava só, ela estava lá, enroscada em seu peito, ressonando, enquanto ele lia um livro. Ele tinha um braço envolvendo ela, outro segurando o livro em frente ao rosto. Ramirez podia sentir o peso agradável de longos anos de uma vida bem vivida, estava com cinqüenta anos, e estava em paz, realizado, satisfeito, feliz e orgulhoso da vida que viveu, e da família que construiu. Beijou a cabeça de sua mulher, ao que ela, ainda bela, sedutora e curvilínea, se espreguiçou, acariciou-lhe o peito, e oferecendo-lhe a boca bonita para ser beijada. Ramirez, como sempre, não se fez de rogado, tomou o rosto da mulher, e beijou Laura com paixão. Queria muito fazer amor com sua mulher. Então acordou quase que de um pulo!

_ Caramba! _ Disse Ramirez, ao acordar. Sentia-se acanhado, errado, como se só por ter sonhado estar beijando a médica estivesse traindo Amanda. Confuso, ele se levantou, mesmo com o corpo dolorido, e vestiu as roupas que deixaram para ele. Em pé, no aposento, ele repetiu, sem saber o que dizer: _ Caramba!

E neste exato segundo, os tecidos que serviam de porta para aquele quarto se agitaram, e Sheydiaz entrou, em passos suaves, sorriu, um sorriso maroto e bonito, e disse:

_ Oi. Já de pé? _ E percebendo o olhar ligeiramente tonto de Ramirez, ela fez cara séria, e se apressou em dizer: _ Que cara é essa? Você está bem? Está se sentindo bem, meu lindo?

_ Estou bem...

_ Deixe-me ver. _ Disse ela, se aproximando dele, mas ele deu um passo atrás. Ela percebeu, sorriu timidamente, e disse: _ Está com medo de mim? Porque está me evitando? O que foi?

_ Desculpe, estou um pouco tonto, mas já vai passar. E Dadon, está bem?

A pergunta dissipou a atitude insegura, e fez emergir a médica profissional e concentrada, e Sheydiaz respondeu, voz firme e amadurecida:

_ Precisamos tirar ela daqui rápido. Ela pode não sobreviver, Ramirez. Os monges estão sempre em torno dela, na maca improvisada onde a deixei, mas agora somente orações não vão ajudar, e eu estou exaurida, minha aura virtual está fragmentada, não vou poder fazer por ela o que fiz por você, isso só pode ser feito uma vez em um “mergulho”, mais do que isso e tanto médico como paciente podem morrer. Venha, preciso examinar você, tenho que saber se podemos sair daqui ainda hoje.

_ Temos uma “porta” de escape em Katmandu... _ Disse ele, ainda sem jeito, enquanto a médica examinava seus olhos, e depois levantava delicadamente sua blusa, para apalpar e examinar, com uma sutileza carinhosa, o ferimento em seu abdômen.

_ Está querendo ensinar missa a padre, senhor Ramirez _ Disse ela, sorrindo para ele enquanto verificava se as ataduras já deveriam ser trocadas _ Só falta me recitar as regras de input e output (15) das bolhas de memória quântica. Eu sei que precisamos de “janelas” para sair, e que dentro de um mundo VRNet não tem saídas em qualquer lugar... Porquê está me olhando desse jeito?

_ Desculpe! _ Disse ele e riu francamente _ Estou agindo como um adolescente. Estou sem graça porque sonhei com você...

Ela riu também, olhou com uma bonita expressão de surpresa, e perguntou, adivinhando:

_ Sonhou alguma coisa íntima comigo?

_ Hu-hum... _ Fez ele, seus olhos se frisando, a testa enrugando levemente. Agora que o conhecia intimamente, Laura sabia que ele olhava assim em algumas situações especiais: quando estava sem jeito, ou quando desejava profundamente algo...

_ Oh, poxa vida. _ Disse ela, um pouco sem fôlego. Ramirez tinha agora um ar muito sensual, muito atraente. “Casado, casado, casado”, repetiu ela em seus pensamentos, antes de continuar: _ Olhe, não fique sem jeito, isso é um efeito colateral normal de se mesclar sua aura virtual com a de outra pessoa. Seu subconsciente só está refletindo nossa súbita intimidade.

_ Sei disso, mas havia esquecido, desculpe doutora... Não me interprete mal, está bem? _ Disse ele, sorrindo. Ele havia sentado em um banquinho rústico de madeira, e a médica estava bem a sua frente, olhando-o nos olhos, pois havia examinado os olhos dele, sua boca e o tom da sua pele, além de sentir-lhe a temperatura. Estavam muito próximos, próximos demais, talvez.

Então Laura exibiu um pequeno sorriso enigmático para o homem, e principiou a dizer:

_ Sabe... Eu também...

Então, sem aviso, um estrondo fez tremer o chão. Ouviram gritos e tiros. Ramirez e Laura abaixaram-se e viram todo o teto do quarto ser arrancado por outra explosão. Laura se levantou as pressas, gritando:

_ Dadon! Dadon!

Ramirez tentou alcança-la, mas uma dor lancinante do abdômen o fez cair curvado para frente. O pequeno aposento se encheu de poeira quando outro morteiro explodiu sacudindo tudo. “Que loucura é essa?”, pensou ele, “Estão nos bombardeando com obuses (16)!”. Então ele se levantou, apesar da dor, e caminhou para frente, na direção em que viu Laura seguir. Saiu do que restou do quarto e se viu em um corredor em ruínas. Aqui e ali via corpos de monges.

...

Transmission Third World War (Rage Against the Machine – Guerilla Radio)

A morte, juntamente com o nascimento, a doença e a velhice, são as quatro aflições básicas da condição humana. (...) Além disso, essas quatro aflições estão dentro das categorias maiores de sofrimento que são experimentadas por todos os seres, tanto humanos quanto não-humanos. _ Lama Chagdud Tulku Rinpoche.

_ Laura! _ Chamou Ramirez, em meio a sons de tiros e gritos. Então a parede ao seu lado desabou, e ele pode ver o declive nevado que ficava logo abaixo do mosteiro. Soldados vestidos com uniformes negros subiam a escarpa, e lá de baixo vinha tiros traçantes, cortando o ar com suas trajetórias luminosas, passando por Áries com agudos e mortais silvos. Ele se agachou e voltou a gritar: _ Laura! Sheydiaz!!

_ Aqui! _ Respondeu a voz da amiga em meio aos estrondos _ Aqui, Áries!

Ramirez olhou para cima e viu que no final do que sobrou do corredor de madeira, uma escada estava ruindo, e no topo dela estavam Laura, um monge e provavelmente, pelo tamanho, Dadon, envolta em peles. Laura estendia a mão, suplicando que ele a alcançasse logo, pois iriam cair de cerca de vinte metros se a escada ruísse de vez. Ele respirou fundo, e correu em meio a balas e estilhaços. A atadura em seu estômago tingindo-se de vermelho imediatamente, mas ainda assim ele não parou, chegando até as garotas quando a escada caiu. Áries se atirou no chão e agarrou um pedaço do corrimão. A escada não havia despencado de vez, e se ele pudesse sustentar aquela haste de madeira, a escada não despencaria no abismo.

_ Tome, agarre Dadon! _ Gritou a médica. Não se importava com mais nada, apenas queria salvar a menina.

_ Agarre! Agarrem-se juntas! Agarrem-se ao monge, vou pegar os três. _ Disse ele, concentrado-se em seus músculos, que estavam se retesando ao máximo.

Laura agarrou firmemente Dadon, e falou com o monge, gritando em sua língua o que ele deveria fazer:

_ “Meu companheiro vai agarrar todos nós antes de cairmos! Segure firmemente a mim e a Dadon!”

O homem, com seus quarenta anos, pareceu não acreditar que Ramirez, ferido como estava, conseguisse segurar os três, mas assim que firmou as mulheres contra o peito, ergueu a mão. Áries soltou a escada, que ruiu totalmente, e agarrou com firmeza a mão do homem. Uma bala passou uivando próxima ao ouvido de Áries, mas ele não se desconcentrou. Puxou para si as pessoas que queria salva, e, com um esforço sobre-humano, levantou-os o suficiente para que Laura alcançasse a borda do corredor, e um momento depois estavam todos a salvo do abismo, mas nem puderam comemorar, pois uma explosão próxima encheu o ar em torno deles de fumaça, fogo e estilhaços.

Quando fumaça e destroços desceram, Ramirez se viu abraçando Dadon, que gemia baixinho em seus braços. Ao lado dele, uma mistura de roupas, peles e sangue, jaziam Laura e o monge. Em desespero, Áries deitou a menina, e agarrou o monge, que estava por cima da médica. Ele estava morto, crivado de estilhaços, mas Laura estava viva, com uma mancha de sangue na coxa direita. E médica chorava em silêncio, e olhou para ele dizendo:

_ Estou bem, ainda posso andar, só dói muito. Dadon está bem?

_ Sim, mas temos que sair daqui.

_ Olhe, um helicóptero está disparando contra os soldados! _ Disse Laura, apontando a aeronave que subia a encosta disparando claramente contra os atacantes do mosteiro. Viram um símbolo da força de paz da ONU na lateral no aparelho, e Ramirez então disse:

_ Claro! Aqui somos agentes da ONU. Eles deveriam estar a nossa procura faz tempo. Algum dos monges deveria ter um rádio, isso trouxe a cavalaria, mas também trouxe os bandidos que estava mais próximos. Vamos, temos que subir a encosta. É o único caminho livre.

_ Deixe! _ Falou Sheydiaz, quando Áries tentou levantar a companheira _ Posso me mover sozinha. Leve Dadon, ela está muito fraca.

Então Laura percebeu a enorme mancha de sangue nas ataduras da barriga de Ramirez, e as tocou com a ponta dos dedos, muito preocupada, dizendo:

_ Está pior. Deixe que eu carrego Dadon... _ Mas assim que se pôs de pé percebeu que mal poderia carregar a si mesma. Ao que Ramirez disse:

_ Laura! Vamos subir! Eu levo a menina! Rápido.

Logo abaixo deles os soldados de negro retaliavam, e, embora um segundo helicóptero tivesse entrado em cena, o primeiro foi abatido por um míssil portátil terra-ar disparado por um dos homens de negro. A máquina, em chamas, caiu entre eles e os soldados, e passou tão perto que puderam ver os pilotos em chamas, morrendo dentro da cabine destroçada. Laura não discutiu mais, se pôs de pé, com lágrimas de dor escorrendo-lhe pelas faces, e começou a escalar a rocha cheia de saliências, pois essa era a única esperança de fuga.

Atrás dela Ramirez pôs Dadon sobre um dos ombros, novamente respirando fundo e se concentrando. Começou a subir o rochedo gelado, agarrando com cuidado as saliências mais seguras, pois estava levando uma carga preciosa. Quando seu estômago tocava a pedra, deixava ali uma mancha de sangue. Seus braços tremiam, mas ele tentava se afastar, em sua mente, da dor. Com grande esforço ele e Laura conseguiram chegar, com Dadon, ao topo da rocha. Estavam exaustos, mas perceberam que os seus perseguidores haviam passado da linha de chamas do helicóptero abatido, e estavam começando a escalar o rochedo. E subiam rápido.

Laura viu que Áries estava exausto, curvado sobre Dadon, que estava deitada no chão. Sheydiaz pôs a mão sobre coxa ferida que doía e queimava, ardendo muito. Apurou a vista e percebeu, não muito longe, uma série de arcos e cavernas de gelo. Poderiam se esconder ali, usando técnicas de guerrilha, se necessário, para resistir por bom tempo aos perseguidores. Explicou isso para Ramirez, e o ajudou a ficar de pé. Ela tomou Dadon nos braços um pouco, e começaram a andar depressa naquela direção. A perna de Sheydiaz estava cheia de pequenos estilhaços de madeira e vidro, mas por sorte sangrava pouco. Entretanto, ela mal suportava seu próprio peso, e alguns metros a frente tropeçou quase derrubando Dadon. Ramirez tomou a menina nos braços e falou:

_ Acha que pode correr se não estiver carregando peso?

_ Sim... _ Respondeu a médica sem convicção _ Vamos... Você agüenta?

_ Eu preciso.

Começaram a correr sem grande velocidade, mas com passo firme. Atrás deles explodiam as primeiras cargas, sacudindo o chão e as rochas, o que dificultava ainda mais a corrida. Mas antes que os soldados chegassem o topo e começassem a atirar, os fugitivos já estavam na orla das cavernas, e quando as balas começaram e espocar em volta deles, os três se atiraram em uma raso fosso de gelo, escorregando até o fundo, e se arrastando para uma gruta de gelo, que por sorte dava em uma série se rachaduras no gelo grandes o suficiente para que eles se movessem. Em pouco tempo acharam uma caverna de rocha sólida e se esconderam ali, em silêncio. Laura tinha uma lanterna esquecida atada ao cinto, e agora ela foi bastante útil, pois um pouco de luz revigorou seus ânimos. Ao longe, ouviam tiros e explosões.

O frio era cortante, e precisavam aquecer Dadon, então se abraçaram com e menina entre eles. Agora era tudo que poderiam fazer. Na escuridão, ouviram a voz miudinha e delicada de Dadon, que sussurrava um mantra:

_ Om Tare Tuttare Ture Soha (17)... Om Tare Tuttare Ture Soha...

Após alguns minutos, quando os sons lá de fora cessaram _ os soldados deveriam estar vasculhando a área atrás deles _ Dadon parou de recitar o mantra, e, com seu jeitinho tímido, sem encarar os adultos, disse, com a voz cheia de paz e suavidade:

_ A primeira verdade nobre... Existem três tipos de sofrimento... Dukkha-dukkha, o sofrimento ordinário, nascimento, envelhecimento, doença e morte são alguns deles.... Virapinama-dukkha, é o sofrimento causado pela mudança, tudo muda. Estados ou condições de felicidade são transitórias, quando eles mudam, eles podem produzir dor, sofrimento, infelicidade ou desapontamento... Samkara-dukkha, _ Ela disse, sorrindo, na semi-escuridão, de como seus ouvintes adultos estavam hipnotizados com suas palavras. Ainda assim ela sabia que precisava lhes dizer aquilo, e prosseguiu: _ O Samkara-dukkha é o sofrimento por Estados Condicionados, quando o indivíduo, que é uma combinação de forças físicas e mentais em constante mudança, se apega aos cinco pancakkhandha, ou agregados: Matéria, Sensações, Percepções, Formações Mentais e Consciência... Estamos em um caminho de aprendizado, nós três, para superar o sofrimento, por isso precisamos dele...

Então a menina acariciou gentilmente a face de Laura, e voltando-se para o homem, abraçou Ramirez, sem se preocupar que pudesse ficar suja com o sangue dele, mas com toda a suavidade, para não lhe provocar dor. Ela beijou seu ombro, delicadamente, e se aconchegou a ele, ficando em silêncio por um longo tempo, até que Áries e Sheydiaz se entreolharam, e a moça sussurrou para a menina:

_ O que quer dizer, Dadon?... Dadon?

Mas a menina havia adormecido.

...

Bamba (Ela É Bamba – Ana Carolina / Loops of Fury – Chemical Brothers)

Só se aprende a amar, amando. _ Carlos Drummond de Andrade.

Tudo muito simples.

Amanda ficava impressionada como mudava sua visão de mundo quando seu corpo estava em Controle Sistêmico. Tudo era tão simples e objetivo quanto às máquinas que ela concertava desde que se conhecia por gente. Enquanto se lembrava quando concertou seu primeiro aparelho, sua boneca robótica Isabel, que havia caído de uma janela e estava em curto. Amanda deveria ter uns nove anos, quando, cheia de atitude pegou as ferramentas do pai, um engenheiro, que ela sempre que podia ficava vendo trabalhar, e, como por um passe de mágica, concertou Isabel. Se não estivesse tão concentrada em lutar, e tão fria interiormente, sentiria saudades de Isabel, que ficou perdida em seu passado, mas no seu atual estado, apenas pensou vagamente em que fim teria levado sua amiguinha de infância.

_ Agarrem esta mulher!! _ Gritava Malcom DeLucca, dono da Finders, que Amanda estava invadindo. _ Pelo amor de Deus, vocês são em maior número!

_ Estamos tentando, senhor! _ Disse uma mulher, forte e com músculos delineados, que Amanda derrubou com um chute lateral de Muay Tay, ao qual ela deu seqüência girando no ar e chutando mais dois seguranças. Caiu de pé, e tocou a testa com a ponta dos dedos, como se tentasse lembrar de alguma coisa.

Mais seguranças chegavam, e entre eles dois robôs. Amanda sabia que os robôs não a machucariam, mas “para a própria segurança dela” eles a imobilizariam, se ela permitisse. Olhou para o teto, hastes de alumínio recobertas de borracha preta formavam a decoração, e ao mesmo tempo serviam de suporte para as luzes. Ela então correu na direção do primeiro robô. A máquina, extremamente ágil, esticou ambos os braços para agarra-la, mas Amanda tocou suas mãos metálicas e plantou bananeira em seus braços, alcançando a haste de alumínio mais baixa passou rapidamente as pernas sobre ela e puxou o corpo para cima no exato momento em que o robô tentou novamente agarrar suas mãos. Vincentti, feito uma ginasta olímpica, girou sobre a paralela, trocou as pernas pelas mãos, e lançou ambos os pé contra os olhos fotoelétricos do robô, que com o golpe caiu sobre seu gêmeo que vinha logo atrás.

Amanda deu mais um giro e caiu no chão, tomando nova base, agora usando Kung Fu, estilo Garra de Águia.

_ Substitua as células fotoelétricas por duas American Diode AJE-06, e você vai enxergar melhor do que antes. _ Disse ela, friamente, ao robô caído. O segundo robô se pôs de pé, enquanto dois novos seguranças entravam na sala, um deles trazendo uma barra de choque de cerca de um metro e vinte, cujas pontas disparavam choques de alta voltagem atordoantes. Quando o robô número dois avançou sobre Amanda, ela simplesmente se deixou cair para trás, e levantou os pés, chutando com toda a força a junta do joelho da máquina, que desabou. Ficando rapidamente de pé, ela sorriu e disse, dando de ombros: _ Uma junta multidirecional universal GE CT-20, não agüentam pancadas transversais.

O segurança com a barra de choque, girou a arma no ar, e saltou por sobre um colega desacordado, colocando-se em posição de combate. Amanda percebeu Wushu em sua técnica, e correu para cima do robô caído. Era uma manobra perigosa, pois a máquina era rápida e poderia tê-la pego, mas era o trampolim mais próximo. Amanda correu sobre as amplas costas metálicas do robô e se arremessou para trás e para o alto, agarrando uma das hastes do teto, e pegando a ponta da barra de choque assim que o segurança tentou atingi-la. Cerca de doze centímetros da ponta da barra eram eletrificados, mas o pior estava na ponta. No ar, sustentada na haste coberta de borracha do teto, a italiana absorveu o doloroso choque sem nem mudar a expressão do rosto e arrancou a arma da mão do homem, soltando-se, girando a barra no ar com a perícia de uma artista marcial, tocando o chão e aplicando um violento choque no seu adversário, que desabou no chão. Agora havia apenas uma segurança de pé na sala, que nem tentou lutar, saindo as carreiras da sala. Amanda caiu por sobre Malcom, que ainda choramingava no sofá, e foi dizendo:

_ Como chego até meu Marido?

_ V-você torceu meu braço...

Ela ficou de pé, girou a barra de choque e a apontou para a cara de Malcom, que deu um gritinho, e falou depressa, estendendo um cartão metálico para ela:

_ Ahh, tome, tome. Pegue o elevador blindado no saguão, e use meu cartão de superusuário para chegar ao tanque de VRDiver 25!! Tome, tome! Mas os federais estão no prédio! Eles estão atrás de algo que as pessoas que Ramirez foi resgatar acharam naquele mundo VRNet!

_ O que é?

_ Não sei.

Amanda aplicou o choque atordoante em DeLucca no exato instante em que começaram a atirar pela porta. Uma das balas chegou mesmo a atingir o braço de Malcom, mas ele já estava desacordado. Rápida como só uma agente C7 em Controle Sistêmico poderia ser, ela avançou em meio as balas, e lançou a sua frente a barra de choque, que acertou o pescoço de dois policiais federais com roupas de tropa de choque, os trajes impediram que eles tivessem as traquéias esmagadas pelo golpe, mas ainda assim eles vacilaram para trás tempo o suficiente para que Amanda socasse um deles no queixo por baixo do capacete, e empurrasse o outro. Seus colegas de trás não podiam atirar senão acertavam os amigos na frente, e ela então arrancou as armas dos dois, duas automáticas padrão, e arrancou seu sobretudo, girando-o bem a sua frente, impedindo que os outros atiradores, um homem e uma mulher também com trajes de choque, pudessem ter uma mira ideal. Ela própria, entretanto, já havia rapidamente calculado a posição de ambos, e a trajetória de suas balas quando atirassem. Por detrás de sua capa, que girava no ar, ela ficou de lado, levemente curvada para trás, e apenas uma bala disparada pelos policiais a atingiu, mas apenas de raspão nas costas, deixando uma trilha vermelha e dolorida em seu torso perfeito. Amanda então fez seus disparos: um projétil para cada policial, ambos atingiram o alvo, na altura do peito. A capa de Amanda caiu, e ela andou para frente, atirando com ambas as armas que tomou. Sabia que teria pouca munição, então acertava os policiais em zonas sensíveis e mais frágeis de suas roupas a prova de bala. Na verdade conseguiu não matar ninguém, mas apenas derruba-los. Eles podiam não levar o tiro, mas o coice de uma bala no peito deixava qualquer um sem fôlego.

Ao passar por sua barra de choque ela enfiou a ponta da bota esquerda sobre ela e arremessou a barra para o alto, largando as duas pistolas assim que a munição delas acabou, e agarrando a barra no ar. Não teria tempo de roubar as pistolas dos outros dois policiais caídos e armazenar a cena da entrada em sua memória visual ao mesmo tempo. Olhou para frente. Estava na saída da sala de reunião em que fora levada para conversar com DeLucca, e de frente para o saguão principal do prédio. A jovem oriental que atendia ao balcão na entrada foi retirada, e aquilo estava apinhado de policiais. Subitamente disparou na direção do elevador de aço que ficava no fundo.

_ Tablet, explode! _ Disse Amanda arrancando o tablet da cintura e o arremessando contra a linha de atiradores entre ela e o elevador. O Governo não a deixava chegar perto de armas, mas preparar seu tablet pessoal para explodir, em uma ocasião como aquelas, era um “jeitinho” que a especialista em manutenção Amanda Vincentti sabia aprontar com um mínimo de recursos.

Os policiais começaram a atirar, mas foram ofuscados por uma explosão branca e brilhante bem à frente. Amanda, que havia polarizado seus óculos para a exata freqüência da carga luminosa que preparou em seu tablet, via perfeitamente, e atravessou a linha de atiradores usando a barra de choque para efetuar um belo salto com vara por sobre os policiais. Enquanto girava no ar, Vincentti não percebeu, mas as balas mudavam a trajetória alguns milímetros para não acertar ela. Como havia dito à Jane Arquette, não era só Layla que possuía alma de bruxa. Mesmo sem ter consciência, cada vez mais Amanda também fazia seus “truques”.

Ao cair, um outro robô a esperava bem em frente à porta do elevador, mas com este Amanda não poderia perder tempo com delicadezas, e ao cair do salto, simplesmente bateu com toda a sua força no robô, usando a barra de choque. A máquina desabou na sua frente. Antes que os policiais percebessem, ela usou o cartão de Malcom e entrou no elevador. Girou no eixo, ficando de costas para o fundo do elevador, e de frente para os policiais, que se viravam apontando fuzis de assalto. Amanda tirou os óculos com uma das mãos, sorrindo para os “tiras”, enquanto com a outra, que ainda segurava a barra de choque, pressionou o botão com o nome “Finders”.

A porta do elevador se fechou meio segundo antes de os policiais dispararem contra suas portas de aço. Amanda descia em segurança, mas já se preparava para o que encontraria lá embaixo. Olhou em volta. O elevador oferecia poucos recursos, só havia uma saída, por onde ela entrou, seus sistemas deveriam receber manutenção externamente, por dentro ele era liso, todo em aço. Não dava para ter acesso aos seus circuitos. Quando o elevador parou, Amanda ainda não tinha um plano, apenas sabia que teria que ser muito rápida e contar com a sorte. Recolocou os óculos escuros, e ajeitou sua bela cabeleira negra, firmando uma base de luta, e segurando a barra de choque bem na sua frente.

A porta se abriu.

Aplausos.

_ Urrúúúúúú!! _ Gritavam uns homens e mulheres aplaudindo. Alguns usavam sumários trajes de banho.

_ Garota, que foi isso? _ Perguntou um negro alto e muito forte, com um brilhante sorriso _ Você parecia uma Diver, só que no mundo real!!

_ Me explica como fez aquilo tudo, rapá! _ Disse um sujeitinho magricelo e com cara de rato, que Amanda teve a impressão de conhecer de algum lugar.

_ Quem são vocês? _ Ela perguntou, fria e objetivamente.

_ MadDivers experientes, doçura! _ Respondeu o magricelo, e Amanda teve quase certeza que o conhecia de algum lugar mesmo, mas quando ameaçou perguntar, foi ovacionada novamente, com gritos e aplausos. Do meio da multidão surgiu um rosto conhecido.

Amanda baixou a arma, e deu um passo à frente, recebendo abraços e tapinhas nas costas. A mulher que ela reconheceu se adiantou e lhe estendeu a mão para apertar. Amanda apertou a mão da garota, dizendo:

_ Me viram por sistema interno de TV, Virgem?

_ E não? Foi bárbaro! Totalmente bruto! Altamente on! Como fez aquilo, italiana?

Amanda sorriu, e disse:

_ Mágica. _ e ficando muito séria, acrescentou _ Onde fica o tanque de VRDiver 25?

_ Por aqui, venha. A galera adorou principalmente a sova que deu em Malcom, aquilo foi uma delícia. Ele é um mala! Explora a gente, ta on?

Ao passarem por uma sala, Amanda percebeu um grupo de homens e mulheres amarrados e amordaçados, e perguntou:

_ Federais?

_ A maioria _ Disse Arquette _ Alguns são colegas de trabalho que não concordaram com a nossa “rebeliãozinha”.

_ Vocês podem se encrencar me ajudando deste jeito. Sabe disso.

_ Na boa, totalmente jotaquê. Estamos curtindo demais isso, afinal de contas somos ou não somos MadDivers? _ Disse a jovem, linda com um enorme e radiante sorriso.

_ Na minha casa você disse que temia perde o emprego.

_ Mudei de idéia, nós malucos somos volúveis. Olhai o VRD dois cinco. Quando um VRD está em uso fica quase incomunicável, mas conseguimos penetrar a barreira e avisar Greg sobre você. Ele também está a fim de ajudar, porque gosta muito de Ramirez. Mas Malcom havia trancado a sala.

Amanda estendeu o cartão metálico, o introduziu no sensor, e a porta se abriu. Dentro, uma sala espartana, com alguns armários, e dois bancos longos e baixos. Rapidamente a italiana percebeu uma escada e um compartimento envidraçado mais no alto.

_ É o CM, comando da missão. _ Disse Virgem _ Vamos, vamos subir.

Em um momento, Amanda apertava a mão de Greg, que era um homem grisalho mas tremendamente atraente, vestindo penas uma sunga de banho. O homem foi dizendo:

_ Você está usando drogas ou algum tipo de nanotecnologia para fazer essas proezas?

_ Amo meu marido. Vim buscar ele. Só isso.

_ Sabe, cá entre nós _ Disse ele, sentando-se no console de comando _ A maioria dos MadDivers admira os C7. COnhecer uma de vocês pessoalmente é uma honra...

E ele dá uma olhadela de lado em Amanda, acrescentando:

_ Além do quê, você é bonita de doer! Olhe, estes são os dados dos sensores de Ramirez, ele está lá dentro, em contato com o aminiolink, sabe o que é?

_ Sim, já estudei sobre o assunto, para o caso de precisar mexer em um equipamento desses.

_ É engenheira?

_ De manutenção de sistemas.

_ Então sabe que não podemos simplesmente arrancar seu marido do tanque, não sabe?

_ Sim, ele precisa de uma janela de saída lá de dentro. Descreva a situação.

Gregory fez mais que isso, ele passou todas as gravações que conseguiu, mesmo com as interferências. Era mais fácil captar o que acontecia com os Divers em “mergulho” do que conversar diretamente com eles, então tinha gravado em vídeo mais ou menos tudo o que aconteceu até ali com Ramirez, Dadon e Laura. Na cena em que ele dizia ter sonhado com Laura, Virgem fez uma pequena careta e olhou de lado para Amanda, que pareceu não se emocionar, permanecendo impassível. Ao fim de tudo, ela disse:

_ Ele vai se sacrificar pelos outros. Conheço meu marido, é como a irmão dele. Preciso tirar ele dela depressa. _ Virando-se para Escorpião, Amanda diz: _ Greg, como podemos contornar as travas de segurança e mergulhar mais alguém lá?

_ Eu não consigo. Mas você é engenheira, pode ser uma saída para enviar ajuda para o cara...

_ Onde fica o núcleo do sistema? _ Perguntou Amanda, tirando os óculos escuros.

_ Aqui na sala de preparação, mais ou menos embaixo dessa cabine. _ Disse Gregory, impressionado com a beleza do olhar concentrado e furioso de Amanda Vincentti.

_ Quero ferramentas.

_ Aqui, tome. _ Fez Greg, entregando a ela uma caixa com equipamentos básicos que a manutenção sempre esquecia por ali. _ É tudo que temos aqui. A manutenção vem lá de cima.

_ Io me viro. Fique atento no controle. Me empresta um comunicador. Virgem, me leve até o núcleo do sistema.

Em poucos momentos Amanda estava com um comunicador no ouvido, agachada sob um painel grande, desengatando a cobertura do sistema, e remexendo com precisão e rapidez em placas de circuitos e sistemas óticos de conexão. Só parou por um instante, para olhar para sua mão direita, que tremia sem parar. Depois de um minuto, ela parou de tremer, e Vincentti recomeçou a trabalhar. Ela sabia o por quê daquilo: não poderia ficar em Controle Sistêmico indefinidamente ou seu sistema nervoso “derreteria”.

...

Gentle Persuasion (Head Over Heels – Tears For Fears)

Um covarde é incapaz de demonstrar amor. Isso é privilégio dos corajosos. _ Gandhi.

Aconteceu rápido. Primeiro Dadon piorou. Passaram-se horas dentro da escuridão, a lanterna desligada para economizar energia, subitamente Dadon recitou a segunda verdade nobre, dizendo, com a voz vacilante:

_ Samudaya, samuday, é a segunda verdade nobre, a causa do sofrimento... Todo sofrimento é causado pelo desejo, pela paixão, pelo desejo de ter, e pelo desejo de não ter, que é a aversão... O desejo de sentir é o desejo de querer sentir experiências agradáveis, como comer e fazer sexo... O desejo de se tornar é a ambição de querer reconhecimento e fama... O desejo de se livrar é a vontade de nos livrarmos de experiências desagradáveis na vida: raiva, medo, ciúmes... Nós ignoramos o fato de que a satisfação de nossos desejos não os elimina...

_ Ela está ardendo em febre, Ramirez... _ Disse Laura, que acendeu a lanterna e examinava Dadon _ Não tenho remédios para dar a ela...

_ Me ensine a técnica de misturar minha aura virtual a dela... _ Disse Ramirez.

_ Mesmo que fosse possível te ensinar tão rápido, você morreria. Está muito fraco, meu lindo. _ Disse ela, também muito fraca, mas tendo a gentileza de tocar de leve o rosto do amigo, dizendo em seguida: _ Ramirez, você também está com muita febre. Seu corpo deve estar fervendo o aminiolink lá fora. Preciso tirar os dois daqui... Vamos... Os soldados devem ter desistido, estão em silêncio há muito tempo.

Ela levantou, e pegou Dadon no colo. Já Ramirez ela ajudou a se levantar, e o apoiou em seu ombro. Começaram a caminhar na escuridão. A dormência na sua perna ferida indicava que ela poderia estar com a circulação comprometida, mas por um lado era bom, sentia pouca dor.

Eles se arrastaram com dificuldade pelos corredores de gelo, e chegaram na entrada da caverna. Ali Laura deixou Ramirez e Dadon. Ramirez murmurava algo sobre sua filha Maya, algo sobre não temer o futuro. Laura sabia que, ardendo em febre como estava, deveria estar delirando. Sem saber como agir com seus dois pacientes, preferiu se arriscar sozinha lá fora. Então saiu, sob a luz do pôr do sol. Como não ouvisse ou percebesse nada, ela apenas caminhou com os dois para frente. De repente, após sair do afloramento de gelo, viu um helicóptero pousado a poucos metros.

_ Oh... Oh, meu Deus... _ Disse ela, sorrindo, mas tão feliz de ver o aparelho com a insígnia da ONU e o piloto com seu capacete azul remexendo no rotor da aeronave, que conseguiu forças para se arrastar rapidamente, e foi dizendo: _ O Senhor é meu pastor, e nada me faltará... Obrigado Senhor... Ei! Ei! Piloto! Aqui! Somos nós, do grupo avançado de Boinas Azuis (19)!

O piloto primeiro se assustou, depois a reconheceu e veio correndo ajudar. Ele também estava ferido, com uma feia queimadura no peito, mas bateu continência, dizendo, em inglês:

_ Sou o Tenente Orzabal, senhora. _ Era um moço muito jovem, mas parecendo bastante capaz.

_ Sou a Capitão médica Laura Dias, das forças especiais... Estou com um homem com roupas de monge, e uma menina aqui atrás... _ Disse ela, falando sobre a sua identidade dentro daquele mundo VRNet _ Está ferido, tenente.

_ Sim, senhora. Eu era o segundo na aeronave, meu piloto foi mortalmente ferido, o corpo está atrás. O rotor falhou, pousei e acho que dei um jeito na coisa. Os inimigos simplesmente me ignoraram.

_ Isso é uma armadilha!! _ Gritou Ramirez, que vinha caminhando com muita dificuldade e carregando Dadon no colo, desde lá de trás. Neste momento as balas começaram a cortar a penumbra, e uma delas pegou em cheio no ombro de Sheydiaz, que girou e caiu. Ramirez gritava _ Não! Laura! Tire ela daí, cara!

O rapaz sacou sua pistola e disparou contra e escuridão, arrastando consigo a médica, que se agarrava a ele, mordendo os lábios de dor. Ela balbuciava, em um transe de dor e raiva devido à impotência que sentia agora:

_ Ahhhh... Que merda! Que droga! Me deixe ficar, tenente, eu tenho meu pacientes...

_ Vai ficar tudo bem! A senhora vai sair dessa, Capitão. _ Dizia o rapaz, realmente mostrando excepcional autocontrole sob o fogo inimigo. Ele a estava levando para o helicóptero.

_ Vão usar um míssil em nós... _ Murmurou Sheydiaz.

_ Eu sei, senhora, mas voltar para as cavernas é correr para os braços deles. Vamos torcer para eles errarem o tiro!

O tenente colocou Laura na parte de trás do helicóptero, e afivelou rapidamente seu cinto, quase tomando um tiro na cabeça, que ricocheteou na carlinga do aparelho, e passou a um centímetro do rosto da médica. O jovem piloto se posicionou e ligou o helicóptero, levantando vôo.

_ Espere! _ Gritou Sheydiaz _ Tem que esperar os outros!

_ Vou tentar, senhora! Vou tentar! Mas eles estão atirando de lá de onde vocês vieram!

Como que para confirmar suas palavras, uma nova rajada de balas explodiu sobre eles, uma delas atingindo o piloto no rosto. Primeiro a médica achou que o jovem Orzabal tinha morrido, depois percebeu que ele havia tomado uma perfuração de fuzil na face, mas ainda estava lutando bravamente com os controles do helicóptero. Laura tinha que se esforçar para não se penalizar com o jovem tenente. Sabia que ele era um programa de computador, mas parecia tão real, estava tentando salva-la com tanta coragem. Mas não podia deixar duas pessoas reais para trás, e usando seu braço bom escancarou a porta de trás do aparelho. Do lado de fora, Ramirez vinha carregando Dadon em meio a tiros de fuzil que, por enquanto, miravam no helicóptero. Laura não pode se conter, e começou a chorar, enquanto estendia a mão para o companheiro, mas ele estava muito longe ainda, e ela estava quase desmaiando.

Áries então, sem aviso, pôs com cuidado Dadon no chão, e começou a gritar algo. Laura se esforçou para apurar um pouco os ouvidos, no meio do tiroteio, e pode perceber algumas palavras:

_ Terra-ar... Da encosta... Voe ao contrário... _ Ele gritava e agitava os braços, apontando na direção da encosta, fazendo um sinal que simbolizava míssil, e apontando para as montanhas atrás de si, de onde vinham os tiros, e para onde ele queria que o piloto voasse para ficar a salvo.

_ Nãooooo... _ Disse Laura, disposta a não deixar de modo algum os dois para trás, mas o jovem Orzabal pareceu entender, e guinou o helicóptero em direção de Ramirez. O piloto acreditava que o homem lá embaixo tinha visto um disparador de mísseis na encosta. Normalmente o piloto voaria para lá, descendo pelo aclive para fugir aos disparos de fuzis, mas se houvesse mesmo um disparador na encosta, a aeronave seria alvo fácil.

Pois de fato um míssil do tipo terra-ar tentou atingir o helicóptero vindo da encosta onde jaziam os destroços do mosteiro e do outro helicóptero, mas o projétil passou por cima deles, indo acertar o topo de uma montanha próxima. Entretanto, para escapar do míssil, Orzabal teve de apontar o helicóptero direto para os atiradores, e portanto precisava passar rápido sobre eles para não ser atingido mortalmente.

Laura só pode vislumbrar Ramirez sendo tragado, lá embaixo, pela escuridão gelada, enquanto o helicóptero passava por cima dele. Ao passar, Laura, que havia pego uma mochila com um fuzil e mantimentos no fundo do helicóptero, arremessou o equipamento para Áries. A aeronave se distanciou então, rapidamente, e fez uma larga curva sobre as montanhas geladas, indo em direção ao Nepal.

_ Oh, meu lindo... Oh, Dadon... _ Murmurou ela, em um pranto amargo, usando de todas as suas forças para não desmaiar. Orzabal, devido à pressa, não pode sequer efetuar os primeiros socorros com ela, portanto a moça estava se esvaindo em sangue, e em seu atual estado, lhe era impossível usar seus dons de Diver para se cuidar. _ Eu fiz tudo que pude... _ Ela disse e apagou, mergulhando em uma dolorida e culpada escuridão, sem saber que, apesar de tudo, Ramirez, que ficou para trás, com a terrível responsabilidade de salvar Dadon, ficou muito feliz de saber, no fundo de seu coração, que Laura estava viva, e que em breve estaria sob cuidados médicos em Katmandu.

Ramirez encontrou a bolsa com o fuzil, munição, comida, e alguns medicamentos de emergência. Tomou um antitérmico potente, e se injetou um forte energético. Deu um remédio mais fraco para Dadon, e disse:

_ Obrigado, boneca. Você nos deu uma chance de viver, Laura. Se Deus me ajudar, vou entregar Dadon em suas mãos, viva, para você cuidar dela.

A escuridão o encobriu, e ele conseguiu se desvencilhar dos atiradores e descer pela encosta, até a planície de gelo, carregando a mochila nas costas e Dadon sobre os ombros.

...

Transfere Pro Meu Corpo Seus Sentidos... (Sentidos – Zélia Duncan)

Temer o amor é temer a vida, e os que temem a vida já estão meio mortos. _ Bertrand Russell.

_ Amanda!! _ Alguém gritou, e a esposa de Ramirez acordou, tossindo e assustada. A italiana havia desmaiado, não resistiu a tensão de ficar tanto tempo em Controle Sistêmico. _ Amanda, essa droga de comunicador não funciona, estamos te chamando... Oh, puxa, cara!!

Virgem veio descendo as escadas e gritando com Amanda. Mas ao chegar onde Vincentti havia terminado de abrir as travas de segurança, deu de cara com a mulher de Ramirez se levantando, os olhos muito vermelhos, olheiras profundas, e um grosso filete de sangue escorrendo de seu nariz. Amanda limpou o sangue com a mão, e encarou Virgem, dizendo:

_ Qual é, Jane? O que está acontecendo lá em cima? Ramirez ta legal?

_ Você ta sangrando, e ta pálida feito um cadáver!

_ Eu fico assim quando bato nos outros. Agora fala, garota! O que está acontecendo?

_ Duas coisas: os federais estão entrando em nosso link, vão invadir o mundo em que Ramirez está, e outra: o bonitão do teu marido ta chegando no limite, ele está... Morrendo... Está carregando a menina, sozinho e correndo feito um louco com um rasgo profundo na barriga e pegando fogo de tanta febre.

Amanda subiu as escadas em disparada, e entrou feito um furacão no CM, parando ao lado de Greg, que tomou um susto com sua aparência exausta, mas foi contando:

_ A DataDiver Laura está sendo socorrida por médicos virtuais em Katmandu, eles foram emboscados, e o piloto de um helicóptero só conseguiu tirar ela de lá. Ramirez e a menina ficaram para trás. Ele conseguiu ganhar alguma distância daqueles programas estranhos que estão caçando eles, mas está tentando chegar a saída em Katmandu do único jeito que lhe sobrou: correndo o caminho todo de volta. Olha os sinais vitais dele, estão quase saindo de escala, se ele continuar neste ritmo, vai morrer.

_ E que história é essa de que uns ficaiolla de uns federais estão tentando entrar no nosso link? Não é possível que vocês não façam idéia do que esse caras querem.

_ Seguinte, deixa eu te por a par. Eles estão no prédio há dias, mas achamos que estavam apenas fiscalizando a gente. Com estávamos limpos, não temíamos nada. Acontece que quando o bicho começou a pegar na missão da Áries, teu Ramirez, o Malcom veio com uma história de que esses caras estavam aqui por causa dessa missão, que teria algum hacker doido aprontando dentro desse mundo VRNet, e por isso as pessoas estariam ficando confusas ali. Parece que teria algo haver com um vírus de computador novo, que atinge um Diver e o deixa maluco. Os caras afrouxaram a guarda, e até deixaram a gente trabalhar sem eles por aqui, até que Ramirez entrou, e foi ferido. Aí os caras mandaram lacrar o tanque de VRDiver 25. Malcom veio aqui, e mandou a gente ficar de quarentena, eu e Áries. EU disse que o cara tava muito ferido, e o chefe me mandou ficar na minha. Então Contatei Arquette lá fora, e contei a história, e ela foi te buscar.

_ Hum. Eles queriam deixar o acesso aquele VRMundo fechado. _ Disse Amanda, enxugando novamente o sangue que escorria (agora menos) de seu nariz _ Agora os caras estão lá de fora tentando invadir.

_ Eiiii! _ Fez Virgem, que estava monitorando os consoles _ E não são só os federais, olha isso, tinha alguém conectado ao nosso link o tempo todo, e agora o safado está aparecendo porque está tentando invadir o VRMundo também.

_ Rastreia isso! _ Disse Vincentti, sentando em um console e operando a máquina _ Eu andei estudando umas técnicas hacker, vejamos...

E os três trabalharam em paralelo, dificultando a quebra do link por algum tempo, confirmando que uma das conexões era federal, e que a outra vinha não de fora, mas de dentro.

_ Entenderam isso? _ Perguntou Amanda, atônita.

_ Um “usuário” interno, de outro mundo da VRNet, ou seja, um outro programa, está tentando passar para o VRMundo onde está Ramirez. _ Conjeturou Gregory.

_ Tentando não. Hackear é comigo mesma! _ Disse Jane, mostrando a língua e continuando _ Esse “interno” já entrou várias vezes. É ele quem está enviando os soldados de preto atrás dos nossos.

_ Dá prá desconectar ele? _ Perguntou Amanda.

_ Sem chance, o cara está acessando por dentro, um “zilhão” de vezes mais rápido e estável que nosso link, que nem chega a ser uma TT1. _ Respondeu Virgem. _ Mas o cara que está conectando por dentro ta mandando alguém especial, talvez ele mesmo, para Katmandu... Exatamente para o ponto de encontro.

_ Aposto que os federais também pretendem entrar por ali, claro. _ Disse Greg.

Amanda ficou olhando o console, e Gregory viu uma gota de sangue pingar sobre o teclado. Tentou afastar os cabelos de Vincentti para perguntar se ela estava bem, mas a italiana, mais fervente que nunca, afastou sua mão com um tapa, dizendo:

_ Não toca em mim. Vão ferrar ele. Alguém está querendo “queimar arquivo” aqui, e vão apagar quem estiver pelo caminho... Tenho que tirar ele de lá... Eu vou entrar.

_ Ei, ei, olhe, Amanda, eu vi que você faz mágica quando quer, _ Disse Escorpião _ Mas porque não deixa que nós façamos isso? Eu e Virgem somos experientes am Diver, você não.

_ Cruzes! O tempo está maluquinho lá dentro... _ Disse Virgem, digitando comando em seu console _ Olha isso... Ramirez correu por toda uma noite, alcançou o Nepal, e está na fronteira, mas em todo o lugar que tenta parar, encontra soldados de preto... Ele os está evitando, mas... Ei, olha só, o tempo avançou de novo! Ele conseguiu um médico para Dadon, mas teve que fugir as pressas da clínica de fronteira, porque explodiram o lugar... Laura se recuperou, e não está saindo. Está voltando para encontrar com ele. Isso ta parecendo um conto de ficção, ou algum romance policial...

Enquanto Jane descrevia os eventos que se sucediam cada vez mais rapidamente, Amanda olhava ansiosa para os sensores com os sinais vitais de Ramirez, para a imagem do tanque, de seu corpo boiando encolhido e trêmulo (frágil como ela jamais o viu) no aminiolink, e de volta para Jane, que prosseguia:

_ Olha, olha! Laura Conseguiu fazer contato com Ramirez, e estão os dois entrando no prédio onde está nossa saída, em Katmandu. Cara, o tal acesso interno vai entrar, e os federais também... Oh, meu Deus, Ramirez está fibrilando. Vai morrer!

_ E eu já vi esse tipo de aceleração de tempo em VRNet antes _ Vaticinou Gregory _ A bolha de memória quântica onde está este mundo virtual vai implodir a qualquer momento. É raro, mas acontece.

Amanda se levantou de um pulo, e desceu as escadas correndo, enquanto caminhava na sala de preparo, foi dizendo ao comunicador:

_ Eu vou entrar!

_ Mas Amanda... _ Disse Greg, em uma última tentativa.

_ Porra, abre a porta, cara, senão eu arrombo!

_ Você precisa se preparar!

_ Não dá tempo!

_ Tem que dar, sem o equipamento, você só vai ficar boiando no tanque sem entrar na VRNet, Amanda, deixa a Jane te ajudar...

A garota chegou correndo, e disse:

_ Vou pegar um maiô para você!

_ Não precisa! _ Respondeu Amanda, tirando rapidamente sua roupa, e ficando seminua (não estava usando sutiã), para espanto de Gregory, que suspirou dentro do CM. Mesmo abatida, a visão de Amanda naquele trajes mínimos era estonteante. Na verdade foi algo beirando um fetiche para o “rodado” Escorpião ver Jane (sem a menor maldade, mas para o homem isso não fazia qualquer diferença) passar o creme dessensibilizante por sobre toda a pele alva de Amanda. Aquilo pareceu demorar uma eternidade, e Greg não resistiu, e pôs o vídeo para gravar a cena. Tinha algo de voyeur o Gregory.

_ Agora abre a merda da porta, stronzo! _ Gritou Amanda, que nem exausta conseguia ficar menos que linda.

_ Abrindo, madame.

Amanda entrou no compartimento estanque, e assim que ela foi descontaminada, e a porta interna se abriu, ela entrou correndo, e deu um salto para dentro do tanque.

_ E lá vai ela! _ Gritou Jane, na torcida _ Arrasa, Amanda “Furacão” Vincentti! Arrasa!

...

(continua...)

_______________________________________

Nota do Autor:

(1) - Governo - Gíria dos MadDivers para os DataDivers.

(2) - Apelido dentro da rede.

(3) - Aminiolink - Óleo orgânico de baixa densidade que fornece a conexão física com a VRNet.

(4) - Neurolink - Equipamento que adere, por cola orgânica, à pele da têmpora, e gera o campo de imersão (7), que, em contato com o Aminiolink, vai gerar a conexão direta do cérebro com a VRNet.

(5) - CM - Comando da Missão, equipe geralmente formada por outros dois “mergulhadores” que fica na realidade, monitorando e acompanhando de fora o mergulho.

(6) - Nanomeks - Nanomecanismos, minúsculos robôs moleculares.

(7) - Campo de Imersão - um campo bioelétrico que transmite a todo o sistema nervoso os sinais da VRNet e vice-versa.

(8) - LR - Linha Reta - Morte Encefalográfica, coma profundo com parada de atividade cerebral superior.

(9) - Modo como os DataDivers se referem às vezes aos MadDivers.

(10) – Arahant - O Valoroso, o ser totalmente Desperto, o ser humano perfeito: um ser vivo completamente livre e vazio de todos os apegos, impurezas, crença em individualidades permanentes, egoísmo e sofrimento

(11) – Annutara Samyak Sambodhi - a experiência de iluminação na qual a pessoa se torna um Buda.

(12) – Dhamma - Verdade, Natureza, Lei, Dever, “o modo como as coisas são”: esta palavra é impossível de ser traduzida e tem muitos significados, os mais importantes sendo Natureza, a Lei da Natureza, nosso Dever de acordo com a Lei Natural e os Frutos de cumprir aquele Dever corretamente de acordo com a Lei Natural. Quando utilizada em minúsculas (dhamma) significa coisa, coisas: tanto os fenômenos condicionados como o númeno incondicionado. Em sânscrito é o Dharma.

(13) – Controle Sistêmico – Condição especial quando os agentes do C7 entravam em um semi-transe, e tinham todas as suas funções biológicas aumentadas, de modo que ficavam mais fortes, mais atentos, quase super-humanos.

(14) – Orwel – Computador onipresente que vigiava os agentes C7 antes de a Agência ser desmantelada.

(15) – Input / Output – Conexões de entrada e saída, através das quais um Diver entra e sai dos mundos virtuais da VRNet.

(16) – Obuses – Projéteis explosivos lançados a distância.

(17) – Om Tare Tuttare Ture Soha – OM significa os sagrados corpo, fala e mente de Tara (18). TARE é a liberação do sofrimento verdadeiro, o sofrimento do samsara, nossos agregados que estão sob o controle da desilusão e do karma. TUTTARE , a liberação dos Oito Grandes Medos; internos e externos; das desilusões e também do karma. TURE , a liberação da ignorância da absoluta natureza do Eu. Ela mostra a verdadeira cessação do sofrimento. SOHA significa "possa o significado do mantra se enrraizar em minha mente.

(18) – Tara – Contraparte feminina do bodisattva da compaixão, a "Mãe de todos os Budas," a Tara protege o bem estar de todos os seres e aqueles que são devotos a ela são especialmente afortunados.

(19) – Boinas Azuis – Como é chamada a força de paz da ONU.


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