Vale dos Reis

RPG:C7

Vale dos Reis

Autor: Wagner Ribeiro

Novembro/2002

 

I - Ramirez

O detetive Guilherme Ramirez Martins, policial internacional locado em Berna, na Suíça, estava bastante longe de seu posto habitual, procedendo a um serviço sério de investigação no Marrocos. Era noite, e a cidade estava repleta das gentes que costumavam trocar as horas de trabalho do dia por diversão à noite. Homens e mulheres, e todas as nuances intermediárias daquele ano intenso de 2146 deslizavam pelas ruas castanhas, em ondas animadas às vezes por estados de espírito, às vezes por drogas mesmo. Riam e adejavam a volta do sério policial que, homem grande, destacava-se muitas vezes por sobre o oceano coleante de cabeças, pedindo licenças e dando leves empurrões para poder passar e seguir em direção ao seu destino: a boate Vale dos Reis, suntuosa ao extremo, pertencente a um grupo de investidores, encabeçado por um sujeito que a muito é “figura fácil” nos documentos investigados por Ramirez, chamado Vladimir Proshenko.

Arcos gigantescos, forrados de terminais de dados tablets exibindo videoclipes musicais dos sucessos do momento, erguiam-se sobre as cabeças agitadas dos que buscavam entrar na boate, e a volta dos arcos, imensos (mais de 5 andares, talvez) tubos projetores continham hologramas de duas mulheres egípcias que dançavam em trajes que eram adaptações grosseiras das roupas típicas, deixando-as sedutoras e sexy, quase nuas que estavam. Por um momento uma daquelas beldades gigantescas pareceu perceber Ramirez olhando para elas, e devolveu o olhar, carregado de ardência sensual. O policial não se deixou seduzir pois sabia serem movimentos programados para excitar o público. Entretanto, alguns jovens subitamente pularam aos berros, bem à volta de Guilherme, talvez tentando alcançar as coxas morenas das gigantes. Percebendo que os garotos e garotas chamavam atenção demais, tratou de ir entrando na Vale dos Reis, e deixou a algazarra inconseqüente para trás.

Na porta, imensos robôs acobreados, com a forma de deuses egípcios, tratavam de varrer os que entravam com seus sensores, captando estados de saúde, e dados dos tablets pessoais portados por todos naquela época, de modo que podiam, gentilmente, arrastar para fora pessoas que não estivessem em boas condições físicas e/ou adolescentes invasores. Aquilo era um antro de corpos em fúria e de luxúria incessante, lugar para pessoas em condições de enfrentar toda uma noite de insana diversão. Ramirez entrou sem problemas.

De seu tablet acessou o “site” da boate, e programou para que o som direcionado a ele ficasse em volume minimamente confortável dentro dos padrões permitidos da casa, ou seja, dois ou três pontos abaixo do ensurdecedor. A música deixou a padrão mesmo, um “retro-metal-technophobic-n’bass” vibrante e animado. Prontamente o som que o acompanhava foi se reduzindo um pouco. A sua volta via corpos histéricos, contorcendo-se, e podia sentir quase na própria pele que os “cones de som” à volta dessas pessoas deviam estar explodindo. As pessoas naqueles dias se amontoavam em grupos que queriam volumes e músicas parecidas dentro das casas de show.

Bonito, mesmo para esses dias de Vênus e Adônis em abundância, era comum que Ramirez tivesse que se desvencilhar de cantadas constantes, algumas discretas e agradáveis, outras ousadas mas não agressivas, como a da jovem marroquina que gritou logo atrás de Ramirez um assustado “socorro!”, e quando o homem se virou para ajudar a moça em pânico, encontrou um lindíssimo sorriso branco e brilhante contrastando com a pele dela, muito morena, que lhe disse subitamente um “me ajude, estou apaixonada por você” e lhe roubou um beijo. Ele não pode ajudar a moça com outros beijos, por que, além de já estar apaixonado, tinha dever a cumprir. Havia porém algumas cantadas pelas quais Guilherme evitava passar, e, depois de ser pego de surpresa pela moça, dardejava olhares furiosos para algumas garotas punks e para os óbvios homens-biológicos (pessoas com genética masculina) gays que o encaravam cheios de desejo. Continuou abrindo caminho na multidão até achar seu objetivo, uma mesa (próxima a um palco onde rapazes musculosos se exibiam) iluminada por estrelas incandescentes que flutuavam no ar e emprestavam um tom místico a mulher bonita que, envolta nas sedas e jóias típicas, divertia um grupo de homens e mulheres sentados à mesa, à volta da qual um “cone sonoro” particular inibia os outros sons, e permitia tocar apenas música mais condizente com os movimentos da dançarina.

Os ocupantes da mesa olhavam para cima, embevecidos com a dança sinuosa e provocante da mulher. O próprio Ramirez perdeu uns momentos olhando a parceira Sara, que agora era uma policial disfarçada, dançando sobre a mesa. Ele não tinha nenhum desejo de ir além da franca amizade com Sara, mas se questionava, toda vez que a via assim, tão sexy, como essa mulher tão feminina pode ter sido um homem-biológico há apenas alguns anos. Sentindo-se “quadrado” e assombrado com a tecnologia genética moderna, aproximou-se.

Ele próprio disfarçado, Ramirez ostentava o cabelo liso e negro escovado para trás, um fino bigode, e tatuagens vetoriais animadas de dragões sobre o largo peito que se engalfinhavam em uma luta silenciosa, visível através da camisa de linho aberta até o meio do abdome. Sobre os ombros largos, um blazer também aberto. Parecia com o que deveria parecer, um contrabandista de armas com um certo mau gosto.

Ao chegar a poucos passos da mesa, percebeu que uma das mulheres, uma oriental ruiva exuberante em beleza e formas generosas, apontava uma arma de agulhas (explodem você por dentro) para Sara, que olhou para Ramirez através dos véus que lhe cobriam o rosto, e com seus olhos felinos e verdes, tentou expressar a urgência de que ele fosse embora. Ele nem titubeou, e foi dizendo:

_ Arrá, boa , boa, cavalheiros... _ num tom debochado, para os homens que se sobressaltaram no meio segundo que levaram para o reconhecer, e, fazendo uma mesura para as mulheres, em especial para a oriental, que o comia com os olhos, completou _ Hum, que noite boa, não senhoras? Desculpe o atraso, mas tive que mostrar a uma jovem atraente até onde o corpo dela podia ir, no quesito me dar prazer, entendem?

_ Você é um mostro chauvinista, senhor Ochoa. _ riu-se a oriental.

_ Eu posso ser, Kay, eu posso ser... _ e, agindo totalmente contra seu modo normal, flexionou os bíceps, mostrando a musculatura desenhada de peito, ombros e braços. _ Que tal, solzinho nascente? Posso ou não posso abusar das fêmeas de nossa espécie?

_ Oh, bom, muito bom. Posso provar? _ perguntou ela, estendendo a mão ávida por tocar nele, que se abaixou um pouco, tencionando ainda mais o braço forte, e aproveitando para observar a arma na outra mão de Kay. Ela tocou o músculo saliente e retesado dele, e mordeu sensualmente o lábio inferior, dizendo: _ tire essa camisa e me deixe tocar essa pele deliciosamente morena...

Ele sorriu, e frisou os faiscantes olhos azuis, fitando o olhar negro da bela Kay. Facilmente forjando intenso desejo por aquela bela mulher, foi descendo, fitando a boca pequenina, carnuda e desenhada dela, os seios convidativos, o ventre, descendo mais e parando sobre a arma. Percebendo, Kay sorriu, e perguntou:

_ Para tirar a blusa vai ter que tirar o coldre, e está inseguro comigo usando esta arma?

_ Para ser sincero com você _ e fez uma expressão extremamente cínica _ e olha que faço isso raras vezes. Digo, ser sincero com os outros, especialmente com mulheres. Eu não gosto de me imaginar de peito nu enquanto você acaricia o gatilho desta coisa. Que tal me acariciar e deixar isso aí sobre a mesa. Por que a arma?

_ Estou desconfiada de que nossa amiga, senhorita Dellamar, é uma federal.

_ Esta puta? _ e, mesmo antes de ele terminar a última sílaba detratora, Sara arregalou e encolheu o olhar verde, em espanto e raiva velada, e após dar a parceira uma breve e debochada olhadela, ele continuou: _ Não, não é não.

_ E como você sabe que não, meu traficante moreno?

_ Putas da polícia fodem muito bem ou muito mal. Se elas são vagabundas que gostam de nos extorquir dinheiro, trepam muito bem, se são honestas, trepam mal. Eu comi essa safada, e ela me rendeu uma trepada mediana. Simples, ela realmente é quem diz ser, uma representante do crime organizado europeu.

_ Jura, Hector? Que filosofia interessante... Quer dizer que você... Comeu... A nossa Safira Dellamar, e vive fazendo jogo duro comigo? Está tentando proteger a sua vadia?

_ Não estou tentando proteger ninguém, só disse que você estava se aborrecendo a toa. E não fui logo comendo você pelo simples fato de que não acho que você seja uma...

O movimento seguinte de Kay interrompeu Ramirez: ela ouviu atentamente, e, de súbito, apontou a arma para o rosto de Guilherme. Este emudeceu, e começou a calcular se teria tempo de saltar fora da mira da oriental e se conseguiria pegar Sara e rolar com ela. Sara, por sua vez, retesou visivelmente cada músculo do corpo, como pantera preparando salto. Os outros sentados à mesa sorriram. As pessoas à volta da mesa, parecendo acostumadas àquelas cenas, apenas começaram a se distanciar, sem pânico. Kay prosseguiu dizendo:

_ Seu palhaço grande, moreno e gostoso filho de uma puta espanhola! Acha que entende tudo de mulher, não é? Acha que pode fazer o que quiser, basta botar o olho em uma e já sabe como fazer ela gemer... Pois eu quero ver se eu estourar um pouco dessa sua carinha linda se você vai ter com o que conquistar uma mulher. Será que meu gato Hector consegue ser interessante sem ser bonito, ou será que ele é apenas um brutamontes oco? Tire o coldre e coloque a arma na mesa! Agora!

Sem desviar os olhos dos dela, Ramirez não conseguiu se impedir de expressar toda a sua contrariedade diante do comentário. Enquanto obedecia, e colocava sua arma sobre a mesa, seus olhos se tornaram frestas azuis, suas sobrancelhas apontaram para cima num ângulo ameaçador, seus lábios se contraíram, mãos crispadas. Tensa mas cuidadosamente, Ramirez falou:

_ Estamos aqui para tratar de negócios...

_ Eu sou a representante da Virgem, sua máquina de trepar de merda! Eu dou as cartas, eu inicio as reuniões de negócios, e eu quero me divertir agora, Hector, algo contra? Não? Bom... Quero saber se você é tão bom assim, vai para o palco! Anda! Dellamar, leva o Hector até o palco, e põe uma daquelas tangas nele, e venda o cara com um desses teus véus, um que não o deixe enxergar nada.

Kay se voltou para seus guarda-costas, e, dirigindo-se ao maior e mais bruto, um branquelo enorme (que Ramirez e Sara sabiam ser entupido de mecanismos cibernéticos), ela pediu:

_ Thenelse, vai lá atrás e me busca umas garotas e uns caras... Este filho de uma vadia moreno e sedutor aqui vai ter que descobrir no tato, lá no palco, o que eu vou colocar nas mãos dele e demonstrar competência para fazer a criatura gozar, senão Rugo aqui estripa a putinha mediana dele, a senhorita Dellamar.

O ruivo rastafari, Rugo, acompanhou Ramirez e Sara, arma em punho, até atrás do palco. Rugo era silencioso, e vivia com um sorrisinho miúdo e feio no rosto. Diziam que ele só falava muito quando estava matando alguém, Ramirez sabia que o capanga era refugo de uma Zona de Agressividade Livre, lugar onde os ricos e despreocupados vão brincar de guerra.

Atrás do palco Ramirez nem tentou mostrar constrangimento, e foi se despindo na frente de Sara, que, ajudando o outro a se despir, foi se encostando a ele, e, a pretexto de beijar o homem, ela sussurrou próxima a sua boca, quando terminou de lhe vestir a sunga:

_ Eu posso tentar desarmar Rugo, aí você corre...

_ Nem pensar, Sara, deixe Kay brincar comigo, ela adora isso, vai distrair de você, aí te quero lá fora, e se o bicho pegar, aborta a operação e me tira daqui. _ Disse Ramirez, em outro sussurro.

_ Venda ele. Agora. _ fez Rugo, gutural.

Sara, irritada, fitou Rugo, e puxou o véu do próprio rosto, usando-o como venda em Ramirez. O capanga não tirava os olhos dela, tanto que, pouco antes de subir ao palco, já sem poder ver nada mais, Guilherme murmurou para a amiga:

_ Cuidado com ele, pode querer pegar você aqui...

_ Eu me viro.

Com um murro nas costas de Ramirez, Rugo arremessou o policial no palco, que, lutando para voltar a respirar, tropeçou e caiu de joelhos. Retomando o fôlego, se ergueu, sentindo frio, e bem a tempo de ouvir os gritos frenéticos de mulheres e homens, excitados com o homem vendado e seminu que subiu ao palco. Ele se sentia a caça de uma tigresa, Kay, que parecia empenhada em brincar com o alimento antes de comer. Ele tentava se concentrar nos sons, e rezava para que Kay tivesse a condescendência de vir ela mesma, ou colocar outra mulher em seu lugar.

...

II – Amanda e Milena

_ Banco de dados biológicos?

_ É Milena, uma pessoa da agência que alguém conseguiu clonar, só que o método de clonagem foi tão avançado que clonou as memórias também, aí essa pessoa sabe demais, está aqui, e nós duas temos que...

_ Queimar arquivo, Amanda? Que droga, eu não sou assassina, e não sou nem da equipe de limpeza. Por que Orwel não mandou um deles fazer isso?

_ Sei lá! Eu também não gosto de fazer serviço de limpeza, cacete, já matei um assim, e foi uma merda!

_ Quem?

_ O que?

_ Quem você matou, Amanda?

_ Esquece!

_ Fala, quem foi?

_ Eu disse: esquece, porra!

_ Ah, droga, droga, entendi... Poxa, que porcaria de lesada que sou...

Milena, deprimida, finalmente percebeu que Amanda aludia ao médico “civil” que, ao salvar Milena da morte no Domo Lunar, acabou por saber demais sobre a agência, e que Amanda teve que ajudar a eliminar. Era uma sucessão de trabalhos sujos, os dos agentes da organização a que pertenciam. A propósito, a agência, ou Código Sete, ou ainda simplesmente C7, contratava de modo muito peculiar seu pessoal, forjando suas mortes, colocando corpos clonados no lugar deles, e os forçando a trabalhar, lidando com monstros alienígenas e humanos conspiradores, naqueles meados do século XXII.

Ambas eram agentes experientes. Ambas as mulheres eram lindíssimas, Amanda miúda mas de formas perfeitas, sua pele clara e sedosa, seu rosto perfeito em seus traços europeus (em verdade a moça era descendente de italianos), seu cabelos uma cascata de cachos negros, e seus olhos tão azuis como pode ser o mais cristalino azul. Já Milena alta, quase metro e oitenta, pele muito morena, corpo torneado e generoso, cabelos lisos e negros, olhos não menos azuis. A primeira, sedução e fúria, a segunda, encanto e doçura. No trato com meros mortais, eram armas perigosas e irresistíveis, as duas deusas. Mas seus corações, fossem quais fossem as máscaras que usassem para o mundo, eram de fato muito parecidos: humanas, fortes, mas doces até onde alguém que vive sob o fio da espada de “matar ou morrer” pode ser, estavam constrangidas com o fato de acreditarem que, muito embora elas tivessem sido instruídas a apenas encontrar o “banco de dados biológico”, quando o fizessem Orwel, a inteligência artificial que vigiava a todos no C7, ordenaria a morte de tal pessoa. Nenhuma das duas matava por prazer, mas cada qual enfrentava o fardo a sua maneira.

Amanda, a mais aguerrida, sabia muito bem o que ia ao coração da amiga quase irmã: Milena não mataria, mesmo que tivesse que morrer por isso. “Então”, pensava Amanda, com a convicção dos que não querem perder quem amam, “eu que sou a mais ‘pé no chão’ vou ter que fazer o serviço. Se Orwel mandar, Amanda Vincentti, não pense duas vezes, saque sua arma e dê um tiro certeiro no sujeito, para que ele morra rápido, sem dor, e Milena não faça uma merda!”

Pensando assim, Amanda desceu da BMW que as levou até a entrada VIP da Vale dos Reis, onde o informante que encontraram na noite anterior, um turco bonitão que tiveram que drogar e dar uns sopapos, indicou que elas encontrariam Wolfgang Bernstein, o “banco de dados biológico” que procuravam.

Estavam trajadas para noite, em lustrosas peças de couro e transparências, com elegância ferina, insinuante, sexy demais, tanto que quando a porta asa-de-gaivota do carro aerodinâmico se elevou, saíram ambas sob o olhar dardejante de muitas personalidades que circulavam por ali. Amanda podia jurar que o loiro lindo de morrer que as acompanhou enquanto entravam de mãos dadas pelo acesso especial, cujo queixo caiu, e cuja namorada o acotovelou, era um artista famoso, um cantor de rock que ela adorava. Ela ordenou que a opacidade dos óculos escuros que usava caísse para dois por cento, e deu de presente para o rapaz uma de suas olhadinhas marotas, destruidoras de namoros. Mas, meio segundo depois, já satisfeita com o resultado, Amanda riu e olhou para Milena, que, com seu rosto de menina comportada, também deixava fãs boquiabertos para trás.

“A diferença”, pensava Vincentti, “é que eu curto o prazer de deixar os caras loucos descaradamente, essa boboca na maioria das vezes nem percebe, e quando vê dá uma de sonsa”.

_ Uau, Amandinha, já tinha vindo a este lugar? _ perguntou Milena, ao passarem por uma ante-sala folheada a ouro, que reluzia sob a luz de tochas.

_ Já estive aqui, quando roubei o tablet pessoal de meu pai e viajei pela Europa atrás do meu avô, mas era nova demais, nem passei da porta. Hórus não me deixou passar, filho da...

_ Pois agora, rainhas, o próprio Rá vai recepciona-las. _ Disse o mais bonito robô que elas já haviam visto, um homem em trajes egípcios, todo feito de ouro reluzente, calvo mas com traços masculinos perfeitos.

_ Hummm, você é programado para qualquer eventualidade mesmo, Rá meu querido?

_ Amanda!

_ É só uma pergunta, Milena!

_ Deixa ela, Milena. Sim, senhorita Amanda, eu sou programado para qualquer eventualidade, especialmente ser seu, só seu e todinho seu, Amandinha...

_ Opa, calma, Rá, meu filho! Devagar com o andor, cara. Quem manda nas relações sou eu.

_ Amanda, esse é o Tip!

Amanda olhou de Milena para o rosto régio da figura de Rá, e de volta para Milena. Quando abriu a boca, o homem dourado também o fez, e ambos, Amanda e Rá perguntaram juntos:

_ Como adivinhou, Milena?

_ Eu vi, só isso.

Amanda e Rá se entreolharam, e deram de ombros. Porém, Rá não se deu por satisfeito:

_ Mas _ fez Tip, aturdido, agora usando seu próprio e conhecido timbre de voz _ como conseguiu ver através de minha pele mimética, Mileninha?

_ Eu não sei, Tip. Eu não vi nada. Eu só sei que sabia... Entendeu?

_ Nããoo... Ninguém consegue ver através da minha pele mimética!

_ Porra, ela disse que não viu, seu asino, e que merda de pele mimética é essa, Pit, você pode me explicar como é que você mudou de cara? Fez um backup do seu cérebro positrônico em outro corpo? _ perguntou Amanda, delicada como sempre.

_ Nããoo, meu cérebro não é positrônico, cacete, eu me chamo T-I-P, ponto e vírgula, caralho, exclamação, xer...

Amanda cobriu a boca de Tip com a mão. Elas tinham conhecido Tip a pouco tempo, a princípio era apenas mais um agente novo, um rapazinho simpático e destrambelhado, especialista em burlar segurança de dados, mas logo acabaram por descobrir, para surpresa do próprio Tip, que ele é um robô sofisticadíssimo. Só que sendo o agente dotado de personalidade doce e curiosa, carismática e questionadora, e de um excelente coração, as duas agentes nem cogitam em tratar Tip como algo menos que humano. Ocorre que, por implicância, falta de paciência, e por sua própria natureza, Amanda tinha quase nenhuma paciência com o ingênuo Tip. Ela foi dizendo:

_ Eu vou ter que enfiar nessa sua cabeça de bagre... P-I-T... Que não se fala palavrão assim, sem estilo e classe?! intelligentone!

_ Hum-hum-hum... _ Fez Tip.

_ O quê?!? _ Amanda fez uma careta curiosa.

_ Tira a mão da boca do Tip, Amanda. _ Disse Milena, pacientemente como era seu hábito.

_ Ah! _ fez Amanda recuando a mão _ Fala para fora agora, Pit!

Tip ficou quieto, olhando contrariado para Amanda, que, impaciente novamente, foi dizendo:

_ Ahhh! E aí, o que você ta fazendo aqui?

_ Uma pergunta de cada vez: minha pele consegue emitir um finíssimo campo holográfico, que faz com que eu possa assumir a forma humanóide que eu quiser. Foi assim que enganei seu avô em Trieste, Amanda, fazendo ele me ver com a aparência de uma garota parecida contigo. E eu vim ajudar vocês, Orwel mandou vir na frente, e dar uma olhada no lugar. Eu já sei onde o Wolfgang está, e sei a melhor maneira de vocês duas se aproximarem dele. Vai ser tremendamente arriscado, para os três, mas é a única maneira que vejo de vocês se aproximarem do Wolfgang sem chamar atenção.

_ E como...? _ Começou Milena, mas foi bruscamente cortada pela voz de Tip, que berrou, áspero, para um homem abrutalhado que vinha chegando:

_ Ei!! Ei, cavalheiro !! Senhor Thenelse, não é?!? Essa duas aqui servem?!

_ Mas que porra é ess... _ Iniciou Amanda, mas o grandalhão se movia bem rápido, e agarrou o braço de Amanda, sacudindo-a. Milena fez menção de voar sobre Thenelse, mas com um gesto também ligeiro, Tip, ou Rá, agarrou-lhe os longos cabelos negros (tentou ser delicado, sem deixar de parecer capanga de Thenelse) e a puxou, sussurrando em seu ouvido um “fique calma, esse é meu plano. Seu irmão vai ficar bem...”.

_ Meu?! Meu o quê?!? _ Fez Milena arregalando os imensos olhos azuis. Tip mexeu os lábios sem deixar escapar som, mas dizendo perceptivelmente “Seu Irmão”. E Milena nem pode esboçar outra coisa, pois Thenelse já havia lhe dado uma “gravata” e a estava puxando, junto com uma esperneante Amanda, para o salão logo à frente.

_ Milena! Milena! Eu vou pedir um CS! _ berrava Amanda, referindo-se ao Controle Sistêmico, situação em que os agentes C7 podiam ficar mais fortes, ágeis o concentrados que qualquer humano normal. Isso era conseguido graças a processos químicos e nanotecnológicos que a agência havia implantado em seus corpos.

_ Amanda! _ respondeu uma exasperada Milena Ramirez Martins _ Meu irmão está aqui!

_ O quê?!?

_ Meu irmão! Acabei de “lembrar” que ele está aqui, e pode estar em perigo! Esquece CS agora, por favor!

_ Teu irmão, meu namorado?!

_ É!

_ Eu sei que é, Milena, foi uma merda de uma pergunta retórica, catzo! Ai meu Deus, ele aqui? Puta que pariu o mundo!

...

III – Kay

Enquanto as agentes falavam, foram arrastadas pelo enorme ciborgue até próximo à mesa de Kay, que tomava um drinque enquanto passava a pistola de agulhas bem entre os seios de Sara, que por sua vez estava séria, impassível.

_ Sara! _ berrou Amanda, e, quando Sara, apavorada ao ouvir seu nome real, deu uma pequena espiada em direção a Amanda, esta se encolheu toda e escondeu o rosto enterrando a cara quase na axila de Thenelse e foi dizendo baixinho para Milena _ é a parceira de seu irmão, a parceira de seu irmão na polícia, esconde essa cara, Milenaaa!

Milena, arregalando ainda mais os olhos, escondeu o rosto com as mãos meio segundo antes de Sara olhar para ela. Para todos os fins, o irmão de Milena, um “civil”, acreditava que ela, Milena, estava morta há anos. Se ele a visse, ou desconfiasse que ela vivia, muito provavelmente Orwel ordenaria a morte do policial. Na verdade, Guilherme só namorava Amanda por que ele nem desconfiava que ela era uma agente C7. Milena começou a fingir, e logo depois estava chorando de verdade, com o rosto enfiado entre as mãos.

Bem, de fato Sara não conhecia Milena, e por mera coincidência jamais tinha visto uma imagem de Milena na casa de Ramirez, mas Amanda a policial conhecia bem demais, já havia estado com a namorada do parceiro diversas vezes, e com axila de Thenelse ou não, Sara reconheceu imediatamente a garota. E, pelo cantinho do olho Amanda percebeu que foi reconhecida, desistiu de se esconder e encarou Sara, que, claro, fingiu não conhecer a outra, muito embora seu olhar esmeralda expressasse claramente a indagação de o que Amanda estava fazendo ali. Vincentti, diante da impossibilidade de responder, ainda suspensa por Thenelse, inclinou o rosto de lado, sorriu para todos na mesa, e ironicamente foi falando:

_ Boa noite, o orangotango de vocês delicadamente me convidou para vir aqui beber e me divertir, mas o caso é que eu não quero, então alguém pode mandar ele me soltar. Porra!

Kay, sorridente, apontou a arma para Amanda, que calou a boca imediatamente. A oriental então começou:

_ Olha, branca, eu vou falar uma vez, na segunda eu enfio uma agulha dessas aqui nesse olho azul. Cala a boca, e você sai viva da Vale dos Reis. Hoje... _ e deu uma gargalhada. Virou-se para Seus capangas e ordenou _ Levem a morena grandona para o palco, e coloquem-na para dançar com o Hector!

Foi quando ambas, Milena e Amanda, repararam finalmente em Ramirez, no palco, corpo tenso, os braços retos ao lado do corpo. Estava claro que ele se esforçava para parecer descontraído sem conseguir. Como se tivesse percebido que foi mencionado, ele gritou de lá:

_ E aí, Kay, vem ou não vem por esse corpinho nas minhas mãos. Não preciso nem tirar esta tanga prá fazer você gozar, amor!

_ Ra... Ra... _ começou engasgando Amanda, quase pronunciando o nome do namorado, ao que Sara se levantou, o que atraiu a mira de várias armas para seu rosto, mas nem por isso ela deixou de fuzilar Amanda com um olhar, o que fez Vincentti perceber que não deveria mostrar o que sabia sobre o namorado, então esta última foi engatando, com cara de maluca: _ Ra... Rá-rá... Há, há, há, há, há, há, há!!

Diante da risada de Amanda um dos capangas de Kay foi levantando, com as garras em riste, pronto para agarrar os cabelos de Amanda, e dizendo:

_ Ta rindo de que, sua filha de uma p...

Mas não conseguiu completar, por que Milena, mesmo sobre o ombro de Thenelse, girou o quadril e chutou tão forte o rosto do homem que ele voou longe, caindo desmaiado no meio das pessoas que, alheias ao drama dos policiais, dançavam freneticamente. Dança que eles continuaram sobre o corpo do homem caído.

_ D-desculpe... _ fez Milena torcendo para parecer o mais inofensiva possível. Ela havia defendido Amanda como sempre fazia, por instinto.

Kay acalmou os outros homens e mulheres na mesa, que ameaçavam disparar contra Milena sem se preocupar nem com Amanda e tampouco com Thenelse. Ele próprio parecia indiferente ao fato de ser alvejado ou não. Sorrindo ainda, a oriental fez um sinal, e Thenelse soltou Amanda, que foi forçada a sentar ao lado de Kay, e carregou Milena até o palco. Ao ir, Milena ainda dirigiu um olhar assustado para Amanda.

A oriental apontou agora a arma para Amanda, e colocou a mão livre sobre a coxa de Vincentti, bem a altura da virilha, parecendo divertida com a cara de constrangimento que a agente C7 fez. Sem tirar a mão, Kay foi falando:

_ Caretinha você, branca? Bom, isso é uma pena... Eu poderia me divertir muito contigo. Mas tudo bem, ali no palco você vai poder ser uma das felizardas que vai poder dar um show para mim e para meus amigos e amigas aqui, degustando aquele morenão lá. Carne de primeira, não?

_ É sim... _ Disse Amanda, esforçando-se para esconder sua fúria _ Mas, quem sabe você não quer largar essa arma e ir para um lugar só comigo para...

_ Você me mostrar que sabe brigar tão bem quanto aquela sua amiga tesuda? Não, obrigada! Olha, o show vai começar... Vai, Ramirez, para você não ficar magoado comigo, arrumei um mulherão de verdade para você, meu gostoso!... Engraçado como, assim, um do lado do outro, eles até se parecem, não é branca?

_ Impressão sua, china!

Kay , sem parar de sorrir, desferiu um tapa violento contra o rosto de Amanda, que, diante da pistola de agulhas, forçou-se a não reagir. Um pequeno filete de sangue escorria agora do lábio ferido de Amanda.

No palco, sob um cone de som especial (que por alguma artimanha oriunda de muito suborno ocorria mesmo contra as regras da casa) os irmãos Ramirez se encontraram, e Guilherme, sem saber que estava diante de uma assustadíssima e muda Milena, tomou-a pela cintura, e foi dizendo ao ouvido dela:

_ Moça... E eu espero por tudo que é sagrado que seja uma moça... Não vou lhe fazer mal, está bem? Vamos apenas dançar um pouco...

Milena, sem saber o que fazer, levantou a mão e, depois de hesitar um pouco, deu um pequeno tapa encorajador no ombro do irmão.

_ Tudo bem. Ei você tem um cheiro muito bom... _ e ele estendeu o rosto devagar à frente, deslizando suavemente a face pelos cabelos de Milena _ Por favor, não me leve a mal, é que seu cheiro, o cheiro de seus cabelos me trás uma sensação boa, só não consigo lembrar o por quê.

Engolindo em seco, Milena olhou desesperada para a mesa, em busca de Amanda, mas ela não podia fazer nada agora, então a agente Ramirez pousou as mãos nos ombros do policial Ramirez e começou a dançar, ondulando os quadris. Quadris para onde ambas as mãos de Ramirez deslizaram. Ele estava francamente satisfeito por ter a forte impressão de que, apesar de muda, a pessoa que estava dançando com ele era uma mulher, uma jovem e bela mulher, mas mesmo assim nem pensaria em abusar dela, que talvez estivesse também sob a mira de uma arma, naquela situação terrível. Na verdade, era engraçado, mas ele não conseguia excitar-se com a garota, mesmo com aquele cheiro tão bom. Era como se o cheiro o fizesse lembrar de algo inocente... Milena sabia muito bem que seu irmão adorava brincar com seus cabelos quando eram jovens. Ele dizia que queria ter o cabelo grande e liso como o de Milena. Ele nunca deixou o cabelo crescer tanto, e quando Milena cortou o seu bem curto, ele reclamou muito.

_ Vamos, Hector, parece que está num baile de debutante. Pega a carne aí na tua frente e mostra que você é um grande amante espanhol, senão sua puta que trepa medianamente vai ganhar um monte de agulhas de presente! _ gritou Kay.

Milena se distraiu com o grito, o que foi o suficiente para que Guilherme levasse a mão ao queixo dela, a puxasse e tocasse seus lábios com os dele. Milena, pega de surpresa, pôs ambas as mãos no peito nu do irmão e o empurrou para longe. Ele não fez força para segurar a moça, e cambaleou para trás, sorridente.

_ Ei, Kay, essa garota está um pouco arredia. Que tal mandar libertar a moça e você subir aqui? _ disse o policial, ameaçando tirar a venda. Ao que Milena deu um salto para frente, agarrou as mãos do irmão, e apertou fortemente seus lábios contra os dele. Tudo, menos deixar ele a ver ali, e então ser morto por Orwel.

_ Foi só reclamar que a vadia sentiu os brios e resolveu mostrar serviço, viu branca? _ debochou Kay. Amanda não respondeu, estava compadecida da amiga, que era obrigada a fazer o possível para evitar que o irmão descobrisse que era ela quem estava ali. Kay prosseguiu: _ mas eu quero mais. Porra, isso esta parecendo desenho para criança. Encoxa ela, Hector, agora!

Ramirez agarrou sua parceira de dança e a girou, em um passo que, quando adolescentes, ele e a irmã haviam ensaiado mil vezes. Foi um ato instintivo, ele não fez conscientemente mas levou apenas meio segundo para que parasse o rosto, que já avançava em busca de um beijo, e levantasse ambas as sobrancelhas, numa interrogação silenciosa. Milena, ligeiramente curvada para trás, jazia apavorada nos braços fortes do irmão. Percebendo o momento de perigo, Amanda levantou de um salto, agarrou o braço armado de Kay, e gritou:

_ Mannaggia la! Esta garota não fara uma scopata com esse gostosão não?! Ahhh, não fode minha paciência. Deixa eu subir lá, china, que eu mostro o que é detonar um cara!

Amanda gritou tão alto, que Guilherme soltou Milena, que chegou a dar dois passos para trás, tropeçou e desmoronou no palco feito fruta madura. O policial disfarçado de Hector soltou um inaudível “Amanda?”. E fez nova tentativa de tirar a venda de seda, ao que Milena ergueu as mãos em frente ao rosto e Amanda berrou:

_ Não!! Não tira a porra da venda, seu... Seu... Ficaiola! Quero te usar assim, indefeso!

_ Humm _ fez Kay, com um sorriso malicioso _ essa eu quero ver. Se você latiu à beça e não fizer nada, vou mandar Thenelse brincar com você e deixar essa carne branca apodrecendo num beco qualquer, ouviu?

_ Ah!! _ fez Amanda, impertinente e já caminhando sensualmente em direção ao palco _ Vaffanculo! vai se foder, china! E se você atirar em alguém não rola diversão para você! Olha e aprende, amarela!

Kay frisou os olhos, com ódio insano, mas resolveu deixar a branca mostrar se era fera mesmo. Amanda subiu ao palco e fez um sinal de “se manda” para Milena, que voltou para a mesa sem tirar os olhos da amiga. Já não fazia sentido esconder o rosto de Sara, a agente só podia torcer para que ela esquecesse o rosto de uma estranha. Amanda, enquanto isso, foi agarrando Ramirez e mordendo sua boca, num beijo tão ardente que fez várias pessoas pararem de dançar para olhar. Os dois se entrelaçaram em mãos ansiosas e bocas sedentas. Ao fim, Amanda bateu com ambas as palmas nas nádegas do homem, com tanta força que fez com que ele desse um pequeno grito de dor. Kay se riu toda.

_ Sou eu mesma, Ramirez _ sussurou Amanda _ não é hora de perguntas, mas o que você está fazendo aqui apalpando garotas, heim? Heim? Filho da puta!

_ Amanda? Mais que porcaria você está fazendo aqui? Eu estou trabalhando disfarçado... Ah, meu Deus, essa gente é perigosa demais, cara!

_ Cala a boca, que sua chinesa quer ver ação. _ e saltou sobre o policial, que era muito maior que ela. Ele a segurou no alto, enquanto ela enroscava as belas coxas no na cintura dele, agarrava seus cabelos e puxava a cabeça de Ramirez para trás, lambendo e mordendo pescoço e peito do homem com sensualidade e fúria. Ramirez, que já havia agüentado quieto tempo demais, e que, de fato, tinha que fazer às vezes de canalha, continuou segurando Amanda com uma das mãos, estrategicamente colocada sobre a bela curva lombar da moça, enquanto com a outra mão desarmava as garras de Amanda, a inclinava para trás, e brincava beijando desde a orelha exposta da moça até seu colo branco e sedoso, tomando nos lábios o saboroso gosto da pele de Amanda, que já sentia a paixão do namorado se avolumando fortemente contra ela, que já enfiava garras felinas nas carnes fortes das costas e nádegas do namorado.

Ramirez lambeu cuidadosa, mas sofregamente o sorriso de Amanda, escorregando a língua pelos lábios bonitos dela, enquanto ele próprio sorria, satisfeito, esquecido, mais uma vez, de todas as dores do mundo, nos braços de sua pequenina deusa perfeita, de seu amor ardente. Amanda, não menos quente, mordiscou e tomou entre os lábios a língua do namorado, sentindo a mão dele tocar seus seios, descer por seu ventre, pressionar, desejosa, sua virilha. Ela própria já sentia entre os dedinhos bem feitos o prazer rígido e volumoso do namorado, e o simples fato de imaginar aquele amor em si a fazia se encharcar de ardências e desejos insanos.

Ele a colocou no chão e deslizou as mãos grandes pela coluna da moça, pressionando o quadril dela contra o seu próprio, que já se movimentava em um ondular sinuoso, malicioso, cheio de más intenções. Ela podia sentir o namorado reto, anguloso, forte e tenso, teso e apaixonado, pressionando a pele macia dela por sobre a roupa.

No cone de som, um centenário Ed Motta tecia uma extremamente suave e sensual canção, “sentindo o que a noite, tem pra me dar”, brincando com a letra de “Baixo Rio” e insinuando que os amantes no palco deveriam esquecer tudo, até o perigo que corriam, e se entregar aos rituais doces e insensatos da paixão. E ao que parecia, para uma boquiaberta platéia, o casal não se faria de rogado.

Amanda jazia deitada no palco, acompanhando a música com os quadris, enquanto seus braços brancos hora envolviam o pescoço de Ramirez, hora bailavam no ar, felizes, enquanto o namorado, sobre ela, e entre suas torneadas pernas, hora beijava a moça, na boca e no corpo, hora esfregava o próprio corpo no dela também ao sabor da canção.

Milena, conhecedora dos limites longínquos de Amanda, frisava os olhos e balançava a cabeça diante da inconseqüência dos dois, Amanda e o irmão, correndo tanto perigo e se “atracando” daquele jeito. Foi quando veio a percepção. Milena tinha esses lampejos perceptivos, pré-cognitivos, e ali estava um, bem forte, onde via Kay levantar a arma em direção a...

Tudo aconteceu muito rápido, Amanda percebeu que, durante a dança, Ramirez, em sua necessidade de proteger a moça, a havia levado aos poucos, tateando o caminho, para os fundos do palco, e, erguendo-a como a uma boneca, virou de costas para o público, e a colocou atrás do tablado. Kay, que começou a gritar que ele parasse assim que percebeu que ele ia para o fundo, disparou dois tiros. Uma das agulhas resvalou na coxa esquerda de Ramirez, e provocou tanto estrago, que ele desmoronou imediatamente para trás, gritando de dor, e desmaiando em seguida, devido ao choque das hemorragias na perna. O outro tiro Amanda não viu onde pegou, mas imediatamente sacou a pistola que trazia sob a roupa, e que a agência havia providenciado para que fosse imune aos sensores da Vale dos Reis, e gritou para seu bracelete, que a mantinha sob a vigilância de Orwel, mas também a mantinha em contato com todos os outros agentes:

_ Agentes, estão me ouvindo, tenho um civil ferido sobre o tablado, ele vai ficar bem se for socorrido, mas estamos acuados, por isso quero fogo cerrado contra a oriental de cabelos ruivos! Vou sair de minha cobertura atirando, então, Mi, sai da frente!

E ela saiu de trás do palco com a arma em riste, mas o que encontrou foi a pior cena possível: Os capangas de Kay haviam agarrado Tip, que havia se denunciado ao saltar, tentando ajudar Milena, que cambaleava em frente a oriental, com uma horrível mancha avermelhada crescendo nas costas de sua camisa de seda clara.

_ Olha, branca, meu objetivo era dar um tiro no safado do Hector _ fez Kay, num tom completamente sínico _ mas essa idiota aqui pulou na frente. Errei meu melhor tiro.

_ Milena? _ balbuciou Amanda. A amiga, baleada, trêmula, virou-se. Foi quando Amanda percebeu que a agulha penetrou o flanco de Milena, na altura do quadril.

_ Am-manda... D-desculpe... Eu não podia deixa-la atirar... _ e foi se ajoelhando, desmoronando, morrendo...

Amanda largou a arma que tinha nas mãos e acudiu Milena, com as lágrimas mais amargas escorrendo pelas faces claras, e dizendo:

_ Porra. Porra Milena, que merda! Que Merda! Ah, Mileninha minha, não, não, não faz isso comigo, porra...

_ Me solta, pelo amor de Deus! _ gritava Tip, mas havia muitos capangas sobre ele.

_ Ai, que dó! _ debochou mais uma vez a oriental _ Parece dramalhão de quinta categoria. Sinto muito, branca, mas acho que chegou sua hora.

Kay ergueu a arma para um disparo rápido e certeiro na nuca de Amanda, selando o destino de uma das mais intensas e competentes agentes C7.

...

IV – Fim Prematuro

Penetrando sob a base do crânio, a agulha assassina destroçaria o cérebro, explodindo o rosto imaculadamente belo de Amanda, mas ela ainda tinha um trunfo, e sussurrou pressionando um comando em sem bracelete sob os cabelos tingidos de sangue de Milena:

_ Controle Sistêmico.

Imediatamente seu corpo foi tomado de um vigor sobre-humano, e antes que a oriental pudesse disparar, Amanda, ainda segurando Milena no colo, golpeou com uma das mãos e arrancou a arma da mão de Kay, quebrando-lhe o indicador no processo. Boquiaberta, Kay não conseguiu reagir quando Vincentti, movendo-se mais rápido do que a vilã podia acompanhar, deitou a amiga no chão, levantou, chutou Thenelse, partindo a junção hidráulica de seu queixo, ergueu a mesa e golpeou Kay e a maioria dos capangas que prendiam Tip (dos dois restantes ele cuidou facilmente sozinho), arremessando-os longe.

Kay, sacudindo a cabeça, fez menção de levantar e correr, mas Amanda já estava sobre ela, arma apontada para o meio dos olhos de Kay, e falando ao bracelete:

_ Orwel, quero uma liberação para executar este alvo! _ e apontou a superfície do bracelete para o rosto da oriental. Voltou o aparelho para próximo da própria boca e continuou _ Ouviu, quero uma ordem de extermínio.

_ Não, agente. _ Disse Orwel em seu tom impessoal _ Essa é Wolfgang Bernstein, o “banco de dados biológico”. Esta sob outra forma, mas os sensores indicam alvo localizado.

_ Wolfgang... Eu nunca fui homem-biológico... _ balbuciou Kay.

_ Cala a boca! Cala a boca, porra! Mais um motivo pro extermínio, Orwel. Eu quero a liberação para matar ela, ela nos fez perder nossa melhor agente! Eu preciso matar ela, agora! Agora!! Agora!! Libere! _ Gritava Amanda, expelindo saliva de tão furiosas que eram suas palavras e emoções.

_ Não, W.B. deve voltar incólume para a agência.

_ Então nós duas vamos morrer aqui. Eu não vou obedecer esta ordem, ela morre aqui, agora, junto com Milena.

_ Agente, devo lembra-la dos outros “civis” envolvidos? A policial Sara está socorrendo o irmão de Milena, que, como você avaliou corretamente, vai ficar bem depois de uma breve operação reparadora. Ocorre que tanto Ramirez quanto Sara vão se envolver nisso em segundos. Se matar essa mulher, pode ser obrigada a matar Ramirez e Sara também. Isso sem contar que a senhora está podendo expressar seus sentimentos de fúria porque eu permito. Em Controle Sistêmico sabe muito bem que posso assumir suas funções corporais e obrigar você a agir como for do melhor interesse do C7.

_ E eu não estou morta, Amandinha... _ fez a voz doce de Milena, que estava em pé justo atrás de Amanda e pousou a mão sobre o ombro dela. E, com a mais profunda tristeza em sua voz, Milena ainda disse: _ Tip sim, pobrezinho, se foi... Me ajuda a cuidar dele, por favor. As pessoas...

Amanda, sem tirar a arma do rosto de Kay, olhou sobre o ombro. Milena estava terrivelmente pálida, mal conseguindo ficar de pé, mas viva. E Vincentti pularia sobre ela com montes de abraços e beijos de felicidade por ver a amiga ali, se não fosse a cena grotesca de Tip, agora em sua forma normal, de rapaz, caído no chão e sendo pisoteado pelas pessoas, que dançavam frenéticas, parecendo ainda mais excitadas com o sangue que viram.

_ Deixe a arma com Milena _ ordenou Orwel _ e pode cuidar do corpo do agente Tip.

Amanda deu um último olhar furioso para Kay, passou a arma para Milena, que foi dizendo:

_ Você me conhece, Amanda. Não se preocupe, se ela se mexer eu atiro. Por favor, Tip, de algum modo que não consigo entender, se sacrificou por mim... Não deixe que desrespeitem o corpo dele, por favor... _ Ela dizia, com lágrimas ardentes nos olhos cansados.

Sem dizer palavra, Amanda partiu célere sobre a multidão que sapateava, chutando e empurrando o corpo do rapaz amigo. Truculenta, a pequenina Amanda nem pediu, foi direto empurrando pessoas aos montes, chegando mesmo a atirar longe uma mulher musculosa que lhe deu um tapa no rosto. Depois de alguns momentos de briga, chegou ao corpo de Tip, machucado, escoriado e sangrando (sim, ele imitava perfeitamente um ser humano), e o abraçou. Seu rosto já começava a se desfigurar devido aos chutes que a multidão lhe dava. E mesmo sob o efeito inibidor do Controle Sistêmico, Amanda Vincentti sentia seu coração partido. Como as pessoas podiam fazer aquilo?

_ Ele era um amigo! _ gritou para as caras indiferentes, ou risonhas, as gentes em torno não eram mais exatamente humanas, seus sentimentos deslocados e amortecidos ou superexitados em direções as mais loucas, por montes de drogas, consumidas descontroladamente, bombardeando seus cérebros. amanda lembrou-se dela própria, jovem, com o tablet roubado do pai, furiosa por não poder entrar naquele  "lugar incrível". Nada havia de incrível num lugar que não deixava mais as pessoas se compadecerem de um amigo morto, de uma pessoa ferida, abatida. Amanda sabia que só tinha a irmã Milena viva por Tip ter dado sua própria vida, de algum modo, a amiga. Amanda se sentia perdida em um mundo frio, metálico, violento e maldoso _Vocês são animais!

Depois de momentos, durante os quais recebeu uma mensagem de Milena dizendo que estava saindo da Vale dos Reis com Kay, para encontrar uma escolta da agência, evitar maiores conflitos, e para evitar esbarrar com o irmão, Amanda acionou o bracelete de Tip, e ordenou a destruição do corpo sem vida do agente, que se desfez em cinzas frias. Ela esboçou um “adeus,..” com os lábios, "e... Obrigado, Tip...". Milena havia pedido que Amanda cuidasse de Ramirez, e foi o que ela foi fazer logo a seguir.

...

V – Interlúdio

Sara havia, com muito custo, feito uma tala de lenços de seda, e estancado a hemorragia na perna do amigo Ramirez, mas estava desesperada. Sabia que ele entraria em coma, e morreria em breve, se não recebesse ajuda, mas a multidão à volta de ambos havia explodido em excitação com o sangue derramado, e ela nem podia se mover, empurrando e chutando pessoas que subiam no palco para que não pisoteassem o policial caído.

_ Policial! Policial! Para trás! _ gritava, sem qualquer efeito.

A cada segundo mais e mais pessoas se aglomeravam, e Sara sabia que era questão de momentos até que ela e Ramirez se vissem tragados pela turba. Mas suas esperanças se consumiram de vez quando, do meio da multidão, brotou um furioso Rugo, o capanga de Kay que havia ficado escondido atrás do palco o tempo todo, e que tinha “sede de estripar a dançarina do ventre” (que era Sara) escrito no olhar. Sara, sem saber mais o que fazer, desarmada, atirou-se sobre o parceiro desacordado, e protegeu o rosto dele com as mãos. Se depois do primeiro golpe que iria receber de Rugo, ainda estivesse acordada, poderia ter espaço para revidar. Olhou com expressão furiosa para Rugo, que falava alguma coisa sem parar, e que Sara não conseguia ouvir direito. Rugo avançava, brutal e com mãos em riste, crispadas, havidas de vingança.

Foi quando Sara viu Amanda pular sobre Rugo com uma agilidade impossível, cruzar as pernas sobre o grande peito dele, agarrar a cabeça do capanga por trás, com unhas cravadas na carne, e torcer o pescoço dele com tanta fúria que, mesmo com o som alto que invadia tudo agora, foi audível o estalo dos ossos partindo. Rugo desmoronou como um saco de tijolos, a meio centímetro de Sara e Ramirez, e Amanda, que estava nas costas do vilão morto, tocou o chão de pé, com graça felina. Ela ainda se abaixou, olhando com uma expressão suave, o rosto respingado com o próprio sangue, do homem que amava. Acariciou o rosto dele levemente. Ergueu-se, e falou:

_ Siga-me. _ Disse secamente a Sara, agarrou Ramirez com cuidado, e foi empurrando e esmurrando pessoas, em busca da saída da Vale dos Reis.

...

VI – Epílogo

Passaram-se quatro noites desde os últimos acontecimentos. Sara, que havia acompanhado a operação do amigo, e assim que teve certeza que ele ficaria bem, voltou à Suíça. A policial, que também teve suas escoriações leves, sequer trocou uma palavra com Amanda sobre o que viu. Parecia disposta a não falar nada com ninguém, o que era um alívio para a agente Vincentti, ela havia sido muito indiscreta e passional ao derrubar Rugo bem sob a vista de sara. Mas faria de novo, e de novo para salvar Ramirez, que estava agora sentado na cama do quarto de hotel dela, enquanto Amanda passava um creme curativo nas escoriações que o policial havia ganhado nas costas. Uma música gostosa e sexy ecoava baixinha pelo ambiente do quarto (Eu Vou Estar, com Zélia Duncan e Capital Inicial), na cama os lençóis de linho jaziam desarrumados.

Amanda sorriu. Ramirez estava muito legal com ela, e evitava fazer perguntas, pois havia prometido não investigar os mistérios de Amanda, havia aceitado mais uma vez a insinuação de que ela, Amanda, estava ali por coincidência, mas ela sabia que era pedir demais que ele aceitasse insinuações para sempre, eram adultos e ambos precisavam de fatos, o caso é que forças maiores a impediam de dar a ele fatos, e ela ficava rezando para demorar o máximo possível o dia em que ele exigiria fatos. Na verdade Ramirez estava muito pensativo àquela hora, e tinha o olhar perdido atravessando a janela, fitando lá ao longe as imensas dançarinas holográficas da Vale dos Reis. Era o início de mais uma noite no Marrocos. Amanda sabia em que ele pensava, e achou melhor não adiar mais o assunto, perguntando:

_ O que foi, Ramirez? Está com saudades de Kay?

Ele fez uma careta e respondeu:

_ Pelo amor de Deus. Na verdade estava pensando na moça que dançou comigo antes de você... _ “na mosca”, pensou Amanda, que sabia que ele havia chegado perto demais de descobrir sobre a irmã. Mas ela encenou ciúmes para não dar demasiado peso ao assunto:

_ Ah, seu filho de uma... Quer dizer que a dançarina misteriosa marcou você? Foi? _ e deu uma tapinha nas costas dele, que resmungou de dor.

_ Ai, poxa, Amanda, isso dói. Deixa eu explicar: a garota, pobrezinha, espero que esteja bem, por alguma razão me fez lembrar minha irmã...

_ É mesmo? Engraçado, parece que estava um climinha meio quente demais para você lembrar de irmã. E nem devia rolar clima, eu descrevo ela para você: alta e pescoçuda feito uma girafa, uma cara de fuinha com uns olhos escuros e miúdos de ratinha, e dentuça também...

_ Deixa de ser mentirosa, que eu beijei a moça e ela era dentuça nada!

_ Ah! Ah! Ah! Beijou é? Pois eu vou te mostrar quem beija um estranho melhor aqui, vou sair pela porta e beijar o primeiro homem que encontrar! O que me diz disso, senhor brutamontes?

_ Eu já te disse que não gosto de ser chamado assim...

_ E está encrespadinho agora, Ramirez?

_ Não, boneca. Só acredito que estamos brigando por uma ninharia. Eu amo você, senhorita Vincentti, larguei toda a minha vida por você e para você. Na verdade suas atitudes misteriosas já me chutaram tantas vezes para longe de você que acredito que devia estar convencida hoje de que não pode haver outra, só você. O caso é que um detalhe muito particular no modo com que a moça dançou me fez lembrar de Milena... E a saudade apertou. Estou triste Amanda, e, se posso lhe fazer um grande elogio agora, digo que, assim, tão triste como estou, não posso imaginar um lugar no mundo onde gostaria de estar para me recuperar e para me sentir feliz novamente que não fosse seu colo, no seu abraço.

E o homem enorme foi se aconchegando nos braços de Amanda, que o tomou com se fosse um menininho perdido. Ela se emocionou sobremaneira, mas como era seu hábito, não deixou aflorar nada, e nem o deixou perceber o brilho apaixonado em seu olhar quando encostou o queixinho desenhado na cabeça dele. Debochada, foi dizendo:

_ Ramirez... Você está tão doce hoje, sabia?

_ Então deixa eu ficar mau _ disse ele envolvendo a cintura dela em um abraço, levantando Amanda e deitando a moça na cama. Com uma fome cativante no olhar, Ramirez foi se deitando sobre Amanda e dizendo: _ Eu vou te rodar agora, Amanda, mas não! Não precisa fazer bico não, sua histérica!

_ Histérica?! Me deixa sair daqui. Sai, sai de cima de mim sua montanha!

_ Eu deixaria se estivesse bonzinho, mas agora não dá. Vou te deixar tonta como quando te rodo, mas sem rodar de fato... _ e foi beijando o colo dela, os seios, o pescoço _ Eu estou um canalha hoje, e lembrei que esqueci de abusar de você naquele palco...

_ Mais?!

_ Mais! Muito mais! Uma noite inteira meu amor...

Seus lábios se encontraram em um beijo cheio de desejo, quente, carinhoso e desavergonhado. Ela se sentindo tão quente, tão desejada, tão mulher, no meio daqueles braços sedentos, imensos. O prazer que sentia quando ele deslizava a boca por seu pescoço e começava a falar em seu ouvido era tanto que ela se encolhia, moleca. Enquanto as mãos grandes dele deslizavam pelas coxas dela com delicada suavidade, mas com a pressão correta pra deixar ela vibrando de vontade de devorar o homem em si, Ramirez dizia, bem baixinho em seu ouvido:

_ Te amo.

Amanda, como raramente fazia, aproximou os lábios do ouvido dele, sorrindo feliz, mesmo quando já o recebia intenso em si, e, com uma voz miúda, retribuiu:

_ Também te amo...

 

FIM

(...)


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