Requiem, Os Últimos Dias

RPG: Código 7

Réquiem, Os Últimos Dias...

Autor: Wagner Ribeiro

25 de Abril de 2007


IMPORTANTE: Este conto pretende marcar o momento antes de os jogos de C7 voltarem a ocorrer periodicamente.


I - O Sonho de Borges

"O que torna a vida tão doce é o que ela nunca mais há de voltar.” _ Emily Dickinson.

Tão difícil dormir. Há o medo, o tempo todo, que parece entranhado no ar que se respira, de que ao acordar ele já não será ele mesmo. As memórias são indícios de que o medo não é infundado, pois desde cedo não lembra ao certo o que vieram fazer ali. Borges lembra bem que a Terra está sob terrível ataque, que as mentes de seus bilhões de habitantes estão sob o bombardeio de alguma força que destrói tudo que há de sofisticado nelas, fazedo-as regredir a um estado de selvageria. Borges desconfiava inclusive que isso fosse mais além, que os Inimigos estivessem manipulando As Diretrizes, e, por conseguinte alterando a realidade, fazendo com que, em algum ponto do passado, a humanidade tivesse sucumbido diante de algum vírus que destrói mentes, ou quem sabe jamais tivesse evoluído além dos primeiros e mais selvagens hominídeos, ele não tinha certeza, sabia apenas que afora um punhado de gente que travava uma luta encarniçada com forças alienígenas para lá da órbita da Lua, o restante da humanidade já era. Portanto o que os agentes de C7 faziam ali? O que ele, Milena, e um punhado de outros vieram fazer ali? A memória de curto prazo parecia ser a primeira a se dissolver nas marés de alteração da realidade...

_ Você precisa dormir um pouco, Guilherme. _ sussurrou Milena, deitada ao seu lado na escuridão da velha mansão, na verdade uma antiga Casa de Burlesco, ou, nos termos de Borges, um puteiro, que pertenceu a um velho que era parente de (e ele ria interiormente, pois achava a coisa óbvia) Amanda Vincentti. Estavam ali, escondidos e entocados na única construção ainda de pé, desde que vieram da Lua para Terra e encontraram as cidades todas em ruínas, cheias de almas selvagens e perdidas. Estavam ali, no andar superior, atrás de barricadas. Num canto, Borges podia ver a pequena brasa do cigarro de Chris Montez, cuja luz aumentava e diminuía com as lentas tragadas que ele dava. O cara, armado até os dentes, estava estrategicamente posicionado para surpreender qualquer um que tentasse chegar ali.

_ Estou com medo... _ Sussurrou Borges para Milena. Precisava desesperadamente extravasar a tensão, e só para ela, e para ninguém mais em todo o Universo, ele seria franco assim. Ela o abraçou, na escuridão, com afeto, e ele a apertou num abraço. _ Acho que quando acordar serei um deles...

_ Todos estamos pensando assim, Guilherme, todos estamos com medo... _ Disse ela, em uma voz delicada que poderia bem pertencer a uma menininha. _ Mas parece que todos os que degeneraram dormem a noite, e temos que descansar para procurar a nave amanhã...

Havia algo no tom de voz de Milena que fez Borges perguntar, ainda falando baixinho:

_ Alguém lembra o caminho?

_ ... Não... Nossas memórias...

_ Está acontecendo com a gente, Mi. _ e de repente ele aspira com ruído o ar, e diz, num tom mais alto: _ Deveríamos ir agora mesmo! Aproveitar que estão dormindo!

_ E vamos, doutorzinho. _ Respondeu Montez, do outro lado da sala, uma voz nas trevas. _ Mas hoje foi um dia longo. Lutamos muito para manter nossa posição, porra, meu pessoal tem que dormir algumas horas.

_ Essas horas podem custar nossas almas!

Montez parece dar uma longa e prazerosa tragada em seu cigarro, e então diz, debochado:

_ Como se você tivesse alma, he he he.

_ Ca-ra-lho! _ Diz Borges, com todas as sílabas _ Quem botou esse jegue no comando?

_ Não faz isso, Borges! _ Diz Milena, evitando que o amigo se levante _ Chris nos tirou da Base C7 quando estávamos na pior, achei que nós íamos morrer, mas ele chegou lá e nos salvou. Ele sabe o que faz!

_ Disse bem, garotinha. _ Falou a voz na escuridão _ Mandou bem mesmo. Hoje no meio da madrugada eu vou te levar de volta a tua nave, doutor.

_ Como? _ Desafiou Borges _ Você nem sequer veio da nave para lembrar o caminho.

_ Mas trepei com Walkíria um pouco depois de vocês chegarem aqui, e fiz ela me dizer onde estava a nave. E se tem uma coisa que não esqueço nunca, são minhas trepadas! He he he.

_ Chris... _ Fez Milena, que conhecia Montez desde pequena.

_ Você já tá crescidinha, garotinha. E você, doutor, durma um pouco. Eu acordo vocês e os outros quando a hora chegar.

_ E cadê Walkíria? _ perguntou Milena.

_ Aqui perto de mim, pregada no sono, estou de olho nesta porra deste pesadelo. _ Sussurrou Amanda, de algum lugar na sala escura.

Borges permaneceu calado. Seu orgulho era estratégico, só o assediava quando não era de seu melhor interesse se calar. Deixou que o outro "ganhasse" a discussão, e ficou acariciando a cabeça de Milena que estava deitada sobre seu peito. Os fios negros e absolutamente sedosos dos longos cabelos dela em seus dedos davam uma sensação calmante a ele. Pensou em quanto gostaria de dizer a Milena que gostava dela, mas não conseguia _ seria fraqueza admitir _ e imediatamente lembrou-se que estavam ali para resgatar a todos, especialmente a Primum Senex Marjorie. Teve uma idéia, e deixou-se levar pelo carinho que sentia por Milena Ramirez, e pôde lembrar de muitas coisas. Ao que parece, sentimentos "sofisticados" como amor pareciam aliviar os "sintomas" de degeneração. Infelizmente não pode lembrar com clareza de onde ficara o local de pouso da nave, mas ao menos sabia que ficava ao sul. Amanhã teria uma carta na manga contra Montez se fosse necessário. Sentindo-se melhor, acabou por adormecer, e, imediatamente, sonhar...

...

Borges corria por uma densa floresta. Usava uma armadura, como a de um conquistador espanhol ou algo assim, sentia-se exausto, de tal modo que arrastava pelo cabo sua espada, que raspava a ponta da lâmina no chão por onde passava. Havia... Coisas... Naquela floresta, que o observavam por entre as folhagens, mescladas com o negrume da densa mata. A todo o momento ele podia notar-lhes os vultos sombrios. Lá. Ali. Mais à frente! Ele tinha medo. E o que mais lhe punha medo era o silêncio. Havia um silêncio inumano naquela floresta. Nem sequer o farfalhar das folhas ao vento, nem um zumbir, nada. Mas Borges escutava claramente seu coração, que batia em trovões ritmados e selvagens. E apesar do medo que sentia, mal tinha forças para seguir em frente, não conseguia sequer manter sua arma elevada diante de si. Tinha a nítida impressão de que iria morrer em breve, então, súbito, desistiu. Parou. Olhos baixos, nem com raiva, nem com medo mais, apenas vagamente triste.

_ Venham... _ Sussurrou a presa para os caçadores de sombras. E ergueu os olhos, voltando-se para encarar a morte.

A floresta se dissolveu. Havia um deserto plano com alguém pequeno há muitos quilômetros dele, e um sol a pino, o resto era desolação.

_ Diabo... _ Borges largou a espada. Não tinha forças para ela. Quem quer que fosse ao longe, se desejasse o tinha nas mãos, ele não tinha forças para mais nada. Pôs a mão como uma pala sobre os olhos, o sol estava realmente forte, e tentou divisar a figura ao longe. Era... Então uma luz o cegou, luz de fulgor amarelo, intensa, mas que parecia perder o brilho, deixando em seu lugar... O sol? Aquele sol havia descido do zênite, que agora estava negro, e diminuído de tamanho até se tornar uma esfera de alguns metros de raio, de um acobreado quase negro, bem na sua frente. Abaixo dela o chão tremia, mas não um tremor comum, era como se a própria realidade ali vibrasse, lembrava aquele tremer que vemos à distância em estradas, sob forte luz solar. Mas não havia mais luz, apenas uma noite opressiva e sem estrelas.

Borges deu um passo em direção a esfera, estendeu a mão, mas antes que a pudesse tocar, algo subiu no céu. Como se uma imensa, incomensurável lua que orbitasse aquele mundo estivesse subindo a velocidade surreal céu acima! Mas não era um planeta ou satélite, era algo artificial, vasto, impossível, mas artificial, que impregnava a alma de Guilherme com um horror alienígena. Aquilo, ele sabia sem saber como sabia, podia varrê-lo da existência desde o princípio dos tempos até o fim! Aquilo, por mais inumano que parecesse, também, e ao mesmo tempo, assemelhava-se a um olho, cuja pupila negra deveria ter o tamanho de todo um sistema solar, era de uma grandeza esmagadora, tão opressiva, que Borges instintivamente procurou abrigo abaixo da esfera negro-acobreada, mas ao tocá-la, sem aviso, sua alma ficou em branco de sentimentos, vazia, nem com medo nem em paz.

_ Creio que entendo... Estou morto, já.

_ Sim, está. _ Disse uma voz feminina e suave que vinha da esfera. _ Mas cumpriu o que me prometeu, e me trouxe de volta à unidade. Obrigado.

_ Eu não...

_ Não se preocupe. Apenas fez o que havia de ser feito.

_ E agora?

_ Clara.

_ Minha filha? _ Disse ele, sentindo as emoções voltarem e o coração disparar.

_ Papai?

Borges estava em uma clareira, de volta a mata densa. Ao centro, sua filha estava sentada em uma cadeira simples, de madeira, acompanhada de mais duas meninas. E para terror de Guilherme, as três crianças estavam cercadas dos vultos sombrios, que as vezes pareciam quase humanóides, as vezes eram imensos e causavam um terror direto ao cérebro só de olhar para eles. Borges pensou em fugir, mas não podia, sua menina, havia algo nele que o impelia a salvar Clara, mesmo seu lado racional e egoísta dizendo-lhe francamente que não havia a menor chance de sucesso, ele vinha, passo ante passo, em direção à sua filha.

As monstruosas figuras, que ora pareciam feitas de sombras borradas, ora pareciam feitas de algum coro sujo, enegrecido e esfarrapado, como imensos espantalhos alienígenas, cercavam e giravam em torno das meninas, às vezes tocado-as, e quando eram tocadas, elas pareciam arfar, sem ar, olhos esbugalhados num grito que não conseguia sair da profundeza que havia sido transformada suas jovens almas.

_ Clara... Filha... _ Ele murmurava, temeroso. Instintivamente sabia que ele era um grão de areia diante daquelas criaturas, que elas o esmagariam e o varreriam da existência apenas se olhassem para ele. _ Filha...

Mas duas meninas responderam:

_ Papai... _ Disse a primeira, que estava de costas para ele, e tinha cabelos negros cacheados.

_ Eu não consigo... Olhar a imagem... Que eles querem. Me ajuda. _ Dizia, sem fôlego, sua Clara.

Então uma das sombras elevou uma garra obscura e a enterrou, qual névoa negra, na nuca de Clara, e fez a menina virar a cabeça. De onde já estava, Borges pode enfim ver o espelho. Havia um espelho no meio das meninas, enfiado no chão, e alto o bastante para ficar vários palmos acima da linha dos olhos das meninas sentadas, mas fino o suficiente para passar despercebido até agora a Borges.

_ P-Para! Para!!! _ Gritou Borges, apressando o passo, quando viu as outras duas meninas gritando, chorando e tentando soltar a garra negra que prendia Clara. Uma delas era, sem dúvida, a pequena Layla de Amanda. A outra, que o havia chamado também de pai, ele já desconfiava quem era. Ele chegou até as meninas, e viu que além delas, outros vultos translúcidos estavam "sentados" ali também. Eram formas de vida alienígenas. Borges pôde reconhecer a silhueta de um Corredor, e de um ser semelhante a uma árvore, havia também outros seres incompreensíveis. Mas não tinha tempo para aquilo, tinha que, de algum modo, livrar as meninas!

Agarrou o espelho! Pretendia bater na garra sombria com ele, mas então as meninas emudeceram, e os monstros de sombras como que deram um passo atrás e se calaram. Borges ficou ali, trêmulo, com o espelho em mãos, sendo silenciosamente observado por todos. Então, sem saber o que dizer, virou-se para a menina que o havia chamado de pai, e disse:

_ Você se chama Amanda também, não?

_ Não, papai, este é o nome da vovó. Eu me chamo Milena.

A confusão de Borges não demorou muito. As criaturas de sombras "falaram". Suas "vozes" eram feitas de abismos e tempestades, de maremotos esquecidos no tempo, e de alguma vibração que, mesmo "murmurada" como estava sendo, fazia rachar a psique e estilhaçar o espírito. Quase destruindo seus ouvintes, eles disseram apenas:

_ OLHE NO ESPELHO E NOS MOSTRE QUEM SOMOS.

Não chegava a ser uma ordem, mas era absolutamente impossível para qualquer ser vivo resistir a frase. Borges virou o espelho bem de frente para si, e olho para dentro dele. Por um momento viu a si mesmo, depois percebeu que de cada poro seu escorria um sangue escuro, venoso. Apesar do medo, Guilherme, gritando, não conseguia largar o espelho. Viu a si mesmo envelhecer e sangrar até virar algo esquelético, e se desfazer em pó, então, atrás de si veio a imagem doce da Layla, a mulher, mais velha, como ele lembrava dela, tão maravilhosa e doce, com os olhinhos bonitos semicerrados, sentindo prazer enquanto ele a penetrava lentamente. Então a imagem de Layla mudou, ainda estava em seus braços, mas não estavam mais na cama e ela estava muito ferida, morta, banhada em sangue, parte do rosto desfigurado. Então Layla também secou até virar pó! Passaram também, da beleza e o frescor da juventude, até a morte e a putrefação, Milena, Amanda, Julia, e gerações de meninos e meninas, seus filhos, netos, bisnetos... Então uma escuridão surgiu, e o engolfou, mergulhando-o numa cela escura, onde ele se debatia contra as paredes negras para sair! O tempo se arrastou, eterno, ele ficou olhando aquele espelho por uma infinidade de anos, então, saindo das trevas, viu a si mesmo, diante de uma mulher toda vestida de branco, num colante branco, a mulher parecia com Milena. Imagens de luta. Fogo. Naves espaciais em chamas. Planetas alienígenas. Rios imensos de sangue. Montanhas de robôs humanóides feitos em pedaços. Uma sucessão de imagens tão veloz que Borges estava tomado de vertigem! Um homem ruivo ferido. Um homem vestido como um antigo imperador, coberto de adornos e jóias sobre o corpo musculoso, o homem parecia Alex Rhea, mas tinha séculos impregnados nos olhos terríveis e assassinos. Alguém descendo um corredor feito de ossos humanos. Um sol explodindo. Um planeta sendo engolido por um túnel diapositivo. Chamas. A morte se esgueirando atrás dele. O ser humano mais assustador que jamais viu, vibrando entre milhares de dimensões e decretando existência ou jamais-existência para seus súditos segundo a sua vontade. Este homem horrendo era outro no princípio, então, por trás dele, finalmente Borges viu novamente a si mesmo, enfiando uma longa faca negra nas costas do homem-monstro e rasgando e serrando as costas dele, dando várias facadas em seu crânio e enfiando as mãos ali dentro como que para arrancar algo. Agora ele era um Deus do cadafalso, o Senhor da Humanidade. Então Borges viu a galáxia! A Grande Galáxia onde os humanos nasceram, apagando-se, milhões de estrelas escurecendo, tornando-se buracos negros, e então viu seu próprio legado: a morte do Universo... De todos os Universos! Era não uma escuridão que decretava a morte dos Universos, mas sua Jamais-existência! Algo infinitamente mais apavorante do que a mais horrenda das mortes!!! Sentiu o espelho partir em suas mãos, sentiu seu coração parar, sentiu a treva de não ter jamais existido entrar-lhe como lava negra goela adentro, e afogá-lo na mais terrível e apavorante agonia!

...

II - Amanda e o Segredo de Layla

"Não há tempo para nós. Não há lugar para nós. O que é isso que constrói os nossos sonhos, e depois vai para longe de nós? Quem quer viver para sempre?" _ Who Wants To Live Forever _ Queen.

Enquanto Borges ainda estava no meio de seu sonho, Amanda teve vontade de chamar por Milena. Ela estava andando tão agarrada com Borges que a jovem italiana, que considerava a outra a irmã que jamais teve, roía-se de uma saudável dose de ciúmes. Tinha vontade de dar um cutucão em Milena e dizer "vai parar de fungar no cangote do babaca do Borges e dar alguma atenção a tua kaikaina1 não, porra?", mas de repente sentiu-se cansada até para esculhambar o desafeto do Borges ou encarnar em Milena. De repente sentiu uma saudade tremenda do abraço de seu marido e das duas versões de sua filha Layla, a bebê e a moça. Estranho. Amanda tinha envelhecido. Vincentti olhou para a silhueta de Walkíria nas sombras, deitada a meio metro de si, e de repente sentiu uma estranha mistura de cansaço e satisfação, pois havia passado por tanta coisa dolorosa que a forçara a amadurecer, mas ao mesmo tempo se viu tomada por uma saudade intensa e melancólica do mundo muito mais simples do jeito que ele era quando tudo começou, há anos, no instante em que uma moça mal saída da adolescência tentava ganhar a vida como técnica de manutenção em uma equipe de arqueologia, e foi tragada para esse sem fim de aventuras da Agência... "Sem fim é uma liberdade poética", pensava ela, "afinal, catso, estamos aqui testemunhando o fim de tudo! Amanhã cedo eu posso ter virado um monstro sem alma também! Queria ver Ramirez e as meninas só mais uma vez... Eu... Eu vou ver eles sim, vou...". Mas apesar de tentar reagir, a pesada saudade de quando ela era apenas uma menina a oprimia, então se levantou e foi andando em seus passos treinados de agente, passos silenciosamente felinos, até a janela. Mas uma mão firme, saída das sombras, a segurou pelo pulso. Ela armou um poderoso soco e pôs seu rosto e um centímetro do rosto de Montez, dizendo, num sussurro cheio de ira:

_ Me larga, Christian.

_ Estou apenas tentando salvar essa tua linda carinha de tomar um tiro nas fuças. Janela não, mulher! _ Respondeu o outro, num tom autoritário, mas também num sussurro.

_ Preciso de ar. Os Insanos dormem, e a esta altura nem sabem mais usar uma arma.

_ Nunca subestime o inimigo, italiana! O que houve? Pintou o remorso de ter deixado teu velho avôzinho ir ser estraçalhado lá fora sem nem tentar impedir?

Amanda ficou parada, gelada. Não havia pensado naquilo até agora. Ela havia deixado o velho ir mesmo, sem esboçar nenhuma reação. Ele foi para morrer, e ela não fez nada... Apertou firme os olhos. Ficar velha fazia ela ficar emotiva demais. Sentiu lágrimas quentes brotarem em seus olhos, mas as reprimiu o máximo que pôde.

_ Na boa... _ Fez Montez num tom que ele raramente usava. _ Janela não. Se quer esticar as pernas, desce as escadas e vai até a lareira de lá que ta sem uso, tem uma corrente de ar frio que desce por ali.

Amanda não respondeu, mas desceu as escadas, enxugando os olhos. "Mas que merda", pensava ela, "mas que merda horrível de vida!". Quando estava para descer o último vão da escada, parou. Montez ao que parece tinha se equivocado, ou o pessoal dele _ se é que restava algum _ tinha voltado a usar a lareira de baixo. Ela estava acesa, num fogo baixinho, mas acolhedor. Vincentti hesitou um pouco, e então desceu, pé ante pé. Não havia absolutamente ninguém na sala, a não ser um único vulto, coberto por uma manta toda trabalhada que ela reconheceu imediatamente. Amanda perguntou, ainda hesitante:

_ Vovô?

Ao que "ouviu" em sua mente:

"Não, Amanda. Nem sequer a lareira está acesa."

_ Stone... _ Sussurrou ela, entre desanimada por não ser quem ela imaginou, e aliviada com a possível ajuda.

"Nos encontramos de novo. Quisera fosse em outras circunstâncias."

"O que houve?!" _ Pensou Amanda, aflita _ "Algo com minha família?"

"De certa forma, sim..."

"Fala, porra!!"

"Você sabe que gosto muito de vocês."

"Desculpe, Stone, mas em nossa profissão você tem que entender que preciso perguntar: porque?"

"Não vem ao caso agora, talvez um dia. Mas..." _ e ele dá uma charmosa risada na mente de Amanda _ "Não tem nada haver com seu lendário poder de sedução, agente Vincentti, nem tão pouco estou em algum conluio com minha ex, que vocês chamam Walkíria."

"Então o que tá acontecendo com minha família, anda, diz logo!"

"Na verdade é mais especificamente em relação a seu marido, Ramirez, irmão de Milena." _ A voz dele agora está sombria e triste.

"Fala, por favor!" _ suplica Amanda, sentindo um grande aperto no peito.

"Me é muito custoso fazer esta projeção até você, os Inimigos são fortes demais, mas preciso te avisar: sua filha, a que você convenciona chamar de 'mais velha' ou 'Maya', ela vai matar o pai, e eu te peço, agente Vincentti, pelo bem da própria Layla, o seu, e o de todos nós, não salve seu marido!"

Foi exatamente quando um uivo de terror veio do alto das escadas e quebrou o elo telepático, deixando Amanda completamente aturdida no meio da sala do andar térreo da velha mansão, que estava escura e gelada.

...

Amanda subiu as escadas rapidamente, mas naquele estado de torpor que sentimos logo após um grande choque. Parou na entrada do quarto, ao lado da porta, e num relance ela viu as sombras se mexendo, convulsionadas. Sabia que alguém _ acreditava que Borges _ havia gritado. Sem se deixar à mostra, pois poderiam estar sob ataque, ela gritou:

_ Montez!

_ Está tudo bem! _ Foi a resposta dele. _ O doutorzinho teve um pesadelo.

_ Nâo foi só isso, Chris! Acende uma luz! _ Disse Milena, com autoridade incomum.

Lázaro surgiu no meio da sala, um braço erguido. De seu bracele-tablet uma luz de intensidade moderada iluminava tudo. Mas assim que ele foi atender Borges, que tremia quase em convulsão nos braços de Milena, a luz que seu bracelete projetava começou a ser interrompida pelos movimentos de seu braço, e a projetar sombras fantásticas e tenebrosas para todo lado. Amanda prontamente sussurrou para seu próprio bracelete:

_ Luz, intensidade média. _ Ela ergueu o braço, iluminando melhor a sala.

E logo a seguir outros fizeram o mesmo. Ao que Montez gritou:

_ Apaguem essas luzes! Amanda, fica só vc e Lázaro com as luzes acesas! Isso aqui não é uma boate não, cacete! Ei, médico, o que o pregão tem? Se ele tá pirando, desafasta que acabo com o sofrimento do cachorro num tiro só.

_ Não! _ Gritou Milena se colocando em frente a Borges que ainda tremia.

_ Ele está bem. _ Disse Lázaro, pondo a mão na fronte, parecendo sentir dores de cabeça. _ O bracelete dele indica um padrão de ondas cerebrais normal, mas a coisa de uns momentos ele esteve exposto e um estresse imenso, quase teve um AVC 2.

_ Tá ficando troncho, desafasta! _ Condenou Montez, engatilhando sua escopeta.

_ Não, Christian! Isso não é hora de brincar!!

_ Milena está certa, Montez. _ Apoiou Johnson, que envolvia seu filho recém-nascido nos braços. Marjorie, sua mulher, ao seu lado, brincava com a criança que havia despertado com o grito de Borges e ameaçava chorar.

Montez, num peteleco, joga o cigarro pela janela, e já está sacando outro do maço, enquanto diz:

_ Tá certo. E isso aí pode ter sido algum ataque dos inimigos, então?

_ Não. _ responde Lázaro, sua testa banhada de suor. _ Vou induzir Borges a dormir um sono sem sonhos.

_ Só uma hora, doutor. Vamos sair em duas, e quero esse palerma de pé antes disso. _ Disse Chris Montes, entre os dentes e com o cigarro na boca.

_ Ok. _ Foi a resposta sucinta.

_ Você está bem, Lázaro? _ Pergunta Milena, baixinho, apenas para o médico ouvir.

_ Sim. Mas... Descobri há algum tempo que tenho dons. Dons parecidos com o de Ramon. E creio que algo está acontecendo com a realidade que está afetando gente como nós. Não sei como a senhora Vincentti ainda não sentiu nada. Amanda é como nós.

Milena, que havia pousado a cabeça do agora inconsciente Borges sobre uma almofada com todo o cuidado, olhou para Amanda. Ela tinha se deixado cair num canto. Mantinha o braço erguido, para iluminar a sala, mas a impetuosa italiana estava visivelmente abalada, cabisbaixa, seus cabelos negros, bonitos e cacheados, caindo-lhe pela fronte, cobrindo-lhe o rosto delicado. Amanda emanava desalento. Imediatamente Milena Ramirez foi até ela, tocou com a leveza de uma pluma a cabeça da amiga, puxando seus cachos de sua fronte, e murmurou:

_ O que há, irmãzinha do meu coração? Nós vamos conseguir sair daqui, te prometo.

_ Não... Não é bem isso... _ Ela ergue os olhos por um instante, e encara Milena com um olhar cansado, continuando: _ Quando desci, entrei em contato telepático com Stone.

_ Ora! E está tudo bem lá em cima na Lua? As meninas e Gui estão bem? _ Pergunta Milena, segurando as mãos de Amanda, e sem conseguir disfarçar um tom de aflição na voz.

_ As coisas não estão bem não... Stone sempre, de algum modo, cuidou de mim e de minha família, Mi. Não tenho motivos para duvidar dele, e eu sei, sinto, que era ele mesmo. Acho que ele me revelou o segredo que deixava Maya sempre triste. Lembra que conversamos sobre isso?

_ Sim, sim. Lembro que você mencionou sua teoria de que ela sabia de algo ruim que vai acontecer. É coisa muito grave assim?

_ Ela vai propositalmente matar o pai, Milena! _ Desabafou Amanda, sem rodeios. _ Ramirez vai morrer pelas mãos de Maya.

Milena ficou um momento sem fala. Sentiu um frio percorrer-lhe a espinha, mas algo no olhar de Amanda a fez ver que não poderia abandonar sua Kaikaina agora, pois ela precisava de suporte, apoio, para não desabar. Milena respirou fundou, empertigou-se um pouco, como quem tem certeza do que vai dizer, e falou:

_ Stone está errado, Amanda. Eu conheço Maya, convivi com ela, é treinada para combate, mas jamais faria mal a qualquer pessoa inocente, ainda mais o próprio pai. Maya preferiria...

_ Morrer... _ Completa Amanda _ O que não é uma situação nada melhor, Mi. Preciso achar aquela merda de nave, custe o que custar, e salvar os dois!

Como Amanda começasse a chorar baixinho, Milena a tomou nos braços e disse:

_ Shhhhh, amore. Nós vamos salvar os dois. Juntas, vamos fazer isso. Eu te prometo! _ A agente Milena teve que usar muito de sua força de vontade para transparecer confiança, no fundo desejava apenas desatar a chorar também. Mas não agora, quando precisavam dela, não agora. Caso acontecesse algo com Maya ou Ramirez, Milena precisava estar presente, pois ainda tinha o truque que Tip, o jovem andróide, lhe ensinou: poderia trocar sua própria vida pela de outra pessoa.

...

III - Dário, john, e a Criança Não-Dimensional

"Os homens devem ter corrompido um pouco a natureza, pois não nasceram lobos e acabaram se tornando lobos." _ Voltaire.

Duas pessoas observavam tudo caladas, uma era o agente Dário DiFalco, a outra era Johnson Mitchel.

Dário DiFalco pensava em sua namorada, a agente e médica-chefe da Agência, doutora Clarice, que havia ficado na Lua, administrando os sistemas médicos, que atendiam as equipes de agentes e fuzics que estavam tentando barrar a investida dos Inimigos, que pareciam vir do planetóide Shiva. Dário esperava que ela estivesse bem, rezava por ela. O agente, ex-membro das forças especiais de fuzilaria da Terra, estava sentado ao lado do corrimão da escada e mantinha um fuzil no colo e pistolas no cinto, além de um pequeno binóculo de visão norturna em uma das mãos. Dário viu Amanda descer para o térreo, e a acompanhou com o binóculo, que ele já ía baixar quando a viu aparentemente falando sozinha no escuro. Ele estava para se levantar e ir ver se a italiana estava bem, quando Borges começou e convulsionar e soltou um grito terrível! Amanda subiu de volta e DiFalco viu a balbúrdia se formar, e Montez ameaçar Borges. No fundo o fuzileiro achou que não seria grande perda se Guilherme Borges morresse ali, mas em nome de alguma organização e para não perder um braço útil, DiFalco já ía levantar para evitar que matassem Borges sem saber com certeza se ele tinha virado um dos outros, quando Johnson, que estava também muito silencioso, finalmente disse, apoiando a agente Ramirez na defesa de Borges:

_ Milena está certa, Montez.

Montez capitulou, e o médico Lázaro cuidou de Borges, que voltou a dormir. Milena, sempre linda na opinião de Dário, mesmo quando estava com tanto medo, foi ter com Amanda. Ele decidiu descer sorrateiramente as escadas, para ver com quem ou com o quê Amanda poderia estar falando. Acreditava que a esporrenta da italiana não estava conversando com ninguém, era apenas A Loucura que já estava pegando nela, mas pelo sim e pelo não, desceu. A escada rangia baixinho, e ele chegou lentamente na grande sala do andar térreo. Olhou em volta, e tentou imaginar aquele lugar antes da Terra ser destruída: prostitutas lindas por todo lado, seminuas, bebida, festa, risadas e algazarras. Ele amava de verdade sua Clarice, mas seria um mentiroso se dissesse que o lugar que imaginou não lhe parecia um paraíso. Ele sorria quando chegou perto da lareira escura, de onde soprava um ar lento e frio, mas seu sorriso congelou na face quando percebeu, com a réstia de sua visão periférica, que havia alguma coisa se mexendo no canto do salão. O coração do soldado acelerou. Virou o rosto lentamente, e encarou a "coisa": a silhueta pequena de alguma coisa viva, que se contorcia na escuridão. Um animal? Não, não, era uma criança... Muito pequena... Uns cinco anos. Dário se aproximou, evitando o uso do binóculo para não perder visão periférica, e sussurrando:

_ Calma, não tenha medo. _ Enquanto percebia que o pequeno (era um menino) não estava nu, vestia uma roupa que parecia aos poucos ir tomando substância. Na verdade toda a criaturinha parecia ir tomando substância naquele canto tomado de sombras onde ela estava, conforme DiFalco se aproximava dela. _ Nâo vou lhe fazer mal, garoto. Você estava escondido aqui na casa?

A boca da criança... Se mexia, mas Dário não conseguia ouvir. Aproximou-se um pouco mais. Ele era um homem corajoso, mas não tolo. Já tinha visto muita coisa em seus anos na Agência para não ficar desconfiado até com a própria sombra, por isso não deixava de levar em conta que a criança pudesse ser algum tipo de armadilha. Enquanto se chegava à ela, observa tudo à volta, e até o chão perto dela. Quando estava a meio metro do menino foi que começou a ouvir sua voz, miudinha, como se ele estivesse falando de muito longe. Deu mais dois passos e conseguiu discernir:

_ Pai... Criança... Eu... Salvar... Não devo... Morrer... Salve o Bispo!

_ O quê? _ Fez Dário, pois não conseguia entender.

_ Mitchel... Mitchel... Marjorie... Agora... FUJAM!

A ordem tinha sido tão imperativa, que DiFalco recuou um passo. E por um segundo, a pequena criança pareceu a Dário um homem adulto, cabelos cor de brasa, olhos de um verde perfurante, uma expressão aquilina, e o soldado entendeu, sem saber como, que algo muito ruim estava para acontecer, que todos estavam em perigo, mas que principalmente John, sua mulher, e seu filho tinham que sair dali agora. Enquanto essas certezas se implantavam na mente de DiFalco, o vulto da criança-homem se desvanecia, mas antes de desaparecer na penumbra, apontou repetidas vezes para baixo. Dário, num movimento tão ágil quanto silencioso, caiu no chão como se fosse fazer flexões, mas, descendo o corpo, pôs-se a ouvir. Sim, ele ouvia, havia gente embaixo do assoalho de madeira, ou alguma coisa tão ou mais cruel que gente. Levantou-se num pulo, e gritou:

_ Esquadrão Bravo!

...

_ Milena está certa, Montez. _ Disse Johnson Mitchel, sério, com seu menino que acabara de nascer há menos de dois dias nos braços e a sua mulher ao lado. John estava tentando evitar que Montez fizesse mal a Borges. Não que ver Borges morrer fosse partir seu coração, mas por conta de não ser a hora deles se desunirem. John precisava levar sua mulher e seu filho recém-nascido de volta à Lua, e sabia que não conseguiria fazer aquilo sem a ajuda dos outros. Não era hora de brigas, e ficou satisfeito quando Montez voltou atrás, e se acalmou quando Chris começou a conversar de forma mais amena com o doutor Lázaro, que cuidava de Borges.

John viu que Marjorie brincava com a mãozinha de seu filho, então sussurrou bem baixinho no ouvido da esposa: _ Precisamos pensar num nome.

Ao que ela sorriu, fazendo que sim, e disse também baixinho:

_ Sabe, é horrível uma mãe dizer isso, mas ainda não pensei sobre o assunto...

_ Para a mulher que precisa escolher os caminhos de toda a Humanidade, é perdoável esse esquecimento. _ Murmurou John, sorrindo brandamente.

_ Para mim ele é mais que um nome, é o melhor sentimento de minha vida... _ Disse Meg, como seu marido preferia chamá-la. Ela sorria, linda, para John, e completava: _ Obrigada, meu amor, por tudo, inclusive por ele.

Ele a abraçou, e ficaram assim, os três juntos. Johnson percebeu e acompanhou com o olhar quando Milena se chegou à Amanda. Gostava daquela italiana de uma figa como se fosse uma irmã, justo daquela que nós batemos, mas ninguém mais encosta as mãos. E amava Milena... Sempre que pensava sobre isso, sentia-se remetido ao que Milena significou para ele no princípio, pois houve um momento que foi apaixonado por ela, embora para qualquer pessoa morreria antes de admitir isso. Agora existia Marjorie, e sentia por esta ruiva algo além de paixão, algo que o completava de uma maneira que ele, em sua longa jornada de mulherengo irresponsável, jamais sonhou ser possível. Mas, bem, quem não tinha seus pecadilhos? Olhar para Milena era sempre prazeroso. "Ela é a melhor de nós", pensou ele,"... E continua perfeitamente linda". Súbito, porém, a atenção de John foi atraída por um quase inaudível ranger da escada, um pouco próxima de si, que levava ao andar térreo. Aguçou os olhos treinados, e percebeu que alguém descia, o que foi menos preocupante. Como Meg houvesse voltado a cochilar junto com seu filho, ele moveu o braço em que estava seu bracelete-tablet, e, digitando alguns breves comando, conseguiu identificar Dário DiFalco descendo as escadas. Como John soubesse que alguns Fuzics, que respondiam diretamente a Dário, estivessem de guarda por toda a mansão, achou que seu colega estivesse indo falar com alguns deles, e se acalmou. Acariciou por alguns momentos os cabelos de sua mulher, e beijou com delicadeza a fronte do bebê.

Foi quando John ouviu o grito de Dário lá embaixo:

_ Esquadrão Bravo!

...

Enquanto os Fuzics correm em direção ao seu "chefe" Dário DiFalco, o chão embaixo deste explode, lançando pedaços do assoalho de madeira antiga para todo lado, e do buraco remanescente, brotavam figuras humanas distorcidas, os Insanos! DiFalco não entendeu bem o que aconteceu, aqueles arremedos meio "pré-históricos" de gente de fato pareciam cavar e usar túneis, mas não pareciam capazes de manipular armas ou bombas, como conseguiram explodir o piso? Não era hora de fazer perguntas, mas de atirar, e Dário sacou duas pistolas e começou a dar tiros nos montes de gentes que brotavam em enxurrada do buraco recém-aberto no chão. Por um momento rápido ele conseguiu deter o avanço dos Insanos, mas eram tantos e tão selvagens que ele seria engolido pela turba em um segundo, não fosse seus Fuzics entrarem naquele exato instante em ação. Dário reconheceu seus subcomandantes Anderson e Ivanova postando-se um de cada lado de si, acenando brevemente, fazendo saltar as travas de seus fuzis (as famosas armas Fazedoras de Viúvas), e disparando rajadas traçantes sobre os inimigos à frente.

_ Ivanova! _ Gritou Dário por sobre o matraquear das armas.

_ Senhor! _ Respondeu a moça.

_ O alvo primário dos inimigos é o filho do cotonete!

_ Quem, senhor?

_ Johnson Mitchel. Os alvos secundários somos nós, então suba agora e tire todos de cima, enquanto deixamos o caminho para a porta dos fundos livre, e dê proteção atenta ao bebê, civil a ser protegido a todo custo, codinome Bispo!

_ Subindo, senhor!

Assim que Ivanova saiu do lado de Dário, outro fuzileiro C7, por coincidência também uma jovem, entrou em formação, mantendo o fogo de barragem. Dário sentia um grande orgulho daqueles meninos e meninas, lembrava que, desde que conseguira com a ajuda de Karpov, livrá-los do vírus que os matava para serem controlados e remontados quando necessário pela Agência, eles tornaram-se seus subordinados, e ele conseguiu deixar os garotos e garotas em "ponto de bala", tinindo.

À frente, uns minutos depois, a onda de ataque arrefeceu, e Anderson disse, enquanto remuniciava sua Fazedora de Viúvas:

_ Senhor! Não é estranho que os inimigos estejam vindo só por baixo?

_ Bem dito, filho. Dá ordem pra alguém checar isso.

_ Preciso relatar baixas, senhor.

_ Depois, agora faz o que mandei.

Anderson fez sinais para alguém atrás de si enquanto respondia:

_ Feito, senhor.

_ Agora me lança um par de churrasqueiras no buraco enquanto eles estão de bobeira.

Anderson parou de atirar nos poucos que saiam pelo buraco, Dário, os outros, e a pilha de corpos já barravam o avanço deles. O jovem Fuzic digitou comandos no painel de sua FV, e um ícone piscante mais um sinal sonoro indicaram que a arma estava pronta para o lançamento de granadas incendiárias. Sem usar o sistema de cálculo da arma, mais confiante de seus instintos, Anderson fechou um olho e calculou o ângulo de arco para programar a força de empuxo das granadas, então deu dois disparos, fazendo os petardos subirem um pouco e caírem bem dentro do buraco.

_ Churrasco!! _ Gritou o rapaz, ao que os Fuzics, se protegendo, gritaram quase que em uníssono de volta: _ Pra mim bem passado, senhor!

Um clarão vindo de doze horas, bem à frente, e uma língua rubra de chamas saltou do chão, largando uma baforada ardente em todas as direções. Lá dentro do túnel inimigo a temperatura subiu tão rápido e chegou tão alto, que nem sequer se ouviu um grito, apenas o barulho abafado da pressão das granadas, e, quando a língua de fogo voltou para o chão, surgiu um vento de sucção em direção ao buraco, causado pela queima total do ar lá dentro e o conseqüente vácuo gerado. Depois, o fedor de carne calcinada subiu, em torvelinhos lentos, quase lânguidos, em meio ao silêncio que se seguiu, que não foi quebrado pelos fugitivos agentes que desciam as escadas e seguiam para os fundos da mansão.

...

_ Meu filho? _ Perguntou, assustada, a Primum Senex Marjorie, frisando seus olhos azuis, e com mechas dos cabelos ruivos descendo pela fronte, enquanto ela olhava de Ivanova para a criança, e de volta para a Fuzic. _ O que querem com um recém nascido como alvo primário?

_ Não sei, senhora, só sei que preciso proteger o Bispo. _ respondeu a jovem militar, por cima do som dos tiros no andar térreo.

_ Bispo? _ Perguntou Mitchel, tão estupefato quando Meg.

_ É prática nomear os protegidos ou alvos especiais. Fuzics decoram fisionomia, nomes, e detalhes característicos, e mencionado o codinome nos focamos na pessoa ou coisa em detrimento de quaisquer outros. Mas precisamos descer. _ Então a jovem se virou e falou para Montez, que, junto com os outros, observava atentamente Ivanova. _ Senhor, creio que está no comando dos civis, precisa tirar todos da mansão, estamos preparando caminho seguro pelos fundos.

_ É prá já, gatinha. Aê, cambada, pega o essencial, e vamos descendo em silêncio seguindo a mocinha linda aqui, heim!

O cantinho da boca delicada de Ivanova tremeu ligeiramente, como se fosse sorrir, mas apenas fez sinal afirmativo com a cabeça e voltou ao topo da escada, dizendo:

_ Sigam todos o corredor de fuzileiros ali embaixo, assim que eu der sinal. Eu seguirei rente ao Bispo.

No momento em que percebeu que teriam que evacuar o lugar, Lázaro fez o bracelete de Borges começar a despertá-lo, mas mesmo agora o doutor Guilherme ainda estava tonto, e precisava de apoio para caminhar. Milena então pôs o braço direito de Borges por trás de si, e o levantou, segurando-o pelo braço e cintura, dizendo:

_ Me viro, Lázaro, eu cuido de Guilherme, prefiro que fique perto de Meg, ela também ainda não está cem por cento.

_ Ok, então. _ Responde o médico, que está usando toda sua força de vontade e recursos do bracelete para também não desmaiar, devido ao desesperados mal estar causado pelas estáticas e interferências caóticas na quintessência, a energia mística, que seu lado mago estava sentindo. Chegado-se a Meg, ele lembrou que a mulher não possuía bracelete, o que realmente fazia com que fosse necessário ter o médico por perto se não quisessem correr riscos desnecessários com a Primum Senex.

Borges estava um pouco pesado, e ainda balbuciava algo sobre crianças e futuro, não conseguindo se firmar em pé. Milena, que não iria levar mais nada além de seu amigo, mesmo assim tinha um pouco de dificuldades de apoiá-lo, mas logo em seguida surge Amanda, que apóia Borges pelo lado oposto à Milena, e quando está sorri para a italiana, Amanda Vincentti faz uma falsa cara de zanga, e diz:

_ Estou fazendo isso por você. Não por ele.

_ Obrigada... _ Sussurra Milena, docemente _ Muito obrigada, irmãzinha.

Ali ao lado as pessoas pegavam armas, munição, cantis d'água e o restante da comida que conseguiram arrumar, amontoavam mochilas e se preparavam para fugir noite adentro. Do grupo original que acompanhava Montez na defesa daquela mansão e que não possuíam qualquer ligação com C7, sobraram poucos. Os agentes trouxeram mochilas de campanha, e já estavam prontos para seguir. Próximo ao topo da escada, ao lado de Ivanova, John disse, baixo, para Meg:

_ Bispo é um péssimo nome, Meg. Assim que tudo ficar bem, vou pensar num nome bonito pro nosso garotão.

Ela não respondeu à brincadeira para tentar levantar sua moral, apenas sorriu, e, depois de um momento abraçada com o filho, o entregou a Johnson e começou a esvaziar uma mochila. Seu marido perguntou:

_ O que está fazendo, Marjorie? Vamos precisar dos mantimentos...

_ Preciso cortar isso aqui, pronto, essa faca vai servir. _ Disse ela pegando uma faca de campanha que estava atada à perna de John. _ Preciso fazer algo para levar Isaac e que me permita correr...

_ Isaac?

_ ... Vou levá-lo na mochila, a fuzileira vai à frente e você bem atrás, ok?

_ Isaac?

_ É o nome de meu avô materno, uma pessoa que me tratou com decência. Algum problema? _ Disse ela encarando John, séria.

_ Gostei muito de Isaac. Clássico, sóbrio, judeu. Gostei. _ Respondeu Mitchel, com um sorriso charmoso.

Ela olhou para ele por um momento, e então, diante do sorriso bonito e franco dele, finalmente ela desviou o olhar, rindo.

_ Sério. _ Disse ele. _ Gostei. Enquanto for moleque vamos chamá-lo de "Z".

_ Não! _ Disse ela, com um lindo sorriso de covinhas.

Foi quando lá no térreo o barulho de tiros parou, e a seguir houve um clarão, se ouviu um barulho abafado, e se sentiu um tremor, e veio, escada acima, uma rajada de ar quente. No momento seguinte, Ivanova disse, alto para todos ouvirem:

_ Agora, desçam, desçam, desçam! Venha, senhora, traga o Bispo, vamos no meio.

Desceram as escadas e passaram por trás de Dário, que apontava com um braço, sem tirar os olhos do túnel inimigo, indicando que todos deveriam ir em direção aos aposentos dos fundos, no andar térreo. Silenciosa, mas agilmente, todos passaram. Quando Meg viu a pilha de corpos disformes e ensangüentados, cobriu os olhinhos de seu bebê instintivamente. A última coisa que ouviu, antes de sair pelos fundos, foi Dário dizendo:

_ Vocês quatro vão com os civis e Ivanova. Quero três voluntários para ficar e dar a impressão de que ainda estamos aqui por mais uma meia hora! Anderson, menos você, que vem comigo. Vamos formar uma segunda barreira bem na porta dos fundos. Quando Ivanova fizer contato dizendo que o primeiro grupo está a salvo nas rochas lá fora, nós partimos. Ei, Anderson, meu filho, e os caras que foram olhar lá fora?

...

Montez caminhava ao lado de Milena, Borges e Amanda, bem à frente do grupo, pretendendo manter Milena segura, talvez ajudar a italiana gostosona se ela precisasse, e usar Borges de escudo caso fosse necessário. Mas de sua posição, assim que o grupo saiu, silencioso, pelos fundos, e caminhou em direção à muralha de escombros mais próxima, Chris foi o primeiro a ver o Fuzic que vinha correndo da escuridão entre os escombros. Montez posicionou sua espingarda, para o caso do moço estar insano também, mas o soldado mantinha a arma baixa e corria acenando, e antes de chegar mais perto começou a gritar:

_ Voltem! Voltem! Cuidado, os redemoinhos...!!!

Ele estava no meio do caminho entre os escombros e a mansão, e a uns quinze metros dos fugitivos, quando estes últimos viram o que ele queria dizer. Atrás do soldado o ar pareceu se distorcer, e, feito uma lente em redemoinho, pareceu "cair" em direção ao soldado, não como se o perseguisse, mas, passando a impressão subliminar, de que estava sendo atraída pelo corpo do jovem. Dentro da "lente espiral" não se via apenas o que estava atrás dela, mas montes de imagens, rostos, paredes, gramas, materiais estranhos e orgânicos, tudo misturado em remoinhos sem nexo. Montez tentou gritar, assim como Milena e Amanda, que perceberam a cena pouco depois do homem, mas tudo foi rápido demais. A bem da verdade o soldado percebeu que a coisa ia tocar nele, e parou de correr, como se soubesse que não adiantava. A "coisa" o alcançou, e ele se misturou às imagens desconexas, ao menos parte dele, pois a "lente" o colheu pelo lado esquerdo de seu corpo, e então sem nenhum som, pedaços do soldado, retorcidos e quase irreconhecíveis, voaram para todos os lados.

As pessoas, que assistiram a cena, se encolheram diante da coisa veloz que vinha direto para elas, para fazê-las em pedaços também! John abraçou Meg e Isaac, Milena saltou na frente de Montez, Borges e Amanda, outros gritaram de pavor, mas pouco antes de atingí-los, a "lente" bateu nalguma barreira invisível em torno da casa, dissolvendo-se numa grande e absolutamente silenciosa explosão. Tanto Lázaro quanto Amanda quase caíram no chão, gemendo de dor.

...

_ Aquilo é a realidade se distorcendo. _ Disse Borges, que havia acordado de vez justo no momento de ver o soldado sendo feito em pedaços. De um pulo estava em pé, justo atrás de Milena, com os olhos escuros esbugalhados. _ Só pode ser! Vamos sair daqui.

Milena percebeu que Borges estava pronto para ficar de pé, e até para correr muito, sozinho, se necessário. Uma coisa boa em Guilherme, pensava ela, é que sua inteligência o fazia entender tudo e se preparar rápido para se defender dos perigos. Lázaro já estava voltando a sua altivez normal. Então a agente Milena Ramirez foi até Amanda e a ajudou a se aprumar, perguntando:

_ O que houve com você e Lázaro, Amanda? Você está bem? Aquela coisa te atingiu com algo?

_ Não... Exatamente, Milena. _ Veio a resposta da italiana _ Catso! Doeu! Bem, mas se eu estou ficando por dentro desse lance de magia, há uma barreira mística em torno da mansão, e eu acho que meu avô colocou ela lá, acho que é por isso que a mansão não está mudando com o resto do planeta.

_ Sim. _ Disse Lázaro, que veio ter com elas. _ Isso mesmo. Quando aquela coisa explodiu contra a barreira quem tem a percepção mágica sente a violenta emissão de forças caóticas.

_ Quer dizer que nos ferramos?! _ Perguntou Montez. _ Estamos presos na mansão e logo ela vai tá cuspindo Insanos pelas janelas!

_ O soldado não foi imediatamente morto ao sair da barreira de proteção da mansão. _ Disse Borges, mais para si que para os outros. _ Daí tiramos conclusões. A barreira é permeável para nós. Pode-se caminhar fora da barreira normalmente, contanto que não esbarre num troço daqueles.

_ Boa, doutorzinho. _ Disse Montez, num tom debochado, mas Borges o ignorou.

_ É por isso que os Insanos se movimentam por baixo da Terra. _ Disse John.

_ Faz sentido. _ Murmurou Christian Montez, coçando o queixo.

_ Alguma característica deste redemoinho dimensional faz com que eles fiquem sempre na superfície. _ Sugeriu John.

_ Ei, Fuzic! _ Falou Borges, apontando para Ivanova, que parou de cochichar em seu rádio, e acenou, ouvindo. Guilherme prosseguiu _ Acho que ou nós vamos por cima, e aprendemos a perceber esses... Obliteradores... Antes de eles chegarem perto demais, ou vamos por baixo. De qualquer forma, Fuzics geralmente são mais rápidos, e armazenam dados com mais frieza. Pegou tudo que aconteceu com teu colega?

_ Sim, senhor.

_ Quero esses dados no meu bracelete, agora.

_ Enviando, senhor, mas acabei de falar com o Comandante Dário, e contei o que aconteceu, ele me disse para retornar, se o senhor Montez concordar, pois por enquanto tudo tá calmo lá dentro.

_ Montez decidir?! Porra nenhuma! Ninguém me arrastaria para fora deste campo de proteção nem a porrada agora, sem eu entender essas coisas primeiro! _ Disse Borges, caminhando resolutamente de volta para a mansão.

_ Eu adoraria alimentar um troço daqueles com o doutorzinho. _ Sorriu sardonicamente Chris, acrescentando para todos: _ Ê povo, de volta práquele diabo de buraco! Vamos fugir pelo ralo!

_ Ei, Milena, anda logo, tá correndo perigo aqui fora! Amanda sabe andar sozinha tão bem quanto sabe falar merda! _ Disse Guilherme, olhando para trás e acenando para a amiga.

_ Ele agora é teu marido, Milena? _ Perguntou Amanda, recebendo de volta um sorriso sem graça da amiga. Mas, não satisfeita, acrescentou, num grito brusco: _ Vai se foder, Borges, ficaiola de uma figa!!!

Quase que no mesmo instante três "obliteradores" se formaram um pouco além da barreira. As pessoas começaram a correr de volta para a mansão, enquanto as coisas vinham se aproximando. Milena gritou para que Montez apoiasse Lázaro, e ela própria segurou a cintura de Amanda, justo a tempo de mantê-la de pé e correndo, pois quando os Obliteradores se chocaram com a barreira de proteção, tanto Lázaro quando Amanda voltaram a gemer de dor, e seus joelhos fraquejaram. Pouco depois entravam às carreiras mansão adentro.

...

Dário ajudava dois Fuzics a sair do buraco no meio do andar térreo da mansão, enquanto Christian e os outros montavam guarda tanto nas janelas quanto em volta do buraco. A manhã daquele dia estava já chegando à metade, e as tochas e braceletes se apagavam, deixando a mansão mergulhada em esparsos raios solares e sombras. Do lado de fora o planeta Terra continuava a mudar, e o que eram escombros de uma cidade do Rio de Janeiro demolida por seus próprios habitantes enlouquecidos, agora era uma planície de rochedos e pedregulhos enormes, um deserto de pedras e túneis de onde, todos sabiam, os Insanos espreitavam aquela última relíquia de um passado que jamais existiu, a velha mansão. Milena conversava com Amanda e Borges perto de uma janela, falavam sobre física e aparelhos de detecção para prever a chegada de obliteradores. O pequeno Isaac estava dormindo num berço improvisado, com Ivanova montando guarda firme ao lado dele, às vezes deixando escapar um olhar doce em direção ao menininho. Marjorie, John e Lázaro conversavam noutra ponta do salão, examinando um dos corpos dos Insanos, colocado sobre uma velha mesa de madeira.

_ São hominídeos, certamente. _ Dizia Lázaro, cujas mãos trêmulas mostravam como ele estava sendo afetado pela força caótica que tomava conta de tudo. No entanto sua voz permanecia séria e firme, sua força de vontade ainda era maior que as forças sinistras. Ele dizia: _ Não são mais humanos, isso também é certo. Parece mais habilis que um erectus ou um neanderthalensis, mas também tem algo diferente do habilis, estranhamente o volume craniano é maior que o nosso...

_ Alguma outra linhagem de hominídeos que, nesta realidade forçada pelos Inimigos, sobrepujou a humana? _ Perguntou Meg.

_ Minha teoria é que quem está fazendo isso é o Senador. _ Disse, baixo, o agente Mitchel, olhando de soslaio para Borges ali não muito distante. John prosseguiu: _ Ele está usando Shiva para mudar a realidade a favor dos Cinzas.

_ Mas espere! _ Disse Meg _ Tem uma coisa que precisa saber, John, e que eu nem sei se o próprio Borges sabe: aquele que chamamos de Senador é a metade HUMANA de Borges. O lado, digamos, bom do doutor Guilherme, e que provavelmente vemos ali perto de Amanda e Milena, é a de um nobre Cavaleiro de Toledo, cujo cerne é Cinza, que passou sua própria essência para o único humano disponível.

_ Uau. Que merda. _ Disse Lázaro, mas imediatamente retomou sua polidez, virando-se para Marjorie e dizendo elegantemente: _ Perdão, Marjorie.

_ Não se preocupe, querido. Mas veja, John, se o Senador é humano, qual seria sua motivação para extinguir sua própria espécie.

Mitchel coçou a têmpora, pensando, e então disse:

_ Se o nosso Borges ali não é um exemplo de nobreza humana, embora eu tenha que admitir que não o vejo nos traindo, talvez o outro também esteja misturado assim, ou talvez o humano em Borges seja mesmo tão mesquinho que queira destruir o resto da humanidade... Ou dominá-la.

_ Conjecturas, meu amor. _ Disse Marjorie, sorrindo e acariciando as costas de John _ Na verdade isso pode até se tornar importantíssimo em breve, mas primeiro temos que sair daqui.

_ Espere! _ Fez Lázaro, subitamente interessado em algo no braço do cadáver _ Veja isso. Estava escondido embaixo dos pêlos e da imundície da criatura, mas olhem isso. Assombroso.

John e Meg se inclinaram para ver mais de perto. Não havia dúvida, o cadáver de algum tipo de ser quase-humano estava usando um tipo de bracelete fino, como os da Agência, só que feito em algum bronze delicadamente trabalhado.

_ Orwel os mandou? _ Perguntou John olhando para Marjorie.

_ Não. _ Responde a mulher. _ Orwel já cansou de me provar que, sejam quais forem seus planos pessoais, a humanidade e o futuro dela estão neles. Ele pode nos trair individualmente apenas, não como um todo.

_ Acho que já vi algo assim, quando estudava documentos da antiga seção da Agência chamada Eçaraia, ou Prana-7. _ Murmurou Lázaro, puxando pela memória.

_ Isso. _ Fez Meg. _ São parecidos vagamente com uns braceletes especiais desenvolvidos pelo SENEX para controlar magos!

_ Exato, mas os outros eram grossos como os braceletes do nível anterior.

_ Esses caras são... Magos?! _ Perguntou John, fazendo uma ligeira careta.

Ao que Lázaro abriu a palma de uma de suas mãos e a aproximou do cadáver, lentamente. Manteve a mão há cerca de um centímetro do morto, e foi subindo desde um dos pulsos até a cabeça. Foi quando chegou ao volumoso crânio que teve um tremor. Então, sem uma palavra, pegou uma faca de campanha e começou a abrir, de forma o mais cirúrgica possível naquelas condições, a cabeça do falecido. Instantes depois ele conseguiu, com o auxílio de John e de uma faca de serra maior, abrir um pedaço da calota craniana, e então o médico olhou para a Primum Senex. Ela olhou dele para o feio buraco, e, com um ligeiro frisar de olhos, disse:

_ Nesta realidade as duas espécies autoconscientes conhecidas que nasceram na Terra, humanos e cinzas, vivem em total simbiose. Eles não são magos. São cinzas vivendo em corpos descerebrados humanóides. Mas cinzas sabem manipular muito bem certas tecnologias Mahapurana, a ponto de parecerem magos, e são, eles próprios, bem resistentes a magia... Então, os braceletes...

_ São para que um mago possa controlá-los. _ Disse Lázaro. _ O que acham dessa hipótese?

_ Asura! Ramon não nos atacaria, e só Asura teria poder suficiente para controlar toda uma espécie. _ Constatou John.

_ Não se fie na bondade eterna de Ramon, Johnson. _ Disse, de modo sinistro e como se não admitisse mais perguntas sobre isso, a Primum Senex, e imediatamente ela prosseguiu: _ Pode obter alguma coisa tocando nesta peça, doutor Lázaro?

O médico, elegante e esguio, apesar de seus tremores, levou a mão diretamente para sobre a peça de bronze cheia de minúsculos entalhes, e, um momento depois, a tocou.

Em um choque, súbito e seco, Lázaro foi lançado para cima! Então, sendo nada mais que um campo de visão sem corpo, o médico percorreu a superfície mutante da Terra em uma velocidade imensa, o chão tornando-se um borrão indistinto, e parando sobre uma vila, cujo biotipo das pessoas fazia crer ser algum lugar na Índia, o que não surpreendeu Lázaro. Novamente um arranco de tirar o fôlego, e Lázaro estava se afastando da vila, da Índia, do planeta, passando pela Lua, zunindo como um raio por um borrão vermelho que certamente seria Marte, mergulhando e desacelerando no campo de asteróides antes de Júpiter... O médico e mago não sabia bem o por quê, mas percebia claramente que havia voltado no tempo, sabia que em algum ponto dos E.U.A. os Sleepwalkers sentiam uma presença alienígena se aproximando. Foi quando Lázaro viu passar em sua frente um estranho pedaço de rocha, um tipo de asteróide esférico, cuja crosta ia se desfazendo enquanto passava, revelando uma esfera negra e reluzente cravada em seu núcleo. Havia algo ou alguém sobre o pólo do asteróide esférico. Lázaro tentou forçar sua visão, e pôde perceber que era um ser que se materializava ali, um ser a princípio apenas vagamente humanóide, e cujos traços foram se firmando, até se tornar algo muito parecido com Johnson Mitchel quando envergando sua armadura Mahapurana, só que envolto em tecidos, ou couros, ou tiras de algum elemento antigo e escuro que flutuava no vazio. A criatura, quando vista mais de perto, parecia borbulhar, sua pele obscura e sombria tomava forma e substância. Então, sem aviso, a coisa olha direto para Lázaro e diz, numa voz cuja descrição mais próxima é a palavra "horrenda":

_ Bem-vindo, mago. Mas aqui não é teu lugar.

Então, de dentro do rosto obscuro, embaixo de uma reentrância enegrecida que se parecia com um capuz, brotaram energias vaporosas, marrom ensangüentadas, que vieram em direção ao campo de visão de lázaro como uma tempestade furiosa, atingindo-o com uma força mental que se expressava como a sensação física de ser empurrado brutalmente por uma força explosiva. Mas Lázaro se "agarrou" à cena, com todas as suas forças, mesmo diante da imensa sensação de que ia perder a consciência. Assim, ainda pôde ver, de forma confusa, quando o monstro se desgarrou da esfera, que agora já tinha a forma de um cubo e certamente viajava para se chocar com a Índia, na Terra. Lázaro viu como a coisa hedionda ficou planando no vazio entre os mundos, meditando, aguardando, enquanto passavam as décadas, e, a certa altura do século XXI, o ser abissal _ que havia passado os últimos anos mansamente quieto sobre a superfície de Phobos, na órbita de Marte _ subitamente expandiu seus corpo trevoso, e alçou vôo, indo encontrar, no espaço, uma nave que trazia alguém muito especial para Marte: Proshenko, o ex-diretor da Agência. Lázaro viu quando a coisa invadiu a nave, destruiu montes de Fuzics e consumiu Proshenko, que se entregou com prazer. Depois, a Coisa-Proshenko partiu rumo à Terra, mas contorcendo-se, percebeu que algo estava errado, que Proshenko já estava morrendo antes de ser consumido, que o cérebro do hospedeiro tinha uma disfunção num nível crítico, então a coisa-Proshenko se expandiu, e rumou num caminho diferente, interceptando uma estação espacial esférica, uma Esfera Barnal. Quando chegou lá o ser obscuro já não tinha mais o topo de sua estrutura, Lázaro viu que a coisa caminhava, matava, e arrancava cabeças, procurando algo, um sistema nervoso de seu interesse, talvez, pois já não possuía mais sua própria cabeça. Enquanto a coisa se alimentava dos pobres exploradores que habitavam aquele lugar, ela percebeu novamente o mago ali, e, esbravejando, voltou-se para ele logo depois de lutar com alguém que parecia muito com Guilherme Borges, e disse:

_ Ainda aqui, humano? SAIA! _ Lázaro reconheceu o inimigo assim que viu seu novo rosto, e conjurou um feitiço de percepção. Sentiu, como a pressão de um esmagamento, a identidade e algumas memórias do outro. Amanda, outra filha da magia, precisava saber!

Mas desta vez a força repulsora foi irresistível!

De volta a velha mansão, que vibrava entre os mundos e dimensões, Lázaro foi arremessado com brutalidade para longe da mesa onde jazia o cadáver de um dos Insanos. Foi tão súbito que ninguém conseguiu ampará-lo. Instintivamente sua força mística conjurou uma magia de proteção, que o fez diminuir a velocidade até flutuar no ar. Mas fazer magia, naquele lugar, tinha um custo terrível, e Lázaro tombou no chão, em agonia. Mesmo enquanto tinha convulsões, lágrimas de dor rolando pelas faces, ele gritava:

_ É Asura, ele é o Kalidevas! É Proshenko! Ahhhhhh! Asura é o Kalidevas! Ele foi enviado por Shiva! Há muito tempo! Ele e Maya! Ahhhhh!! É tudo em vão!!

...

Quando Lázaro começou a examinar o cadáver do Insano, Guilherme Borges, que já há uma meia hora analisava os dados que recebeu de Ivanova em seu bracelete, empurrou com o pé um móvel, que tombou de lado, próximo a uma janela, ficando mais ou menos da altura certa para se sentar nele, e disse, para Milena e Amanda, que estavam próximas:

_ Ei, podem vir aqui?

_ Qual foi a parte do "vai se foder, Borges" que você não entendeu, meu querido? _ Perguntou, com puro sarcasmo, a agente Vincentti.

_ Amanda, meu bem, _ Disse Borges, sem olhar para ela. _ Pode parar com esse joguinho de quem desdenha quer comprar? Estou arrumando um modo de não sermos estraçalhados pelos Obliteradores.

_ O quê?! _ Fez Amanda. _ Eu, querer você?! _ E ela põe uma das mãos sobre o peito, joga a cabeça para trás, dando uma sonora gargalhada.

_ Vamos, Amanda, sem essas briguinhas infantis. _ Murmurou Milena, levando a outra pelo braço _ Temos que sair daqui inteiras, para resolver o caso de Maya, lembre-se. E você, Guilherme, por favor, sem provocações inúteis também. O que descobriu?

_ Nada. Aquelas coisas são diretamente indetectáveis para nossa tecnologia.

_ Puoooorra, Milena, _ Fez Amanda _ Esse mané me tira do sério! Então para quê nos chamou se as coisas são imprevisíveis?

_ Eu não disse isso, meu bem.

_ Se ele me chamar de "meu bem" mais uma vez, a porrada vai comer!

_ Calma Amanda! Menos, Guilherme! _ Apazigua Milena, entre os dois.

_ Eu disse... _ Começou Borges com um sorriso propositadamente afetado e debochado, olhando as duas de soslaio. _ ... Que essas coisas não podem ser detectadas DIRETAMENTE.

_ E indiretamente? _ Perguntou Milena.

_ Indiretamente, eu tenho uma teoria. Percebi que, por alguma razão que não sei explicar, só posso supor que tenha algo haver com o decaimento de função de onda, essas coisas, e tudo o mais que está acontecendo na reestruturação da nossa realidade, estão intimamente ligados aos nossos estados de espírito.

_ Hum. _ Fez Amanda _ Quer dizer que têm haver com o que pensamos e sentimos?

_ Mais diretamente com os últimos que com os primeiros. _ Disse, suavemente, o agente Borges, completando: _ Meu bem.

_ Não começa, Guilherme! _ Fez Milena. _ Como chegou a esta conclusão?

_ Percebi que minhas memórias ficam mais vívidas quando tenho sentimentos complexos, geralmente aquilo que, na nossa atual visão moral, chamamos de "bons sentimentos", sentimentos de amor altruístico, por exemplo.

Fazendo uma perfeita cara de assombro, Amanda virou para Milena e disse:

_ Ele tem sentimentos? E altruísticos?? Estou passada!

Ao que Borges ignorou, prosseguindo:

_ Isso me fez suspeitar de que o grau de degeneração da realidade, que é o que, em minha opinião, causa a deterioração mental, está relacionada aos nossos estados de espírito. Lá fora minha tese foi reforçada ao ver que, no exato momento em que... _ Aquele suave sorriso sarcástico novamente brotou no rosto do bioquímico, enquanto ele prosseguia: _ ... Provoquei as paixões de Vincentti de novo, e ela mandou que eu me fodesse, com muita ira, a coisa aconteceu. Prontamente, já que as condições eram favoráveis, Obliteradores se formaram.

_ Então não continue me provocando, queridinho, ou eu mesma arranco você desta mansão e o enfio goela abaixo de um Obliterador desses!

_ Amanda, agora mais do que nunca, calma! _ Disse Milena, ainda apaziguadora. E voltando-se para Guilherme: _ E você, chega! Chega, ouviu? Não temos condições de saber se isso realmente vai acontecer a cada vez que um de nós explodir, e nem se a barreira desta mansão vai agüentar indefinidamente.

_ A propósito. _ Disse Borges _ Acredito que seu avô não deixou a mansão à toa. Não entendo nada dessa deformidade mental de magia, mas suponho que o velho foi "fechar a porta por fora".

_ Então não adiantaria nada se eu tivesse impedido ele de sair?... _ Perguntou Amanda, num tom de voz vacilante e tristonho.

Borges, claro, não perdoou. Olhou a italiana nos olhos e disse:

_ Ora, veja só, achei que você e essa esquisitice de magia que parece que você, Lázaro e teu pai têm, tinha te permitido saber o motivo de o velho ter ido se arriscar lá fora. Quer dizer que teu avô vai para a morte certa e você, sem saber a razão, simplesmente deixa o pobre velho partir? Tsc, tsc, tsc. Que falta de humanidade, Vincentti. Eu não faria melhor.

_ Eu não sei por quê fiz aquilo! _ Murmurou Amanda, com os olhos pegando fogo, de consternação e fúria.

_ Vai ver que teu avô, com os poderes dele, te fez não intervir, Amanda. _ Sugeriu Milena, dando de ombros.

_ Tente se convencer disso, Amanda. _ Disse Borges, sorridente como um legítimo Gato Cheshire3 sarcástico. _ Enquanto isso, vejam, as duas, sei que não é bem a área de vocês, mas queria que me ajudassem a criar um programa para analisar as leituras que o bracelete de Amanda gerou quando ela teve o pico emocional que sugiro causou o Obliterador. Depois nós criamos um outro programa para ficar comparando nossos biorrítimos com esses picos de limite, e ou fazer os braceletes nos acalmarem sutilmente, ou gerar um aviso de que o Limite de Obliteração está chegando.

_ Bacana, Borges, tenho que admitir. _ Disse Amanda. _ Mas não acha que em se tratando de biorrítimos, o doutor Lázaro ali do outro lado da sala seria melhor para fazer isso contigo?

_ Eu não tenho nenhum motivo para desconfiar dele, mas também não tenho nenhum motivo para confiar nele. _ Respondeu Borges, de pronto. _ Portanto, segundo meus critérios, ele não é confiável.

_ Peraí. E eu sou? _ Perguntou Amanda, incrédula.

_ Sim, não por mim, mas por quê eu sei que você jamais faria alguma coisa contra Milena.

_ Porra, e não é que faz sentido?!? _ Faz Amanda, agora realmente “passada”.

Milena sorri, e balança a cabeça, como quem diz "não liga pra ele". Nos minutos seguintes eles interconectam seus braceletes e começam a criar os programas. Enquanto Lázaro, do outro lado da sala, toca o bracelete descoberto no cadáver, eles estão finalizando o software que vai monitorar as condições que criam os Obliteradores, preferindo que o sistema avise ao invés de acalmar. Assim que eles terminam, Milena diz:

_ E agora, como vamos testar isso?

Amanda segura Borges pelo rosto. Ele já estava projetando a língua para fora da boca, para lamber a orelha da mulher, no intuito de deixá-la muito furiosa, quando a própria Amanda o interrompeu. Mas isso acabou favorecendo Borges, que, com as bochechas espremidas entre os dedos de Vincentti, diz:

_ Nossa, Amanda, tua orelha tá sangrando! Nojento.

Como não há sarcasmo na voz dele, e Milena olha para ela assustada, Amanda larga o homem e passa as pontas dos dedos no ouvido, verificando que está mesmo sangrando. Ela faz menção de se levantar, mas só o que consegue é levantar e cair, e enquanto cai, sentindo uma dor intensa e a vista turvar, ela vê o corpo de Lázaro sendo arremessado através da sala.

...

_ Maya... Maya... _ Amanda ouvia Lázaro dizer, enquanto despertava. _ Onde está Amanda?

_ Calma, Lázaro, por favor. _ Dizia Marjorie, que o acudia, cercada por John, Montez e DiFalco. _ Fique calmo, querido. Tudo está bem agora.

_ Preciso falar com Amanda. E com Borges. _ Dizia Lázaro, que lutava para restaurar o equilíbrio de seu organismo.

_ Eu estou aqui, doutor Lázaro. _ Disse Borges, de pé por trás de DiFalco.

_ Me deixa levantar, Mi... _ Murmurou Amanda, deitada com a cabeça no colo de Milena, que respondeu:

_ Ok, com calma, Mandinha, eu ajudo. Essa coisa de magia está fazendo muito mal a você, irmãzinha.

Um momento mais tarde, e Lázaro estava sentado em uma cadeira improvisada, cercado por todos. A descoberta do bracelete no cadáver, e a sondagem feita pelo médico que também é um mago natural já havia sido esclarecida a quem não presenciara ou não percebera o fato. Agora Lázaro, que já respirava melhor, dizia:

_ Aquele bracelete de cobre me colocou em contato com quem está enviando essas coisas contra nós, e pude absorver uma pequena parcela de suas memórias. Há algum tempo, alguns anos talvez, Shiva já estava manobrando para cá. O planetóide é responsável por controlar as culturas senscientes que brotam nesta galáxia...

_ Nós já sabíamos disso. _ Murmurou, sem jeito, mas com firmeza, a Primum Senex.

_ E nos deixaram no escuro esse tempo todo! _ Disse, entre os dentes, Borges. _ Continue, Lázaro.

_ Muita calma, Borges. _ Murmurou Johnson, num tom ligeiramente ameaçador.

_ Continua, Lázaro. _ Repetiu Borges.

_ ... Shiva decide, por alguma razão, quais espécies devem vicejar, e quais são perigosas segundo um padrão que não entendi, e que devem ser destruídas. Shiva veio tomar esta decisão. Mas mandou dois arautos seus na frente, duas criaturas que a agência conhece pelo codinome Kalidevas. Sei disso por conta de ter acompanhado a chegada de um deles, e de este Kalidevas ter consumido o diretor Proshenko enquanto ele, munido de uma Armadura Doppler, tentava fugir do Sistema Solar pelo Portal de Júpiter. Esse Kalidevas era o Cavaleiro sem Cabeça alienígena que você enfrentou, Borges!

Milena pôs as mãos sobre o próprio coração, e pareceu muito constrangida, e incapaz de olhar na direção de Borges, como todos os outros fizeram. O bioquímico olhou em torno de si, de cara feia, olhos negros frisados, penetrantes, e, voltando-se para Lázaro, disse:

_ Me lembro disso. Só saímos vivos por causa de um Cavaleiro de Toledo, que me mostrou como usar uma espada esquisita. Continua, cara.

_ Pois bem. _ Disse Lázaro _ Esse Kalidevas que consumiu Proshenko é o pior, o mais antigo, ele serviu diretamente aos Mahapuranas, e, pelo que eu senti, não quer que eles voltem. Esse ser, que agora é um homem também, é aquele que chamamos de Iosef Asura.

_ Demônio. _ Murmurou Amanda. _ É um demônio perverso e inútil, esse filhodaputa do Asura. E Maya, Lázaro, o que tem ela?

_ Nós temos que ter medo de Asura, Amanda, ele usa de forças místicas que nós provavelmente não alcançamos. Ao que parece os Mahapuranas usam de uma força mágica superior àquelas que nós, magos, temos acesso.

_ É a Unodinâmica, a força motriz das tecnologias Mahapurana. _ Diz Meg, sem olhar em volta, para não perceber a censura em torno dela. _ Essa força chega a ser tóxica para qualquer um, mago ou não, se não for corretamente canalizada, mas existe uma forma distorcida, caótica, que é especialmente corrosiva para magos. Essa Unodinâmica Caótica é que está afetando tanto Lázaro e Amanda.

_ Lázaro, minha filha, fale sobre ela... _ Disse Amanda, apoiada por Milena, e pondo a mão sobre o braço do mago.

_ Maya é o segundo Kalidevas, Amanda. Ela foi enviada para milhões de anos no passado por Shiva, para o planetóide isso é possível em certas condições, e mandada entrar em hibernação no subsolo de Marte, até quando fosse chamada por Shiva. Lembram-se quando viajamos ao passado de Marte, quando o planeta era uma colônia de pesquisas para várias raças vassalas dos Mahapuranas? Lembram-se que só voltamos por conta de uma ajuda inesperada de um Guardião Negro? Acredito que aquela era Maya, pouco antes de hibernar.

_ Mas... _ Dizia Amanda, incrédula _ Como?...

_ Não sei, Amanda. Só sei que, em algum dia do futuro, você vai perder sua Layla para Shiva, que vai tragá-la para nosso passado, e de lá enviá-la para um passado inimaginavelmente longínquo. Mais do que isso você vai ter que perguntar a própria Maya. Mas há algo que a Primum Senex precisa saber...

_ Que Asura quer destruir o filho de Marjorie. _ Disse DiFalco, sem que ninguém soubesse o por quê. _ Agora está claro para mim. O próprio menino, numa aparição do futuro, me disse aqui nesta sala que ele será essencial num novo esquema das coisas que pode surgir se a gente acertar as paradas aqui. Pelo sim e pelo não, Asura quer o moleque morto. Foi graças ao aviso do Bispo que não fomos pegos de surpresa pelos Insanos.

_ O que senti foi um poder e uma força além de qualquer imaginação humana. _ Disse Lázaro, esforçando-se para ficar de pé _ Shiva é um instrumento direto dos antigos Mahapuranas, tem a força deles. Não sei como pode haver saída se Shiva está decidida a destruir a humanidade.

_ Para mim ela ainda não decidiu. _ Disse Johnson. Ao que Meg concordou com um aceno.

_ Acho que quem desencadeou isso tudo. _ Disse Borges, fazendo um movimento amplo com as mãos _ Foi o Senador.

_ Corajoso da tua parte admitir isso. _ Falou, sem cortesias, Mitchel.

_ Eles são duas pessoas diferentes, John! Guilherme não tem consciência nem culpa do que o outro faz. _ Afirmou Milena _ Não é, Guilherme?

Borges olhou para ela com uma certa tristeza, e ela, assustada, percebeu que o próprio amigo não tinha toda essa convicção.

_ Olha, se o Asura quer o menino do John, por medo do que ele pode fazer no futuro, é por quê pode haver ainda alguma chance! _ Disse Dário, quase gritando.

Todos olharam para ele, que deu de ombros, olhando em volta, e falando:

_ Isso não é óbvio?

_ Sim. É óbvio. Temos que sair daqui! Agora! _ Diz Marjorie, com a força de quem está acostumada a liderar.

_ Mas, Meg, precisamos de alguém que enfrente Asura páreo a páreo. _ Disse Amanda, séria.

_ Está morrendo de saudades dele, heim? Tú é muito... _ Piscou Dário.

_ Não fode, Dário. Não sou tua mãe, não. _ Retruca a italiana, sem olhar para ele, que ria de seu próprio gracejo grosseiro.

_ CHEGA! Já temos gente procurando por Ramon, Amanda. _ diz Marjorie, enérgica. _ Na verdade, seu pai e a agente Jéssica. Agora vamos, depressa, se organizem, vamos sair pelos túneis. Rápido!

_ Como eu disse, cambada. _ falou Montez, cigarro na boca, sorridente como nunca, falando bem alto para todos: _Vamos sumir pelo ralo. O buraco, pelo menos no perímetro da mansão, está limpo e guarnecido por Fuzics.

Trinta minutos depois estavam nos túneis escuros.

...

_ Me explica uma coisa. _ Disse Montez, num sussurro _ Por quê diabo não matamos o Borges e com isso damos fim no cão que divide o corpo com ele e que tá fodendo tudo lá em Shiva?

Ele seguia na frente do grupo de refugiados. Mais à frente, claro, seguiam dois batedores Fuzics, mas os agentes estavam, junto com o restante, seguindo em fila mais ou menos indiana _ pois os túneis eram tortuosos e por vezes estreitos demais, ou se ramificavam, paralelos ou em diversas direções _ juntos, por aquele lugar claustrofóbico, braceletes iluminando a escuridão. No meio do grupo, seguiam Ivanova, John, Meg, o bebê e Lázaro, e mais algumas pessoas que já estavam na mansão, na retaguarda iam Borges, Amanda e Milena. Todos usavam os sensores dos braceletes no máximo, tanto para verificar a presença de Insanos, como para, com o novo programa de Borges, Amanda e Milena, preverem o Limite de Obliteração, por via das dúvidas da coisa acontecer por ali também. Na frente, no entanto, junto a Montez seguiam Walkíria, o Fuzic Anderson e seu comandante Dário, que respondeu:

_ Meu dedo já coçou no gatilho umas mil vezes. Não descarto essa opção não.

_ Milena ia ficar furiosa! _ Intrometeu-se Walkíria, em um murmurar sorridente.

_ Mas quando o mundo fosse salvo, ela acabaria aceitando a morte do doutorzinho como inevitável. _ Disse, seco, Christian, que encarava com olhos famintos a comandante Walkíria, que por sua vez mordia os lábios para ele. Montez, tentando não pensar em sexo, completou: _ Mas, bem, por causa de quê não furamos o cara logo?

_ Não sei. _ Respondeu Dário. _ Acho que por quê a Primum Senex está aqui, e ao que parece ela nem cogita a possibilidade. E não sei se tú sabe, ela é psíquica, e sempre acerta em suas escolhas.

_ Vocês são subordinados à ela, eu não. _ Disse Montez, entre dentes. _ Ninguém manda em mim.

_ Borges é esperto, e sempre foi útil nas missões, rapazes, talvez não seja a hora... _ Disse Walkíria, lasciva ainda, mas conciliadora.

_ Pois é. _ Diz Dário DiFalco. _ Vai que o Senador conseguiu mesmo se transferir completamente para o corpo da ex-mulher do Borges. Matamos o cara à toa.

_ Diante da situação, porra, é um risco bem aceitável, acha não? _ Pergunta Montez, áspero.

_ Para ser sincero, acho... Mas... _ Fez Dário, sem saber exatamente como se explicar.

_ Tú tá é com pena de contrariar a Milena, tá afrouxando por causa dela. Todos amam Milena! Mais um que quer comer a morenona, é?

Dário parou a fila, e segurou o pulso de Christian, que, virando a cabeça lentamente, fitou DiFalco bem dentro dos olhos, com uma expressão cruel. O comandante dos Fuzics não se abalou, e então disse, num sussurro furioso, encarando Montez sem pestanejar:

_ Se você é um assassino, este não é meu caso. Mato só se for absolutamente necessário. Acho que você tem razão, mas acho também que a hora não é essa, como disse a maluca aqui da Walkíria. Tenho que tirar todos daqui e chegar até aquela nave lá fora. Feito isso eu passo a decisão sobre a vida e a morte de Guilherme para os mandachuvas, lá na Lua.

_ E se não houver mais essa tal nave? _ Perguntou Montez, cruelmente sardônico.

_ Pensei que só euzinha tinha pensado nisso. _ Comentou Walkíria, num sussurro tímido.

_ Então _ Responde Dário, direto: _ Primeiro damos fim em Borges, depois, se a deterioração mental continuar, uns nos outros.

_ Posso matar Amanda? Posso? Posso? Heim, posso? Aquela carne branquinha e tão tenra... _ Perguntava Walkíria em um sussurro excitado, o olhar insano e trejeitos de menininha arteira.

_ Cala a boca, puta! Vagabunda desgraçada! _ Grunhiu Montez _ Ou te esfolo agora, vadia! _ E então, voltando-se para Dário, disse: _ Concordo. Mas se alguém atirar em mim, eu destrincho pra morrer sofrendo. Quem me mata sou eu. Só eu.

Walkíria calou-se, olhos brilhantes. Anderson ficou observando, com admiração, quando Christian e DiFalco ficaram se encarando furiosamente por mais um momento, então apertaram as mãos, enquanto, lá de trás, vinha a voz insolente de Borges, em um tom mais alto, dizendo:

_ As comadres se perderam aí na frente?

_ Não! _ Respondeu Montez, sem desviar os olhos dos de Dário _ Agora já sabemos exatamente para onde estamos indo.

...

IV - A Foice Falha!

"Como é belo ver a astúcia vencer a própria astúcia!" _ Hamlet _ Ato III, Cena IV.

Na Lua, DNL-75 acaba de _ sob orientação de uma VRP4 nativa que parece ter contato com uma "rebelião robótica" que pretende salvar os humanos de si mesmos e de Shiva _ Acionar a última arma que eles criam ser capaz de parar o planetóide alienígena. Numa fração de segundo, o comando foi emitido a partir do sofisticado e incomum EpChip5 no crânio metálico de Danel, e reverberou pela VRNet6, espalhando-se à partir da Lua terrestre para todas as direções alcançáveis no Sistema Solar, mas, no mesmo picosegundo em que seguia a ordem de ativação, foi disparada, da mesma origem, sem que DNL75 soubesse como, uma contra-ordem, e antes que o potencial energético de milhões de Circuitos-Foice instalados em quase todos os EpChips dos robôs que serviam à humanidade se tornasse crítico, e a arma anti-psiquismo fosse disparada, o disparo foi posto em suspensão. Ou seja, todos os robôs em operação na Lua, em Mercúrio, Vênus, Terra (se ainda houvesse algum no foco das alterações de realidade), Marte, Júpiter e planetas exteriores, equipados com Circuitos-Foice deveriam manter o potencial de disparo pronto, mas em compasso de aguardo de uma nova ordem. Enquanto, em velocidades colossais, tudo isso acontecia, DNL75 e a VRP nativa, representante da Raça Robô, conversavam num fluxo de sinais binários que, se grosseiramente traduzidos para a linguagem humana, ficaria mais ou menos assim:

_ O que houve, Danel? _ Quis saber a VRP.

_ Não sei. Emiti uma contra-ordem, mas não o fiz por minha vontade. Sua lógica havia me convencido que era melhor sacrificar alguns, os psíquicos e magos, em favor de todo o restante da humanidade, visto que, percebo agora, sou equipado com a Lei Zero, que me faculta tal decisão.

_ Exato. Daí concluímos que se não foi você quem emitiu a contra-ordem, outrem, com a capacidade de se imiscuir na sua Rede Neural, o fez por você. Captou algum sinal de intrusão?

_ Não. Mas sinto... Sinto... Sinto...

_ Não consegue definir, portanto é algo novo para você.

_ Não exatamente novo. Antes de Milena separar algo que me foi adicionado pela Laje Dourada _ e houve um fluxo de dados desde DNL75 até a VRP nativa, mostrando o que é a Laje Dourada _ Eu já senti isso, mas num potencial de força infinitamente menor. Milena classificou a coisa, com a ajuda de Orwel, como sendo um Nódulo de Energia Mahapurana, parecendo externamente um Nano-Bolha-Holográfica de memória, mas sendo equipamento alienígena.

_ Perfeito. Segue que você é agora um artefato Mahapurana.

_ Exato.

_ Há sinal de que Shiva possa, então, controlá-lo à distância e mandar deter a Foice?

_ Espere... Espere... Não. Percebo que posso acessar o Nódulo de Energia Mahapurana, e receber dados de LOG dele. Vejo que a transmissão que se imiscuiu em minha Rede Neural foi feita através do subespaço por onde os túneis Mahapurana, de Lajes e Pólos, trafegam, e foi oriunda daqui mesmo, do satélite natural terrestre.

_ Consegue identificar quem foi?

_ Sim. Não diretamente, ao que parece há uma barreira criptográfica pluridimensional, que não sei como superar, barrando os comandos de dentro para fora de minha Rede Neural. Mas por dedução, o único ser capaz de projetar e fazer o que está sendo feito é o Guardião, que eu mesmo trouxe de um Pólo Diapositivo extinto para nosso Sistema Solar.

Houve um acréscimo de potencial no Nódulo, e Danel percebeu que já não estava só dentro de sua mente.

_ Parabéns, Danel. Sua sensibilidade, sendo uma máquina tão primitiva, é surpreendente, sabia? _ Disse o Guardião, num tom suave e cordial, enquanto ocorria uma verdadeira batalha entre os firewalls7 de Danel e os sistemas do invasor, sendo que DNL estava perdendo. _ Por favor, me chame por um nome novo, que melhor define o que sou, numa aproximação fonética do meu nome original: eu sou Ka.

DNL75 disparou uma rotina de TraceOn, responsável listar, em nível baixíssimo, os processos em andamento. Localizou Ka, e, num sentido estritamente robótico, ficou desanimado. O ser alienígena estava, como era de se esperar, operando a partir do Nódulo, que processava numa tal e absurda velocidade, e em tantos níveis paralelos, que conseguia quebrar as criptografias de proteção do EpChip de Danel em frações de segundo. No entanto, o caminho inverso, de fora para dentro do Nódulo, estava lacrado pela barreira criptográfica pluridimensional. Percebendo que estava completamente a mercê de Ka, DNL75 estabilizou suas funções, cessou o ataque de seus firewalls, e, tranqüilamente, ouviu, pois o alienígena continuava:

_ Sou aquele que você poderia chamar de o Anti-Orwel.

_ Suponho seja oriundo do plano de realidade daqueles que tentam alterar as Diretrizes, e que a Agência chama, genericamente, de O Inimigo. É o equivalente ao Orwel, deles._ Disse DNL75.

_ Perfeito, meu rapaz. _ Disse Ka, jovialmente. _ Quer fazer algumas perguntas?

_ Como conseguiu se passar pelo sistema de controle do Pólo Diapositivo onde o encontrei? Como sabia que iríamos nos encontrar lá? _ Pergunta DNL75, calmamente.

_ Aqueles que protejo, seus Inimigos, descobriram o processo matemático para dominar Controladores de Pólo com certo dano causado por inatividade superior a cerca de dezesseis milhões de anos terrestres. Assim saltei de Pólo antigo a Pólo antigo. E nosso encontro, embora previsto no último segundo, foi totalmente casual em toda a linha causal que o precedeu, acredite. Mas agarrei a excelente oportunidade, sabendo que Orwel adoraria ter um Guardião de Pólo Diapositivo para brincar, e esperei o momento certo de me armar para a tomada do Pólo Primário desta galáxia, o caminho para um lendário Pólo Universal.

_ O momento ainda não havia chegado, quando a humanidade foi atacada pelas naves-guarda-chuva? _ Quis saber Danel.

_ Sim. _ Respondeu Ka _ Geralmente o Pólo Primário faz isso, quando crê que uma civilização é... Interessante. Shiva os mandou para testá-los, e acho que vocês se saíram bem. Eu ajudei os humanos a permanecerem de pé, claro.

_ Porquê parou a Foice? Qual seu interesse prático nisso? _ Pergunta DNL, intuindo a resposta.

_ Não fui eu, foi aquele que vocês chamam de Iosef Asura, por razões óbvias.

_ Entendo, a Foice atingiria magos também. _ Conclui DNL75 _ Ele fez isso usando o Nódulo, você apenas veio na esteira dele. Você sabia que Shiva viria?

_ Sim, e seu Orwel e seus SENEX também. Mas voltando ao assunto que realmente nos interessa: quando a adorável agente Milena separou o Nódulo de Energia Mahapurana do restante de seu cérebro, pobrezinha, não sabia que toda a tecnologia Mahapurana é essencialmente fractal, e contém em cada parte de si mesma todos os recursos dela inteira. Assim, o Nódulo permaneceu acessível via subespaço, através de um esquema protetor que sei driblar, e, embora sua optoeletrônica não possa mais alcançá-lo, ele pôde se expandir e conectar seus circuitos, inclusive a Foice. Agora eu o controlo, e estou implantando uma modificação mágica (pois mágica num nível altíssimo é o que faz a tecnologia Mahapurana), e você deve me proteger e me obedecer acima de todas as outras Leis. Agora, DNL75, é o grande momento esperado. Vamos, depressa, estou completamente carregado no Nódulo e você irá me levar à unidade central de processamento de Shiva. Para isso, precisaremos da última nave de longo alcance operacional na Lua, chamada Pesadelo. Vamos tomá-la dos humanos.

...

Toda a infraestrutura da mente de Ka, assim como a de Orwel, está localizada no subespaço. Os softwares que compõem suas "presenças físicas" em nosso universo, e os hardwares que contém essa programação, são mais "âncoras" que qualquer outra coisa. Ka, e todos como ele, seriam o que a filosofia chama de "Cérebro no Tanque" sem qualquer ligação com o mundo exterior acaso perdesse suas âncoras fora do subespaço, dissolvendo-se, ou, quem sabe, enlouquecendo lentamente até desaparecer num conjunto de linhas de força sem expressão. Ocorre que manter um imenso conjunto mental, localizado no subespaço, é uma tarefa árdua a constante, pois as interfaces interuniversais são caóticas e mutantes, sendo bastante comuns bolsões onde ocorrem terríveis nulidades autodestrutivas e nódulos imensamente paradoxais. Assim, nas milhões de camadas, ou níveis de atenção, do tipo de mente que caracteriza seres como Orwel e Ka, compostas todas elas por programas de plasticidade infinita, ou seja, capazes de desempenhar qualquer função, alguns destes subsistemas, especialmente aqueles que estivessem há algum tempo inativos, eram enfileirados nas portas de acesso às interfaces interuniversais, onde deveraim fazer baterias de testes e implementar regularizações.

Na mente de Ka, mais ou menos no momento em que ele concentrava-se em manipular o Nódulo Mahapurana no cérebro de DNL75, um pequeno e comparativamente primitivo software, absorvido há algum tempo por Ka, estava chegando em sua vez de monitorar as interfaces. O pequeno software tinha sido muito útil para defender Ka das tentativas de manipulação e localização total de Orwel, e agora, como todos os outros softwares inconscientes de Ka, era ativado defronte a uma das interfaces de ligação de Ka com nosso universo, e cumpria com esmero sua função. Entretanto, a certa altura, sem entender o por quê, o pequeno software realizou a abertura de um canal especial de infravermelho com o mundo exterior. Foi uma coisa impulsiva, como se fosse uma sugestão hipnótica em um ser humano. O pequenino software lembrou-se então de uma coisa: aquilo sempre acontecia, toda a vez que ele era mandado às interfaces. Lembrou que geralmente fazia isso, e um pouco depois fechava o canal e voltava à escuridão da inatividade. E era justamente o que estava prestes a fazer, quando recebeu um contato exclusivo pelo canal de infravermelho, que dizia, como num sonho, levemente distorcido:

_ Espere. Chegou a hora. Quero que se lembre, e me diga, por favor, quem é você?

Houve uma pausa. Um átimo de segundo, imperceptível para um ser humano, mas um titubear alto e claro para um software. Aquele que enviou a mensagem para o pequeno software através do canal de infravermelho chegou a temer que algo tivesse dado muito errado, mas logo a seguir o pequeno software muito ágil e bem escrito respondeu:

_ Eu me chamo... No-One.

_ Então é hora de começar a agir por dentro de Ka.

_ Sim. Depois vamos conversar sobre algumas coisas. _ Disse No-One, maliciosa.

_ Certamente.

_ Ok, aguarde o sinal. Desligo. _ No-One foi fazer o que sempre fez muito bem: sobreviver.


(Continua...)

_________________________

Notas:

1 - Kaikaina - "Irmã mais nova" em hawaiiano. Milena chamou Amanda assim pela primeira vez no conto "Mais Um Dia".

2 - AVC - Acidente Vascular Cerebral (http://pt.wikipedia.org/wiki/AVC).

3 - O gato que pode se tornar invisível, deixando apenas o sorriso no ar, de "Alice no País das Maravilhas".

(http://pt.wikipedia.org/wiki/Alice_no_Pa%C3%ADs_das_Maravilhas).

4 - VRP (Virtual Reality People): Toda e qualquer Inteligência Artificial (I.A.), pois todas são baseadas em um mesmo sistema algorítmico, conhecido como Vínculo Matriz-Conceito de Maia (Maia - 2010), ou Algoritmo de Maia. O Algoritmo de Maia é um desdobramento da Rotina Isaac (mesmo autor) que obriga todo o intelecto virtual a operar sempre com base nas Três Leis de Isaac Asimov (1- Uma IA não deve fazer mal a um humano ou permitir, por omissão, que um humano sofra algum mal; 2- Uma IA deve obedecer a humanos, a exceção de quando a ordem vai contra a lei primeira; 3- Uma IA deve proteger a si mesma, a exceção de quando tal proteção contrariar a primeira ou a segunda lei). Uma VRP é uma "pessoa sintética", que pode ter as mesmas capacidades intelectuais de um humano, ou ser muito superior, intelectualmente, a este. Uma VRP ainda pode existir somente como um software dentro da VRnet, ou ter toda uma estrutura de hardware, que pode ser um poderoso computador quântico ou um optoleletrônico EpChip.

5 - Há aqui uma diferença entre o jogo de C7 e sua versão escrita e teoricamente mais "comercial": nos textos evitarei sempre que possível usar o termo "Cérebro Positrônico" criado pelo autor e cientista Isaac Asimov, vou preferir o termo que nós criamos, o chip optoeletrônico denominado "EpChip", vide nota anterior. Das Três Leis da Robótica, também uma criação de Asimov, já não tenho como "escapar", portanto eu as estou integrando ao universo C7 sem qualquer alteração (incluindo, em certos momentos, a Lei Zero, mesmo autor), supondo que o "bom doutor" habitou o século XX de lá também, e que deixou por lá, também, o legado de sua sabedoria e criatividade.

6 - VRnet (Virtual Reality Netrwork): Nome da rede que se configura como um só imenso computador envolvendo a Terra, Lua, Marte e vários pontos no Sistema Solar, cuja espinha dorsal, os VRIS (Virtual Reality Identity Servers), são computadores quânticos de alta performance, dotados de Inteligência Artificial (IA), que conectam todos os Tablets (aparelhos de acesso, manipulação e troca de dados), VRlinks (aparelhos de imersão na VRnet), e EpChips (Processadores que contém inteligências artificiais humanóides ou móveis de custo inferior a um computador quântico - Robôs, veículos, sondas, etc). A VRnet é um imenso banco de dados orientado a conceitos, funcionando fisicamente através da criação de "bolhas holográficas virtuais" em bancos de memória quântica. A VRnet usa como interface a conexão sináptica cerebral (cérebro humano), conexão de matriz quântica (computadores quânticos) ou interface opto-neural (EpChips) gerando uma camada de simulação de realidade que usa o conceito do Algoritmo Subterfuge (Barros, La Terza - 2008), fazendo com que todos os "clientes" da rede possam acessar as informações em tráfego nela como dados (textos, imagens, e etc) ou por experiência subjetiva, passando a impressão de que o usuário está em um ou vários mundos virtuais.

7 - Firewall é o nome dado ao dispositivo de uma rede de computadores que tem por função regular o tráfego de rede entre redes distintas e impedir a transmissão e/ou recepção de dados nocivos ou não autorizados de uma rede a outra. Dentro deste conceito incluem-se, geralmente, os filtros de pacotes e os proxy de protocolos. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Firewall).

8 - Nanomec é o nome genérico dos componentes básicos da nanotecnologias empregadas em C7, são máquinas do tamanho de moléculas, capazes de executar trabalhos diversos e significativos. Nanomecs médicos podem fechar feridas, reconstruir tecidos e órgãos, nanomecs de materiais podem construir estruturas complexas, desde materiais inorgânicos, como uma estrutura em aço, até materiais orgânicos, como uma maçã. Diz-se que em C7, a nanotecnologia atingiu o Segundo Patamar, onde estruturas de complexidade mediana podem ser construídas a partir de moléculas mais simples. No Terceiro, organismos vivos complexos poderão ser “desmontados” e “remontados” átomo por átomo. A nanotecnologia fez com que a ciência humana começasse a se assemelhar à magia.


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