REMANERE

REMANERE

Deuses de um Dia...

Autor: Wagner Ribeiro de Magalhães Silva

Adaptação do RPG original “Remanescentes” criado por Cláudio Augusto dos Anjos.


REMANESCER - [Do lat. remanescere, incoativo de remanere, 'parar', 'ficar'.] - V. int. 1. Sobrar, restar, sobejar: [Conjug.: v. crescer.]

ARMAGEDON - [Do lat. tard. Armagedon (gr. Armagedón, Harmagedón) cenário de uma batalha entre o Bem e o Mal que ocorreria no Juízo Final, de acordo com o Apocalipse [16: 14-16.] S. m. 1. Guerra total, aniquiladora; conflito e destruição de tal maneira vastos que impossibilitariam quaisquer outros. [Ger. com cap.]

Deuses de um dia,

o Homem é somente a sombra de um sonho (...)

- Platão

Excerto das Crônicas de Walter Alexander - General dos Generais da Primeira a Quarta Era de Armagedon:

(...)

Quisera poder lembrar daqueles dias. Quisera poder dizer a todos dos escuros acordos, das sombras que me cercam, das coisas que vi nascer e morrer naqueles dias. Não há por certo, disso tenho a mais negra certeza agora, um único ser vivo, nem mesmo os dragões no sul distante, que saiba o que houve antes do início da Primeira Era do Piedoso.

Escrevo das cinzas de um império que agora olha para o profundo abismo da extinção total, no que acho que escribas e historiadores certamente chamarão de o Fim da Quarta Era. Sei o que devo fazer: destruir a esperança.

Sei que meu Senhor planejou há muito este dia sórdido, e sei o que vai acontecer: devo escolher, entre meu amor, e a continuidade da espécie humana... É bem mais fácil do que imagina, se levar em consideração que aprendi, com a melhor colega física que tive durante todos esses anos, que na Teoria dos Jogos, cabe sempre a Alternativa Dupret, a terceira, quarta ou quinta alternativa: o ardil.

Mas eu falava do tempo, se é que houve, antes da Primeira Era do Piedoso. Desculpe, estou ficando velho demais, mesmo para o que os humanos de hoje chamam de semideuses.

Aqueles dias de ouro puro, como dizem os românticos. Dias de tecnologia pungente, como disse minha colega física, quando sabíamos mais coisas, muito mais coisas que os princípios de termodinâmica e os rudimentos físicos que temos hoje, quando nossos ancestrais nos legaram um mundo a beira da utopia tecnológica, e quando jogamos tudo isso fora.

Ao menos é isso que eu e alguns... Colegas... Com idéias divergentes... Achamos que era a época antes do Esquecimento Universal. Outros, mais místicos, acham que era uma época de grande quantidade de “energias mágicas” neste mundo, mas se este assunto lhe interessa sinto lhe informar que, até onde me recordo, muito além de General dos Generais, e Destruidor de Almas, eu sempre fui um homem de ciência. Nada mais posso lhe dizer sobre magias. Busque os escritos de Artur Zenack, aquele que é a Ave-Sombria, o Senhor das Sombras.

Sei que tudo ardia em chamas, todo o universo ruíra. A realidade partida em dor, fúria e forças descontroladas e desconexas. O destino era o confronto sem vencedor, a luta sem qualquer glória, pois não sobraria ninguém para cantar os feitos dos vitoriosos, nem eles próprios. Minhas memórias são vagas, lembro de correr por um arvoredo feio, escuro e retorcido. Lembro de querer mais que tudo recuar e fugir, pois sabia que corria a passos largos para a morte, mas não conseguia deixar de ir. Lembro de sentir uma dor no mínimo tão terrível quanto a que sinto hoje, o dia em que vou matar ou morrer frente à Diana Dupret. Lembro que as nuvens escureciam, e que chovia lama negra. Lembro do gosto de sangue, e do cheiro dele também, por toda parte, por sobre corpos, pilhas infindáveis de corpos. Morriam aos milhões naqueles dias sem memória. Morreram indigentes aqueles habitantes da Era de Ouro, pois nem sequer tivemos seus corpos para enterrar, que dizer de seus nomes e das histórias de suas vidas. Legaram para os sobreviventes como eu apenas farrapos de lembranças... Triste lembrar que morreram, sentir tanta falta deles, e sequer saber seus nomes.

Mas após os Dias Obscuros, despertamos nas Terras de Remanere, um paraíso criado por Nosso Senhor Piedoso Armagedon, o que observa, dia e noite, do alto trono da Torre de Armagedom, no centro de Remanere. Alguns fragmentos encontrados por meus estudiosos com o auxílio dos dragões afirmam que estas terras, antes do Evento Obscuro, chamavam-se Latinas, ou algo assim. Já não importa muito mais o nome que tinham, pois hoje todos a conhecem como a Terra dos Remanescentes de Outrora, ou simplesmente, Remanere.

Eu e os outros semideuses despertamos por graça do divino e piedoso senhor Armagedon, mil vezes maldito, que cercou as antigas terras Latinas com seu poder, criou aqui uma terra viva, cercada de sombras, mas viva, onde o que restou da humanidade cresceu e prosperou. Quando despertamos, Armagedon havia clamado por nós, os adormecidos, para lidar com um mundo de novas trevas, pois a humanidade que salvara, em dois séculos após o Evento Obscuro, havia se entregue a barbárie e ameaçava dar fim a si mesma. Lembro-me claramente de como estávamos confusos, e quanto me inspirou o ato nobre do calhorda ao nos trazer dos mortos, do sono, ou de qualquer outro inferno para “pacificar” aquela gente bárbara.

Nosso Piedoso nos disse: nesta terra sobeja, não permitirei a criação de armas de fogo ou tecnologias afins, nem mesmo serão bem-vindos entre os vivos aqueles que, por artes do destino, sabem como construí-las, e, num mundo em que um homem tem de se defender empunhando espadas e facas, eis meus semideuses. Mesmo fracionados em seu poder soberbo, ainda assim vocês serão páreo para muitos bárbaros juntos, meus Senhores do Destino. Vão, e devolvam a paz a Remanere, civilizem os mortais, com uso da força se necessário!

No discurso verdadeiro Ele, o Piedoso facínora, foi breve desse modo. Nada dos floreios das lendas.

Em poucos dias nos espalhamos: eu convocado para ser Neutron, o General dos Generais, da Força Pacificadora dos Primeiros Anos da Era de Armagedon. Diana (já sabíamos que havíamos nos amado antes do Evento Negro, mas também sabíamos que nos odiávamos assim que pusemos os olhos um no outro. Havíamos feito algo mortalmente ruim um ao outro antes do Evento Esquecido), a Senhora da Destruição, Lady Impacto, viajou para o sudeste, para reunificar tribos sanguinolentas de piratas e saqueadores. O jovem Reator, Senhor das Energias, cavalgou para o sul, acompanhado dos Senhores das Feras, incumbido de encontrar e despertar Dracon Flama Negra, o mais poderoso Dragão. Existem mil poemas sobre os feitos do cavaleiro Reator e sobre sua saga até o coração das terras frias ao sul, onde encontrou e acordou o Senhor da Incandescência, e este despertou seu Arauto da Incandescência, o homem Flama Negra. Para o leste a força esmagadora do Senhor da Guerra, Donovan, aquele cujo nome significa morte. Para oeste a insana competência na hora de subjugar e ferir do Senhor da Chama, Sumermain. Para norte foi Tiago, seu filho Artur, o Senhor da Floresta, e o Punho-do-Poder, Senhor da Força, entre outros. O norte foi um dos lugares mais terríveis e sangrentos de se pacificar. Não fosse a presença do nobre Senhor da Força, e de sua saga ali, onde, dizem os menestréis, ele perdeu seu dom de amar, muitos mais teriam sido crucificados, empalados, e mortos naqueles dias em que acreditamos que era nosso dever para com os mortais entregar muitos deles as garras frias do aço e da morte para poupar sua espécie da extinção. Tolos que fomos, crianças inocentes e obsedadas, no Éden, brincando de matar.

Houve claro outros feitos, outros nomes, e estão todos imortalizados, de Áquiles, o Senhor das Fortalezas, até a cruel mas muitas vezes bem-feitora Senhora da Profanação, Margreth Henzller, todos, todos eles estão em prosas e versos por todas as Escolas de Sabedoria, por todos os Registros Públicos e Bibliotecas de Remanere. Não falarei aqui de um por um dos semideuses despertos por Armagedon. Muitos já se foram nesta Quarta Era. Outros eu devo matar hoje. Não quero falar muito deles agora que me preparo para a guerra.

Levamos dez anos, dez longos, sangüíneos e conturbados anos, até pacificarmos Remanere, até os mortais nos erigirem templos nas “capitais” que mais tarde formaram os centros dos Reinos das Terras Verdes, ao norte, das Terras do Trovão, no oeste, das Terras de Ferro a sudeste, das Terras de Fogo, ao Sul, e das Terras de Gelo no extremo sul.

Havíamos construído ainda as Terras de Pedra, aqui mesmo no centro de Remanere, à volta da Montanha de Armagedon. Mas este povo deixou seu sangue em minhas mãos já na Primeira Era, quando se revoltaram e quiseram lutar pela posse da Torre do Senhor Piedoso, Criador de Remanere, e eu, Alexander, o General dos Generais, muito orgulhosamente marchei sobre aquela gente inocente e os reduzi a escombros. Alexander, o Destruidor de Almas. Tantas vezes maldito quanto seu Senhor tão Piedoso.

Os Reinos viveram em paz durante alguns anos, mas não para sempre. Finda a barbárie, algo novo e pior surgiu entre nossos “rebanhos” de mortais: a política gananciosa e virulenta.

Curioso, naqueles dias quando mesmo o Senhor da Força havia sucumbido ao apelo das trevas, naqueles dias em que os sangrentos Torneios das Divindades eram a forma de execução oficial de discidentes políticos e criminosos, atirados não a leões, mas a nós, bestas-feras semidivinizadas, nesta época vergonhosa, a Senhora da Destruição, a mais bárbara e aguerrida de todos nós, era quem defendia o Reino das Terras de Ferro, lugar mais “humano” e descente de Remanere. Lugar onde renasceu o conceito de democracia.

Os dias corriam ligeiros, era o meio da Primeira Era. Eu tinha minhas dúvidas de que Remanere pudesse se estabilizar social, econômica e politicamente. Mal sabia eu que se moviam, inexoravelmente, as engrenagens lubrificadas a sangue no submundo de Remanere. Hoje cada evento, cada revés, cada fato se encaixa no dia fatídico que marcará o Fim da Quarta Era de Armagedon. Talvez o fim de tudo que existe e pelo que lutamos tanto para perenizar.

É ruim morrer quando não se é sequer mortal.

Mas o pior foi ter de enganar e trair para salvar, e vê-los se perderem hoje na treva.

No fim só restará a treva.

(...)


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