Portas e Corações

RPG:C7

Portas e Corações

Autor: Wagner RMS

Milena piscou seu olhar azul. Estava incrédula. Realmente não podia acreditar que estivesse de volta ao Hawaii.

Filha de um policial catalão especialista em administração de segurança pública, e de uma engenheira de alimentos nascida e crescida em Maui, Milena Ramirez Martins, que recebera o nome da tataravó paterna, havia passado anos maravilhosos naquelas ilhas do Pacífico. Sua adolescência aconteceu entre o ginásio em Kihei e a luxuriante natureza daquele paraíso cuidadosamente conservado pela humanidade do século XXII.

Era 4 de outubro de 2145, segundo informou o seu acompanhante, quando o veículo aéreo robotizado planou sobre as areias claras, próximo a uma íngreme colina beira-mar, e pousou sobre uma lufada de ar de suas potentes hélices. No alto da colina, uma visão que extasiou a moça: a forma branca, alva como um sonho, aerodinâmica como a felicidade, de uma casa. Sua nova residência, com direito a praia particular e a imensa majestade do pacífico sob a varanda de madeira clara.

Foram seis meses que haviam ficado para trás quando a misteriosa agência, aparentemente governamental, a qual todos se referiam como Código-7, havia arrancado a moça de sua vida como policial da divisão de guarda robotizada do Rio de Janeiro, no Brasil, e a arremessado por quase todos os cantos do Sistema Solar. A cata de escaramuças com o que eles chamavam de Entidades Extra-Solares, ou alienígenas, por mais ridículo que isso possa soar a um povo que se considera a única raça inteligente e tecnológica deste canto do Universo, senão dele todo.

Milena, obviamente, em função de suas tarefas na polícia brasileira, é especialista em robótica aplicada, com destaque em unidades positrônicas. Os agentes-diplomatas, como a agência chama os recrutados, são especialistas em diversas áreas. Existem geólogos, engenheiros, especialistas em comunicação, em segurança, e bioquímicos, como Guilherme, um homem que foi recrutado para a força na mesma época que a moça, e que acabou se tornando o melhor amigo dela, dentro da vida caótica que levavam no Código-7.

Vigiados às 24 horas do dia por um sistema embutido em um computador de aparência absolutamente inocente que todos carregam no pulso, são observados em seus menores movimentos por uma Inteligência Artificial chamada Orwel, cuja presença fria coordena as ações dos agentes durante as missões, sempre de altíssimo risco e sempre envolvendo riscos muito maiores que os piores pesadelos de Ramirez. E se sobrevivessem, eram imediatamente enfurnados em bases subterrâneas que, muito embora fossem limpas e confortáveis, eram nada mais que prisões onde aguardavam serem úteis novamente.

Aos que revelassem a existência da agência a terceiros, ou tentassem fugir, a morte, rápida, mas dolorosa, pela corrosão quase total dos seus corpos ordenada por Orwel a qualquer momento e causada pelos braceletes, que em verdade estão profundamente implantados em seus braços. Muito embora os conectores possam ser retirados, distanciar-se mais que metro e meio do bracelete significa extermínio automático.

Sobrevivente em confrontos com predadoras formas de vida aracnóides alienígenas, com outros seres capazes de carcomer internamente o corpo humano e usa-lo como casulos e fantoches, com monstros gigantesco que respiram metano e falam por explosões elétricas, com microorganismos inteligentes que mergulhavam mentes humanas em alucinantes e paranóicas viagens oníricas, e com seres sem fim vindos de pesadelos ainda mais profundos e infinitos, o que enlouqueceria qualquer mente sã, a agente estava à beira de uma crise nervosa. Era humana. O físico de Milena havia suportado muito bem o estresse, militar treinada, uma belíssima e torneada guerreira de pele muito morena, olhos azuis incandescentes, cabelos negros e espírito suave. Mas a mente dela, e de quase todos os agentes envolvidos diretamente com as forças extra-solares, estava sucumbindo. Milena havia mergulhado, há quase um mês, em um processo depressivo que vinha debilitando-a além de suas forças. Isso sem contar o desgaste emocional de (descobrira durante as missões) possuir uma capacidade premonitória latente que a açoitava, sem aviso, com assustadoras visões do futuro próximo.

Seu corpo sobreviveria, mas sua parte essencial estava para se perder, talvez para sempre.

A agência havia investido tempo e dinheiro nestes agentes e não permitiria que eles se “esfarelassem” assim. Sem que Ramirez tomasse conhecimento, nem seus colegas, a cúpula administrativa do Código-7 havia deliberado, tirando das trevas do anonimato alguns de seus mais ilustres diretores, e chegado à conclusão que a pressão sobre os operativos deveria arrefecer um pouco, sendo-lhes oferecida uma possibilidade de possuírem algo o mais próximo possível de uma vida normal. Ocorre que naqueles dias estranhos, após anos de ausência, ondas de extra-solares entravam em sem número no Sistema Solar, e por isso a agência havia sido agraciada por generosa soma de recursos vindos de suas fontes governamentais ou não a volta da Terra e das colônias planetárias. Sendo assim, era fácil conceder o luxo a um determinado grupo de agentes de escolherem onde e como desejavam morar. Nada de mansões gigantescas, mas um certo luxo e algumas regalias eram possíveis. Milena lembrava-se bem do dia em que, exausta e desmotivada para sua série habitual de exercícios, dirigiu-se a Orwel pelo bracelete, dizendo:

_ Posso abrir a parte externa do bracelete e ver seus mecanismos?

_ Não.

_ Orwel, por favor, e se precisarem de concerto em plena missão? Eu posso fazer robôs positrônicos, certamente posso tentar entender a estrutura...

_ Não vai entender.

Milena, sentada que estava sobre sua cama, em seu alojamento asséptico, em mais uma base subterrânea, talvez a mesma do mês passado, já nem se preocupava em tentar discernir qual era, eram todas jaulas confortáveis, a garota deixa-se cair deitada. Ela ergue o braço e fica olhando seu reflexo na superfície negra e lustrosa de seu PDA 3Com, de onde brotariam, a um pedido seu, imagens holográficas tridimensionais fantásticas, esquemas de engenharia, estruturas de moléculas, um mapeamento de circuitos positrônicos talvez... Mas nada disso parecia interessar a moça, só o que ela via era a imagem de uma jovem de 25 para 26 anos, que ela esperava ainda ser atraente (Milena é tremendamente e sinceramente modesta em sua personalidade doce), mas que de certo estava exausta.

_ Estou envelhecendo depressa aqui... Sinto falta de meu laboratório, de meu trabalho, de minha família, de meus amigos, de meu querido amigo Daneel, de meu apartamento e...

_ Senhorita Milena.

_ Orwel, alguém já lhe disse que você tem uma mania feia de interromper os outros?

_ Desculpe, eu...

_ Você é ansioso e impaciente!

Silêncio.

_ Poxa, perdão. Fui indelicada... Pode falar... _ Disse ela, de fato preocupada em ter agido de forma grosseira. Contra o uso de termos chulos e adepta a idéia de que se você tratar bem a todos, todos acabaram tratando-a bem, Milena realmente sentia-se mal por atitudes suas que pudessem ser consideradas impensadas ou agressivas desnecessariamente. Mesmo contra uma máquina pensante que poderia decretar sua morte a qualquer instante. Milena é assim, assim é sua personalidade.

_ Gostaria de estar em algum lugar em especial na Terra agora, Milena?

_ Sim... Em qualquer lugar, menos aqui... Desculpe, mas estou sendo sincera...

_ Mas se pudesse escolher um lugar que considerasse especial?

_ Junto a minha família.

_ Impossível. Um lugar só para você, mas que fosse especial.

Ela senta-se na cama, está de shorts e camiseta, cruza as pernas e faz uma rápida careta, ainda está se recuperando de uma quase torção no tornozelo esquerdo na última missão, além de diversas escoriações que a esta altura já desapareciam. Milena repousa os cotovelos sobre os joelhos, cuidadosamente, e o rosto entre as mãos, fechando suavemente os olhos. Após alguns momentos seu rosto de menina se ilumina, apenas um pouco, mas o suficiente para que ela parecesse uma criança pensando em doces, e ela diz:

_ Hawaii.

Pois aqui esta ela. Sabia que a qualquer momento os pesadelos alienígenas poderiam recomeçar, mas sentia-se maravilhosa por estar ali. Estava querendo esquecer que a bolha de sabão daquele pequeno grande sonho poderia estourar de repente, sem aviso. E estava conseguindo. Despediu-se do agente que a acompanhara até ali:

_ Muito obrigada por me trazer. Pena que não me queira dizer seu nome!

O agente, um homem de seus quarenta anos, de têmporas grisalhas (claro, devido ao fato de desejar que elas fiquem assim, nesta época de milagres rejuvenescedores) fica olhando para ela, que, paciente, fica olhando para ele na esperança que o seu taciturno acompanhante de viagem até ali se tornasse, subitamente, simpático e falante. Pois ele suspira e diz:

_ Se eu lhe dissesse meu nome, ficaria pedindo a Deus que você me convidasse para entrar e tomar um chá contigo, Milena. E depois do chá ficaria pedindo às estrelas que essa mulher linda que você é pudesse ir a um restaurante comigo, beber vinho e dançar... Não podemos nos dar ao luxo de pedir tanto, quando somos apenas escravos, moça.

Ramirez, que havia enrubescido levemente enquanto o homem falava (seria mentirosa se dissesse que ele não era atraente), ficou sem saber onde colocar as mãos e onde por o olhar, que saltou dos olhos negros de seu interlocutor para o oceano, de lá para a areia da praia, e daí de volta para o homem.

_ Eu... Entendo. Também tenho medo de me relacionar com agentes em um nível além da amizade... Fico pensando na vida normal que jamais teria. Na impossibilidade de... Amar...

_ E quando os vemos morrer, Milena, isso marca mais do que uma cicatriz. Não cometa a bobagem de amar ninguém... Mas também não cometa a bobagem de ficar falando com um coroa triste. Vá, garota, sua casa é linda. Divirta-se! Tome um banho de mar por mim...

_ Fique. Você será bem-vindo, podemos conversar um pouco antes de você ir. Não gostaria de vê-lo partir assim tão triste.

_ Desculpe, Milena, mas nem você, uma das mulheres mais lindas que vi na vida fariam esse cara aqui esquecer... _ e sorriu para ela _ e eu não posso ficar, tenho um encontro com um lançador orbital em duas horas. Adeus.

Ela aperta a mão estendida do outro e sorri também para ele. Milena, movendo apenas os lábios, diz “boa sorte”, ao que o homem devolve-lhe uma piscadela. Ele já não parecia mais tão taciturno.

A agente ficou olhando enquanto o veículo ganhou céu. Girando em torno do eixo, ele apontou para o mar e partiu, ligeiro, com seu zumbido de vespa, sua turbina despejando lufadas de ar quente. Ela ficou olhando até a nave sumir no horizonte, e pensando que, ela não sabia dizer bem o por quê, mas aquele sujeito sobreviveria a sua próxima missão.

Súbito ela percebe que está com um certo medo de acordar e estar de novo na sua cela, dentro da base C-7. Mas o Pacífico, cálido, acaricia seus pés _ ela havia se aproximado da água ou já seria a maré alta?_ e a faz sair correndo, sem sequer dar atenção ao elevador, subindo aos pulos pela escada entalhada em madeira nobre que, em espirais graciosas, a levava para “sua” casa.

Foi um fim de tarde maravilhoso. Ela batizou o computador da casa de Ivy, em homenagem a sua cunhada que, antes da agência, era sua melhor amiga, e a tratava como a uma princesa. Casada com o irmão de Milena, Ivy era doce a atenciosa, uma loira miúda de olhinhos vivos e peraltas. Afastou a saudade da amiga e da família assaltando sua despensa e comendo montes de chocolates, muitos doces e guloseimas. Às vezes ela, à noite, logo antes de dormir, repetia um gesto de criança e agradecia a Deus por não conseguir engordar, visto o tanto que comia. Ivy preparou sorvetes com frutas tropicais e Ramirez os saboreou, quase meio quilo deles, em frente ao imenso tablet em sua sala de estar com vista panorâmica do mar. No tablet viu desenhos animados, novelas, e participou de um programa do tipo jogo da verdade, onde teve que responder a umas perguntas bem indiscretas, mas de bom gosto e divertidas.

Durante sua vez de perguntar descobriu que alguns vizinhos dali mesmo de Kihei estavam jogando, e ficou amiga de um casal que morava a uns três quilômetros de sua casa. Eles lhe disseram que haveria uma apresentação de danças folclóricas no centro cívico ainda naquela noite. Apaixonada que é desde pequena por danças folclóricas, Milena quase se convidou para ir com o casal, que a aceitou alegremente. Eles iriam com o filho e a encontrariam lá.

_ Eu possuo algum veículo, Ivy?

= Sim, senhorita Milena. Um modelo supercondutor Honda lux semi-utilitário.

_ Preferia que me chamasse apenas de Milena, Ivy.

= Pois então será assim, Milena.

_ Obrigada Ivy. Pode prepara-lo para mim para esta noite, lá pelas dez horas?

= Certamente.

_ Valeu, obrigada. Ah, alguém ligou para mim?

= Ainda não.

_ Se o Guilherme, também agente como eu, ligar, por favor, me avise, mesmo que eu tenha ido dormir, ta bom?

= Eu conheço o doutor Guilherme, Milena, e sim, eu a avisarei.

_ Obrigada, querida.

Ainda era muito cedo, e Ramirez ainda estava muito agitada, por isso resolveu experimentar tudo naquela casa nas próximas três horas que ainda tinha antes do encontro com os Wehemei, seu casal de amigos. E fez o possível: leu relatórios da C-7. Fez exercícios, em seu ginásio particular. Arrumou as ferramentas de seu laboratório de robótica (muito bem equipado para um laboratório residencial, diga-se de passagem, ela o adorou). Experimentou um terço do monte de roupas lindas que ela encontrou em seu quarto, em um armário luxuoso e branco. Comeu, comeu e comeu, e quando se sentiu cheia, tomou uns comprimidos para a digestão, e atirou-se ao banho em sua enorme banheira de hidromassagem ultra-sônica. Utilizou o sistema de tratamento de beleza facial para cuidar de sua pele enquanto, sonolenta, recostava-se na beirada da banheira e sentia todo o seu corpo vibrar carinhosamente. No ar, músicas suaves e encantadoras serviam de fundo para seu relaxamento...

Acordou com o som miúdo, mas insistente, da campainha de Ivy, que avisava faltar menos de uma hora para o encontro que havia marcado.

_ Puxa, que droga, eu dormi. Preciso correr!

E zuniu pela casa, nua como estava, apenas uma toalha envolvendo seus cabelos. Colocou o vestido singelo e bonito que havia escolhido para ir ao centro cívico, e maquiou-se levemente, como gostava. Escolheu uma bolsa pequena que combinava com o conjunto, e foi aos tropeções, caminhando para a porta de saída e colocando as sandálias, ao mesmo tempo. Desnecessário dizer que, por pouco, não tomba ao chão. Chegou até a porta e parou, respirando fundo.

= Não seria aconselhável retirar a toalha de seus cabelos, Milena?

_ Toalha? Ah, Deus! A toalha, claro, obrigada... _ Desembrulhou a cabeça, e se olhou no espelho _ Poxa vida, meu cabelo está horrível!

= Seus cabelos são muito bonitos e brilhantes, Milena. Não há nada de errado com eles.

_ Estão horríveis!

= Poderia explicar melhor para que eu possa entende-la, Milena?

_ Não sei ao certo, Ivy. Eles estão como sempre estiveram, lisos, curtos, sem graça.

= Gostaria de muda-los?

_ Sim, sim, sim. Você pode fazer isso?

= Não agora, mas posso chamar um especialista que virá mesmo a essa hora em aproximadamente 30 minutos.

Esperou. O especialista, um jovem cabeleireiro havaiano que, com um torcer de nariz disse a Ramirez que, de fato, o cabelo quase “romeuzinho” dela estava “super-sem-graça”. Fez um belo arranjo nos cabelos, e aplicou um “nano-tratamento” que faria os cabelos negros da moça atingirem o meio das costas em cerca de 30 horas, graças a máquinas microscópicas que se agarrariam a cada fio e, tendo em suas memórias a composição exata do cabelo original e o comprimento desejado, “teceriam” o novo penteado no tempo pré-determinado. Ao fim o cabeleireiro arrumou a maquiagem de Milena e a fez usar um vestido mais brilhante, com detalhes metálicos e azuis (para combinar com os olhos dela) e feito de fino polímero translúcido.

Sensual, charmosa e feliz, a moça entrou em seu carro e partiu para conhecer seus novos amigos. E ao chegar ao centro cívico, percebeu que, não fosse o novo vestido, estaria enrascada com o visual, já que todos estavam muito elegantes. Em pouco tempo reconheceu seu casal de amigos, e os saudou no dialeto local, como aprendera com a mãe há muitos anos.

_ Que belo sotaque! _ Exclama Kellia, esposa de Adock, e mãe do adolescente Menuiih. A jovem senhora saúda Milena de volta e a abraça.

Profundamente carente emocionalmente, Ramirez não consegue suportar e desata a soluçar dentro do abraço da nova amiga, chorando baixinho, ao que a outra percebe e a toma pelos braços, acariciando seus cabelos, enxugando suas lágrimas, e dizendo:

_ Mas por que chora essa minha amiga tão bonita?

_ Aconteceu alguma coisa, senhorita Milena? _ Pergunta, aflito, Adock. Ao que Kellia responde:

_ Nada aconteceu, Adock seu bobo, nossa amiga está emocionada, não é isso? Diga-me, o que causa essa emoção?

_ Alegria, Kellia... _ Diz a moça, acanhada com seu próprio choro _ eu estive num lugar muito distante e feio... Não gostaria de falar sobre esse tempo... Mas voltei, e estou tão feliz de estar aqui entre vocês hoje!

E seu sorriso foi tão sincero que Kellia só pode afagar seu rosto e dizer a ela:

_ Então se componha, querida, olhe quantos rapazes lindos já estão perdendo seus olhos em você! Vamos, o espetáculo já vai começar e, se for parecido com o do ano passado, você vai adora-lo!

E adorou mesmo. Um dos passatempos prediletos de Milena é dançar, e ela, como já dissemos, admira as danças folclóricas, tanto que sabe as danças havaianas, o flamengo espanhol dança um pouco, e, muito embora fique facilmente envergonhada com isso costumava, nas festas de fim de ano na delegacia em que trabalhou, arrancar suspiros dos colegas quando ensaiava a dança do ventre e suas variações orientais. Pois então hoje a moça encantou-se, maravilhada que estava com a habilidade incrível das pessoas no palco, verdadeiros artistas. Luzes, sons, ritmo e emoção.

Milena sentia-se viva! Para alegria dos homens na festa, que puderam vê-la emanando quase luz própria. Seu riso encantador, seus faiscantes olhos azuis, seu carisma doce e atraente, a faziam uma das moças mais visadas àquela noite. Isso sem contar o fato de que era nova na comunidade, o que a envolvia em um clima sedutor e magnético. E, de fato, nada diferente poderia acontecer, ela foi convidada um sem número de vezes a dar o prazer de uma dança atrás da outra. Recusou apenas quando seus pés já estavam ameaçando ficar doloridos. Dançou com quase todos os rapazes (muito delicadamente recusou o convite de algumas moças), e declinou de todos os convites para sair, namorar, passear, fazer amor, velejar, surfar, etc. Claro que um ou outro rapaz chamava sua atenção, um inclusive despertou seu interesse e, inteligente e envolvente, chegou a roubar-lhe um beijo. Mas a conversa com o agente, mais cedo, ainda ecoava em sua cabeça, e isso a fazia não se interessar por relacionamentos, tanto que, muito sem jeito e sentida por faze-lo, deixou claro ao belo jovem que não estava interessada em estar com ele novamente, pelo menos por enquanto. Sábio, o rapaz percebeu que seria tolice tentar insistir, e garantiu a conquista da amizade de Milena (na concepção dele um bom primeiro passo, visto que ficara tão honestamente interessado na moça que seria mentiroso se dissesse que nunca mais tentaria outra aproximação).

Durante toda a noite Milena observou que o jovem Menuiih, adolescente bonito, moreno, com brilhantes cabelos negros e olhos tão escuros e brilhantes quanto seus cabelos, não havia dançado com ninguém, e que, mesmo sendo uma rapaz muito atraente para as mocinhas de sua idade, permanecera só e isolado durante todo o evento. Preocupada, foi falar com a mãe do rapaz:

_ Kellia, o que houve com Menuiih, porque está tão só? Porque as moças de sua idade não o convidam para dançar, sendo ele um rapaz tão bonito e elegante?

_ Ele possui uma forma branda de autismo, querida. Mas mesmo brando esse autismo o impede de se relacionar normalmente com os outros, e as moças já o conhecem, gostam dele, mas sabem que ele é especial...

_ Mas eu pensei que o autismo fosse tratável.

_ As formas normais, sim. A de Menuiih é um tipo novo, que o médico dele disse atacar uma em cada 20.000 crianças. Mas fora isso ele é um rapaz maravilhoso, carinhoso, inteligente, em cerca de três anos concluirá sua primeira formação superior em genética aplicada de formas de vida vegetais marinhas.

_ Poxa, que legal. Ele deve ter no máximo uns 18 anos agora e já está se graduando?

_ Tem 17, completos a cerca de um mês. Sim, sabemos que, se a medicina não descobrir como ajuda-lo, teremos de cuidar dele por toda a sua vida, mas para mim e Adock ele é nosso presente dos céus. Temos muito orgulho dele. Sinceramente. Mas às vezes sofremos em pensar se ele percebe o quão só ele é...

Milena pousou a mão sobre o ombro da amiga, para transmitir-lhe forças, e teve bons resultados, pois Kellia colocou sua própria mão sobre a de Ramirez e sorriu, francamente.

_ Vou bater um papo com Menuiih. Mal nos falamos até aqui, e o quero como meu amigo tanto quanto quero vocês _ E se foi. Sentou-se ao lado do menino e puxou assunto:

_ Oi, Menuiih, posso sentar-me com você?

_ Sim _ foi a resposta rápida sem olhar para ela.

_ Quer dançar?

_ Não.

_ Me conte algo sobre você. Gostaria de conhece-lo e ser sua amiga, posso?

_ Pode _ e parou por aí, nada mais acrescentando.

Milena suspirou. De fato era difícil criar um canal com Menuiih. Foi quando percebeu o pequeno tablet em sua mão esquerda, sobre o qual o rapazinho desenhava um intrincado sistema de linhas retas e angulosas. A moça supreendeu-se comparando, quase inconscientemente, as trilhas desenhadas por Menuiih com mapas planos de seções de cérebros positrônicos. Havia até umas três ou quatro junções ali, talvez as coordenadas JN e DN, que poderiam eventualmente funcionar. Ela quase se riu da idéia, mas parou e analisou melhor o intrincado desenho. De fato já havia visto aquilo antes. Não, não eram mapas positrônicos, mas uma reprodução de técnicas ancestrais de pinturas sagradas. O problema é que os olhos de Menuiih, que a princípio pareciam erráticos, saltavam do tablet para os pés dos dançarinos, e de lá voltavam, ritmicamente.

A paixão por dança e seu conhecimento técnico na confecção de programas de trilhas e coordenadas positrônicas faziam dela quase uma especialista em padrões, os mais diversos. Afinal, a facilidade para identificar padrões não a havia permitido identificar o sinal emitido pelos vírus que enfrentaram no Pentágono, EUA? Pois ali estava uma criança tentando organizar o caos. O que parecia o estar deixando nervoso eram as centenas de pés bailarinos, as centenas de variáveis, agitando-se a sua frente. Sem pensar, com medo de arrepender-se, levantou e pôs-se à frente de Menuiih e, prendendo a respiração, começou a ensaiar uns passos bem na frente do menino. Na realidade começou a desenhar com os pés as coordenadas JN, mas aplicando a elas graça e leveza, tentando transforma-las em dança.

Sucesso! O menino sorriu e começou um novo desenho, este sim regular e preciso. Ao repetir o circuito, dançando, Milena fez Menuiih repetir o desenho, por cima dos traços anteriormente feitos. Depois de repetir os passos vinte e duas vezes, o rapaz deu-se por satisfeito com aquele nível de organização e parou de desenhar, inclinando a cabeça para trás e rindo, alto, um riso gostoso e melodioso, dizendo por fim:

_ Fantástico! Eu vi o real.

Mas já quase todos haviam parado e olhado para Milena e o rapaz, o que prontamente fez a moça parar de dançar e por pouco não se ruborizar. Acanhada, ela sorriu para todos e sentou-se ao lado de Menuiih, que a fitou nos olhos por uma fração de segundo e perguntou:

_ O que essa dança faz?

_ O cérebro de robôs, querido. _ disparou Milena, quase ofegante.

_ Bom. Ordeiro. Eu quero aprender...

_ Eu ensino.

Novamente outro lampejo de olhar. E o jovem tomou uma das mãos de Milena e beijou-a delicadamente, e a pousou de volta no colo da moça. Diante do ato, Milena apenas sorriu, encantada com o charme do seu novo amigo, e fez um sinal para Kellia, que parou de dançar com Adock e vieram ambos, sorridentes, para junto da amiga e do filho.

_ Acho que eu e Menuiih descobrimos uma nova vocação para ele, Kellia.

_ E qual seria?

_ Ele gosta de circuitos positrônicos...

_ Gosto _ Interrompeu Menuiih, arrancando um sorriso emocionado dos pais.

_ ... E vou ensina-lo, sempre que eu puder, os fundamentos da positrônica. Posso, amigos?

_ Pode, amiga _ Fez o rapaz.

_ Mas é claro que pode! _ quase bradou o pai.

Kellia estalou um beijo no rosto de Milena, que agradeceu com uma piscadela de olho. Pouco depois, após o fim do evento, despediu-se de seus amigos, esfuziante de tão feliz, e foi até seu carro. Logo ao entrar no veículo ele a avisou que seis rapazes tinham deixado gravado em sua memória recados que eram acompanhados de nome e “e-número” (equivalente ao telefone do século vinte). Isso a fez sorrir, e ela voltou para sua casa ouvindo desde francas declarações de interesse romântico e sensual, até um pedido de casamento. Rápidos os moços, pensou, divertida, rápidos demais para criarem algo sério.

Ao chegar em casa tomou um rápido banho e foi caminhar a beira mar, em sua praia particular. Estava tranqüila, fazia muito tempo que não havia a mínima criminalidade por ali, conforme soube. Estava envolta em um xale, e vestida apenas com um biquíni branco. Na verdade, apenas a tanga do biquíni, visto que crescera ali nadando no pacífico deste modo, muito natural para as pessoas dali, abraçar o pacífico de peito nu, talvez para senti-lo junto ao coração.

Ela largou o xale na areia aos cuidados de um pequeno robô flutuante e entrou na água tépida. Nadou por cerca de trinta minutos, e percebeu que estava de fato cansada, por mais que desejasse continuar a aproveitar sua liberdade, precisava dormir.

_ Ivy, pode me ouvir?

= Orwel me permite ouvi-la pelo seu bracelete e eu também estou disponível através de qualquer das unidades auxiliares, como é o caso do pequeno robô que está cuidando de seu xale, Milena.

_ Existe perigo se eu dormir aqui fora, Ivy?

= Orwel desaconselha em sua lista de recomendações para a senhorita. Mas acredito que, visto não ter sido uma ordem, e devido ao fato de não haver perigo de algo ultrapassar meu perímetro externo de segurança, acho que você pode sim dormir na areia. Gostaria que lhe providenciasse uma espreguiçadeira, Milena?

Não houve resposta. Milena, que havia ido até o xale estendido na areia, havia se deitado de bruços sobre o tecido e agora, lânguida, dormia profundamente, chegando mesmo a ressonar, qual gata preguiçosa. Suas curvas de mulher, morenas e perfeitas, banhadas pelo luar claro e mágico, e as ondas, fosforescentes, insinuantes em seu vai-e-vem suave, bem quase aos seus pés, como amantes desejosas de ter de volta sua sereia, seu fruto dourado do sol, criavam um quadro perfeito, uma perfeita mescla de sensualidade e inocência.

Ivy, sempre zelosa, providenciou para que um grupo de silenciosos robôs vigiasse ininterruptamente Milena, cuidando para que nada se aproximasse dela, nem mesmo um pequenino crustáceo que fosse. Ela teve uma noite longa de sono profundo e restaurador, cheio de sonhos alegres. Seu rosto de menina exibia, mesmo enquanto dormia, um pequeno, ligeiro, mas luminoso sorriso.

O Sol já havia se levantado fazia algum tempo, quando Guilherme, lá do Brasil, ligou para ela, fazendo com que Ivy a acordasse.

Mas aí começa uma outra história.


Fim...


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