O Tesserato

Iniciado no Rio de Janeiro, em 06-02-2008

O Tesserato

Autor: Wagner RMS


"O Universo é feito de histórias, não de átomos" _ Muriel Rukeyser (The Speed of The Darkness) e lema da Real Sociedade dos Escritores Fantasmas.

Dedico aos meus supersobrinhos, que suas almas sejam do tamanho dos Universos. Estes personagens são inspirados neles, em suas vidas, nos problemas e alegrias que encontram em suas jornadas. Acrescidos, claro, de uma razoável liberdade poética, pois afinal o que este tio mais quer com este livro é que eles se divirtam, muito!

[TEXTO EM PRODUÇÃO, ESCREVENDO, MUDANDO, MUDANDO OUTRA VEZ, PUBLICANDO E REPUBLICANDO...]

A Linha de Mistério e Fogo

_ Ela está olhando pra gente. _ Sussurrou o menino mais velho, num tom um pouco assombrado.
_ Fala sério. Ela ta com um pano por cima dos olhos!  Como é que tu viu ela olhando pra gente?
_ Shhhh! Fala baixo, Wallace, pô!
_ Cala a boca, moleque!
Eram dois meninos, iguaizinhos a todos os meninos que todos os homens foram um dia. Eram irmãos, e na idade que tinham aqui, no começo desta história, William com treze anos e Wallace com onze, viviam às turras, brigando o tempo todo, mas naquele esquema: se alguém, que não for eu, bater no meu irmão, vai se ver comigo! Eram meninos que viviam entre dois mundos _ por enquanto eram apenas dois _ o mundo de Rio das Ostras, uma pequena cidade litorânea, onde vivia a mãe deles, e o mundo da cidade grande do Rio de Janeiro, onde viviam o pai, a madrasta, a irmã, o tio e a avó. Sim, seus pais eram separados, e se alguém pergunta a um menino onde ele adora estar, raramente não será ao lado da avó, até mesmo quando a opção é uma praia, pelo menos assim eram aqueles dois. Então sempre que os irmãos podiam, passavam férias no Rio. E cá estavam, caminhando juntos, subindo uma longa rua que ia, para a direção de onde vinham os meninos, desaguar feito um rio preto bem na Avenida Brasil, estrada que rasgava bom pedaço da cidade, por entre um mar de casebres, casas, prédios e galpões. Os meninos iam comprar pipas, conversando baixo, num tom um pouquinho triste, sobre seus mundos partidos, um mundo com a avó e outro com a mãe, quando eles viram a mulher maltrapilha, sentada em uma pedra, na calçada logo a frente, examinando a parede reta e lisa do muro de uma casa, com minuciosa atenção. Antigamente, quando eram menores, os meninos decidiram que tinham medo de mendigos, de serem raptados por eles. Agora ainda ficavam apreensivos quando viam um, e apreensão em garotos geralmente vira curiosidade, e aquela mendiga era tão diferente, tinha uma pose, feito gente fina... Eles passaram caminhando, mas não apontaram para ela, já sabiam que não deviam fazer isso com ninguém, nem zombaram, isso nem pensar, apenas aceleraram o passo, olhando a velha senhora maltrapilha de canto de olho, e assim que dobraram uma esquina, suas cabecinhas surgiram timidamente, espiando, no fim do longo muro, que ficava justo na curva da rua. E foi ali que começou o papo lá do começo. Eles se cutucavam e diziam:
_ Parece uma daquelas feiticeiras de desenho animado. _ falava Wallace, o menor, arregalando seus grandes e expressivos olhos castanhos.
_ Eu acho que ela viu que a gente ta olhando ela. Ai, ai, ai. _ Disse o mais velho dos dois, William, que não sabia se ria às gargalhadas ou se tremia de medo e ansiedade _ Será que ela joga mal-olhado?
_ Não fala idiotice, moleque! _ Ralhou Wallace com o irmão. _ Ela nem percebeu a gente.
Foi aí que aconteceu a coisa mais esquisita. A velha mendiga, envolta em trapos curiosos que pareciam um dia ter sido um rico e trabalhado conjunto de vestido e manto, estava a uns bons dez metros deles, e os dois meninos falavam baixo o suficiente para não serem notados, tanto que na primeira vez em que William achou que a mendiga os tinha visto, na verdade ela havia lançado um olhar vago mais ou menos na direção deles, voltando em seguida a remexer em algo que trazia dentro de uns fardos sujos que mantinha no colo, e a examinar o muro em frente, com um  interesse incompreensível. Mas _ e isso foi mesmo muito sinistro para os garotos _ quando Wallace olhou para o irmão, para ralhar com ele, e quando William olhou de volta para Wallace, assim que o menor acabou de falar, os dois ouviram claramente a voz de uma velha, como se ela estivesse bem do lado deles, dizendo:
"Os dois deviam cuidar das suas vidas, e deixar as pessoas em paz!"
Eles ouviram isso. Ou algo muito parecido com isso. Ou acharam ter ouvido isso. Mas iriam passar o resto da vida jurando ter ouvido mesmo a mendiga falar de longe como se estivesse perto! E enquanto ouviam a frase olharam rápido para a mendiga, mas viram apenas a velha, cuja cabeça estava coberta por seu manto, olhando para eles. Na penumbra do manto, viram apenas um de seus olhos brilhando, o outro devia estar fechado. Mas a boca... A boca parecia estar sombriamente imóvel!
"Cuidem da vida de vocês, meninos intrometidos!"
E num estampido seco o reboco do muro trincou e saltou, os pedacinhos de massa desaparecendo, no entanto, um segundo antes de pegar na mulher, ela mesma também surpresa com o estalo!
Pois, ouvindo e vendo essas coisas, os dois irmãos só pararam de correr quando deram a longa volta no quarteirão, chispando feito dois foguetes, de volta ao apartamento da avó. Chegaram lá numa carreira doida, como se fugissem do diabo!

Rio das Ostras, Dois Anos Depois...
William ouvia o som rítmico e grave do funk sentado no banco de concreto, de frente para o mar, de costas para a algazarra de amigos que dançavam e cantavam, feito uma tribo de jovens índios agitados por tambores ancestrais, só que a barulheira primal saía de celulares e aparelhos de MP3. William _ agora  adolescente _ estava descansando, pois havia acabado de ser sua vez na roda de dança, mas também estava preocupado. Não sabia por onde andava o irmão, e Wallace provavelmente estava arrumando encrenca, o que iria aborrecer a mãe, e ela, de mal humor... Isso sem falar naquele papo que seu tio teve com ele, sobre a responsabilidade de ser o mais velho, coisa e tal. Wallace era um saco, mas William queria saber dele.
Balançou a cabeça, queria poder deixar para lá, mas a sensação de que precisava encontrar o irmão não o largava, e ele achou bom ir procurar o irmão.
_ Ei, Will, vai aonde? _ Quis saber uma garota muito morena, usando um uniforme de capoeira alvíssimo. A menina tinha cabelos negros, anelados, presos em um rabo-de-cavalo que começava a se desfazer. Com um sorriso largo e olhar tenso ela continuou: _ Vai atrás daquele moleque de novo? Desiste!
O rapaz, que já tinha dado uns bons passos para longe da galera, com suas pernas compridas e ágeis, olhou para trás dizendo:
_ Já desisti. Vou meter o pé pra casa!
_ Vai nada! _ Cismou a menina _ Já achô teu rumo, ta na escola, vai conseguir o estágio da prefeitura, vai ser alguém, diferente do...
_ Olha aqui, Deandra! _ Disse William, voltando e encarando bem de perto a garota, que não recuou enquanto ele dizia num tom zangado: _ Wallace também vai! Me deixa! Volta pra roda!
Os dentes da menina apareceram numa careta de contrariedade, seus olhos faiscaram, parecia que ia partir para a briga com o garoto dois palmos mais alto que ela a qualquer instante. Mas, de repente, algo aconteceu na expressão dela, rapidamente ela foi da raiva à fragilidade, e disse ao rapaz:
_ Não quero te vê na furada... só isso...
Como na idade de William as "defesas" contra essas artimanhas femininas raramente estão maduras, ele caiu, amoleceu, e, dando um passo atrás, foi dizendo numa voz mansa:
_ Pô, eu não quero brigar com você, Dê. Eu só preciso saber onde ta o meu irmão.
_ Deixa eu ir contigo.
_ Não, diz pra geral que eu já volto.
_ Olha, é a tua vez de novo, Will! Vem! Dança!
_ Eu tenho...
_ Tua vez, só essa, dança comigo... _ Os olhos dela brilharam, sedutores, quando Deandra frisou as próximas palavras: _ meu gato.
William ficou, e dançou, e riu, e depois de um tempo sob a atenção de Deandra, esqueceu um pouco seus problemas, esqueceu um pouco de Wallace, e se divertiu. Ele e os amigos e amigas da escola que curtiam dançar funk se reuniam naquela praça à beira da praia sempre que podiam, para agitar e trocar passos que aprendiam em bailes, Internet e programas de TV. Com seu molejo natural e corpo esguio, era comum William se destacar, embora no começo o rapaz ficasse tímido, agora se soltava, arrancando "urras" dos camaradas e aplausos e gritinhos excitados das garotas! E William estava tão entretido em deixar loucas as garotas que só deu pela falta de uma delas quando saiu novamente da roda de funk e viu Deandra chegando com os olhos arregalados.
_ Onde você tava? _ Quis saber o rapaz, no instante em que a moça o pegou pelo braço.
_ Fui procurar o Wallace pra...
_ O quê? Ta maluca garota? Você me prende aqui e vai atrás do meu irmão?
_ Já te falei, não quero te vê em confusão! Agora vem logo! _ Disse ela com urgência, mas baixinho que era só para o amigo ouvir. _ O Moycano ta machucado, não quis chegar aqui, deixei ele na esquina do muro da escola!
William não disse mais nada, saiu sem falar com ninguém e foi correndo atrás da menina, a cata do irmão. Wallace estava machucado!
Encontrou ele sentado num paralelepípedo, de costas para a rua, de frente para o muro branco da escola. Havia uma pequena mancha vermelha espirrada na alvura suja do muro.
_ Que que te aconteceu, cara? _ Quis saber William assim que chegou, puxando o irmão  pelo ombro. _ Ai, meu Deus, tu ta sangrando!
_ Oi, William, ta tudo bem... _ Respondeu Wallace com uma voz pastosa de que não, não estava tudo bem. _ Eu lembrei de uma coisa...
_ Caraca, cara! _ Berrou o mais velho _ Quem te bateu? Vô matar quem fez isso! Esse sangue no muro é teu, moleque?
_ Me juntaram na porrada...
_ Quem? Por quê?
_ Pô, moleque! _ Reagiu Wallace, a voz retomando o tom brigão e autoritário de sempre. _ Me bateram, e pronto! Eu comprei briga dum camarada meu! Cuspi no muro só de raiva! Agora não pergunta mais nada, e escuta!
William, que olhava do sangue do muro para Wallace e dele de volta ao muro, e fechava e abria os punhos na altura do peito ansiosamente, não sabia o que dizer, então só conseguiu disparar:
_ Fala moleque!
_ Tava aqui pensando... Lembra da bruxa do muro?
_ Quem te bateu?... _Repetia William, atônito.
_ Lembra da mendiga que abriu aquele rombo no muro? _ Insistiu Wallace, elevando a voz com impaciência.
William olhou para Deandra, com uma cara enfezada, mas de quem pede ajuda para entender o que houve com o irmão. A menina, no entanto, deu de ombros e disse:
_ Encontrei ele assim. Aposto que foram os valentões do terceiro ano!
_ Eu não tô maluco não! _ Repreendeu Wallace, irritado com os dois tratando dele como se estivesse drogado ou longe dali _ Me ouve, William! Lembra da mendiga do muro?
_ Lembrooo! _ Respondeu finalmente, com a voz exasperada, o mais velho. _ O que que tem isso?
_ Aquela maluquice que vocês inventaram... _ Começou Deandra, mas Wallace foi cortando:
_ Calaboca, garota, você não sabe nada! _ Sua voz estava dura feito uma lança de ferro, mas seus olhos ficaram subitamente rasos d'água.
O menino ferido desviou o olhar, o orgulho juvenil lhe doendo até mais que a surra que levou, por estar naquela situação, magoado, chorando. Ele odiava que as pessoas vissem ele assim!
No instante seguinte parece que ele ia se controlar, mas então Wallace explodiu em lágrimas furiosas e numa torrente de palavras incontroláveis, ele foi dizendo:
_ Esse não é o meu lugar! Eu queria poder abrir um buraco que me tirasse daqui! Preciso sair daqui!
_ A nossa mãe vai ficar furiosa! _ Disse William com uma voz engasgada, enquanto o irmão fazia que sim e dava uma risadinha nervosa, um pouquinho de sangue ainda manchando seus dentes. _ Vamos pra casa! _ Concluiu William.
_ A minha casa... _ Murmurou o mais novo, amarguradamente _ não é aqui...
...
E lá se foram os irmãos enfrentar a tempestade  de mal humor da mãe, Celma. William, mais calmo e o mais político dos dois, dava-se melhor com ela, já Wallace era o que possuía os nervos mais parecidos com os de sua mãe, acrescidos da cabeça dura de seu pai, daí ser o que vivia mais encrencado com Celma, que, a seu jeito, de quem teve uma vida difícil, os amava, e queria o melhor para os dois.
Mas, enquanto os irmãos seguiam em direção aos berros e talvez a uns safanões da mãe, deixavam atrás de si mistérios bizarros, pois a pequena mas cruel mancha vermelha na parede escorria de forma impossível. Um filete de sangue até havia apontado em direção ao chão, como deveria, mas então o líquido rubro começou a escorrer, ou melhor, a vazar, não para baixo, nem para fora, mas para dentro do muro. Ele não era simplesmente absorvido pelo cimento, o sangue vibrava e vazava, como se o ponto onde estava não fosse mais plano, como se o diminuto trecho da alvenaria se curvasse para dentro de si mesmo.
Ocorre, no entanto, que o estranho fenômeno não ocorria sem testemunhas. Sob cabelos negros e anelados, um par de olhos escuros observava aquilo, com a respiração cada vez mais tensa, mas quando ela fez menção de fazer ou dizer algo, já era tarde demais.
...
_ Por que não contou ao Will que foi lá enfrentar os caras por mim?
_ Ele ta afim de você. _ Respondeu Wallace, sem rodeios. _ Ele ia querer resolver isso!
Deandra aquela manhã encontrou com eles, na escola pública do bairro onde moravam, incomumente vestida. Menina de personalidade arredia, geralmente não primava por se preocupar muito com aparências. Tinha traços até um tanto rudes, mas era bem bonita mesmo assim, e naquele dia estava até provocante, nem parecia ela. Assim que William teve que ir assistir aula _ para ele, hoje, o primeiro horário não havia ficado vago como para os outros _ Deandra veio cochichar com Wallace sobre o problema do dia anterior. Estava aí outra coisa incomum, Wallace nunca tinha visto a menina cochichando segredinhos, tão franca e brava ela costumava ser.
_ Eu queria muito mesmo... _ "mesmo" pronunciado certo, ao invés de um sonoro "mermo", também era estranho, pensou o menino enquanto a garota falava quase ao pé do ouvido dele: _ ... Era saber se você fez aquilo ontem por mim por algum motivo especial.
_ Já disse. Foi por causa do meu irmão. E um pouco por causa de você também...
O menino até pensou que não seria nada mau ficar com Deandra, mas ao mesmo tempo em que a proximidade da bonita garota mais velha mexia com ele, era estranho pensar nela daquele jeito.
_ Somos amigos... _ Disse Wallace, incerto a princípio, mas encrespando-se a seguir: _ E William ta afim de você, garota!
_ E você?
_ Tô afim de outra.
_ Quem? _ Quis saber Deandra.
_ Ah, qual é. Isso é parada minha! E chega de arrumar problema, garota. Ontem já foi um inferno lá em casa!
_ Apanharam? _ Perguntou a menina, deixando cair por um momento a máscara de sedutora, com uma expressão consternada no rosto.
_ Dessa vez não, mas eu vou embora, nem que eu passe perigo, mas vou pra casa da minha avó.
_ Não faz isso. _ Murmurou a menina, tentando reassumir o jeito provocante sem sucesso, pois parecia mais tensa e ansiosa que sedutora agora, como se estivesse se atrapalhando com algo que precisava fazer.
_ Eu vou dar meu jeito. _ Murmurava também o garoto, mais para si mesmo que para a moça ao seu lado. _ Deus vai me ajudar.
_ Ei! Wallace! Se liga, Moycano! _ Gritou um outro estudante, Marconi, de uma série mais adiantada, que só falava com Wallace quando precisava de um contato com as garotas das séries anteriores que lhe interessavam. Já Wallace mantinha camaradagem com o sujeito para evitar um pouco das perseguições dos alunos mais velhos. Sem esperar mais do que um olhar de Wallace, Marconi foi passando e berrando, atrapalhando a si mesmo de ficar incógnito: _ Soube que tu foi defender essa ai ontem. Agora quem ficou maluco foi teu irmão! Foi peitar o cara que te socou! Vai salvar a vida do teu irmão, lá no ginásio! Mas não fala que fui eu que avisei não, prego!
De um pulo, tanto Wallace quanto Deandra correram, ziguezagueando entre os barulhentos grupos da alunos no pátio da escola, em direção a quadra poliesportiva. O menino xingava a imprudência do irmão entre os dentes, enquanto corria feito louco para tentar evitar que William apanhasse mais do que ele dos mesmos caras.
Mas antes que pudessem chegar ao ginásio se surpreenderam com William vindo as carreiras de lá e gritando:
_ Corre! Vaza! Corre, Wallace! Vazaaaa!
Quando estavam os três correndo juntos desesperadamente para longe da quadra, Wallace, ombro a ombro com o irmão que ria as gargalhadas de tão nervoso, perguntou:
_ Que que tu fez, moleque?!
_ Subi nas arquibancadas! _ Berrou William num fôlego só, os olhos cheios d'água de tanto rir. _ E mijei neles!
...
Wallace sentia câimbras no rosto, que queria se espichar em um largo sorriso, mas não podia parecer satisfeito de jeito nenhum! Sua  mãe só faltava disparar raios pelos olhos de tão furiosa, ela gritava tanto que os vidros das janelas da pequenina casa onde moravam vibravam. William, ao seu lado, tinha um olho roxo e levava ambas as mãos a boca, tentando parar de rir de nervoso. O próprio Wallace também estava coberto de escoriações, da fuga dos mijados. O esporro que levavam agora da mãe era devido a uma quase expulsão do colégio por causa desta arruaça, e envolvia frases do tipo "você quer me enlouquecer! Quer me matar! Quer se arruinar e levar teu irmão junto!", ou "o que você quer da vida, Wallace!?", temperadas com umas sacudidas e safanões. O menino mais novo chegou a pensar em gritar de volta com a mãe, mas quando a mãe disse "não dá pra viverem juntos! Que inferno! Você vai ficar com teu pai, Wallace!", fez o garoto se calar, e ficar naquele estado de querer rir sem poder.
...
William estava se sentindo esquisito. Era bom ficar um pouco longe do encrenqueiro do seu irmão, o menor era um pé no saco, e ainda por cima vivia brigando com a mãe! Mas... Era estranhamente triste ver Ace partir... Sabia que não era para sempre. Sabia que se veriam sempre nas férias. Sabia disso tudo, mas queria ao mesmo tempo que o irmão fosse embora logo morar com a avó, e também que Wallace ficasse em Rio das Ostras.
Naquela manhã de sábado, a despeito destes sentimentos, ajudou o irmão menor a fazer as malas. Na verdade as malas eram a mochila surrada do colégio e uma velha sacola de viagem.
_ Ooo, eu vou-oooo, ver a vóvóó. _ Cantarolava Wallace, em uma melodia maluca inventada por ele mesmo, enquanto enfurnava mais uma camiseta, a de seu time de futebol, na mochila já abarrotada. Percebendo o irmão mais velho muito calado, o menor implicou, dizendo: _ Coé, Will, se alegra, vai se livrar de mim!
Imediatamente o mais velho emburra a cara, joga a bolsa de viagem que estava segurando no chão, e sai do quarto, mas Wallace vem atrás dele, apaziguando:
_ Cara, não fica com raiva, pô! Tava zoando! Valeu por ficar aborrecido por minha causa, de eu ir embora. Mas... _ E Wallace olha em volta para ver se a mãe podia ouvi-lo, antes de concluir: _ ... Eu tô felizão. Era isso que eu queria mesmo.
_ Sai, moleque! Tô feliz por você, juro. _ Disse William, com sinceridade. _ E por mim, que não vou mais tomar esporro por tua causa! Nem ver a mãe quase morrendo de raiva das paradas que você apronta!
Daí os irmãos riram juntos, conversando e lembrando de suas "aprontações". E William ajudou Wallace, que não queria ser ajudado, a levar a bolsa de viagem até a pequena rodoviária na praça, junto com o bom mas quieto padrasto e a mãe deles, sempre agitada, que tagarelou o trajeto inteiro dando ordens e conselhos para que Wallace se comportasse bem. Por fim, ao lado do ônibus de viagem que levaria o menino para o Rio de Janeiro, Celma disse:
_ Mamãe te ama. Se cuida, e me liga sempre. Manda beijos pra sua vó e pro teu tio.
E Wallace fingiu constrangimento quando ela agarrou seu rosto e beijou suas bochechas, mas não conseguiu deixar de dar nela um forte e demorado abraço.
Alguns amigos vieram se despedir, uns três ou quatro gatos pingados com os quais cruzaram pelo caminho até ali. Wallace não esperava que viessem nem mesmo esses, mas, enquanto a mãe dava conselhos ao motorista do ônibus para ficar de olho nele, sentindo falta de alguém no grupo de amigos que veio se despedir dele, Wallace murmurou para o irmão mais velho:
_ Deandra sumiu mesmo, heim, Will?
_ Ela ta evitando a gente desde a última confusão. _ Respondeu William _ Ontem eu soube que ela  nem foi ao colégio. Ela ficou bem sentida com tua partida, deve ta afim de tu.
_ Sou pirralho pra essa mina, não fala burrice. O lance é contigo. _ Respondeu Wallace sem conseguir parecer tão convicto quanto gostaria.
_ Ela é só pra pegar! _ Disse William, rindo com um falso desdém.
_ Fala assim dela não, ô moleque! Mentira tua, que eu sei que você gosta dela! _ Ralhou o menor, e acrescentou: _ Vai na casa da garota depois daqui, ver se ela ta legal, falou?
_ Falou. _ Prometeu o mais velho, desviando o olhar.
Daí em diante a partida de Wallace foi acontecendo rápido. Ele se despediu dos colegas, abraçou o irmão, despediu-se do padrasto _ que lhe deu um dinheirinho para emergências no caminho ou para um lanche quando chegasse ao Rio _ e abraçou mais uma vez sua mãe, que lhe disse, alto o suficiente para William também ouvir:
_ Queria ter certeza pra contar, mas acho melhor dizer agora, parece que vocês vão ganhar um irmãozinho. _ E tocou com suavidade a própria barriga.
Os irmãos se entreolharam e sorriram, enquanto o padrasto parecia ficar vermelho e sem jeito, olhando para o painel com os destinos dos ônibus com súbito interesse.
Wallace ainda sorria francamente, apesar dos olhos marejados, enquanto acenava da janela do ônibus que pegava estrada.
Uma hora depois William ainda sorria, tocado pela notícia do novo irmão, enquanto pedalava, encarrapitado em uma velha bicicleta, em direção ao bairro mais afastado onde morava Deandra.
Infelizmente, no entanto, o seu sorriso se foi quando descobriu que a amiga tinha fugido dos pais adotivos e desaparecido, deixando apenas uma carta onde pedia perdão a família adotiva e explicava que precisava tentar encontrar seus pais verdadeiros, onde também se despedia de uns poucos amigos, especialmente de William, dizendo-lhe, enigmaticamente, que havia tentado a todo custo evitar aquilo, mas que agora "alea jacta est". Intrigado, o rapaz perguntou a dona Rosalma, mãe de criação de Deandra, se ela sabia o que queria dizer aquilo, mas a mulher, aturdida, disse apenas que parecia latim, uma língua antiga, e tomou de volta a carta da menina, dizendo que a polícia talvez precisasse dela.

Assinatura Dissonante
Isaac, o irmãozinho de William e Wallace, tinha medo de algumas coisas, afinal tinha apenas um ano e meio. Mas, curiosamente, não tinha medo do escuro, pois havia fadas que brilhavam, só para ele, no escuro. E elas falavam com ele, contavam histórias, ou entoavam canções, e sempre queriam saber dos seus irmãos. Hoje, no entanto, elas queriam que ele fizesse algo. Queriam que ele saísse de seu quarto, e elas o ajudaram a deslizar da cama em que tinha ido dormir no abraço de sua mãe, de tal modo que ela não despertasse. O pai de Isaac estava trabalhando, dando plantão na cozinha  de uma pousada.
Brilhando agora com uma luz mais visível e intensa, as criaturinhas de aspecto sobrenatural  iluminaram o caminho de Isaac, para que ele cabriolasse engatinhando pelo chão em segurança até o outro quarto, menor, onde dormia William. Ali elas voltaram a incandescer com a luz morna que só os inocentes podiam ver, menos uma delas, que aumentou seu brilho, chegando a irradiar tal fulgor que quase despertou William.
Quem passasse aquela hora da madrugada em frente a casinha acharia que alguém estava brincando, perigosamente, com fogo lá dentro.
Mas a fonte daquela chama, ela própria um fogo antigo, guinchou em um trinado contido de dor, e fez de si mesma a Linha, um rasgo  entre mundos, de onde foi entregue a Isaac uma coisa que não era feita de matéria palpável, mas que ele, inocente das regras, pegou facilmente, e até mesmo brincou com a coisa mutante. Súbito, no entanto, suas fadas começaram a adejar em torno de suas mãos, e guiaram Isaac até William.
...
Deandra, é claro, sabia desde o princípio que não conseguiria, sua inimiga tinha trunfos demais nas mangas, mas ao menos tinha a certeza de que tentou impedir tudo aquilo. Pelo menos enquanto acreditava que evitar os acontecimentos seria o melhor. Mas nem ela, uma Zeladora, podia impedir a História de acontecer!
A gritaria dos invasores tentando alcançar e talvez matar Deandra era intensa, mas não conseguia distrair sua concentração. O suor lhe escorria pelas faces enquanto manipulava o velhíssimo Predestinador na câmara de conexão da fortaleza em ruínas. Mas, apesar da fúria daquele momento, uma parte dela divagava e lembrava de por quê foi parar ali. A assinatura dissonante daqueles dois, provavelmente, já havia remexido e alimentado de tal jeito a malha de Caos entre todos os Versos daquele Multiverso, que não havia mais volta. Certamente, Deandra pensara antes de saber da incrível verdade, havia sido a dissonante dos garotos que teria Colapsado a então misteriosa Beatriz em um ser real.
A realidade, naturalmente, era muito mais assombrosa.
No início a enigmática Beatriz havia sido materializada em uma inimiga astuta e sagaz, que estava sempre um passo a frente dos Zeladores, que, hoje em dia, contando com Deandra, não passavam de uns duzentos e poucos. Duzentos contra uma, e ainda assim a real-neófita Beatriz sozinha havia ludibriado a todos, entrando sem qualquer controle em diversas Linhas, alterando a história de alguns Versos, e, terrível, terrível, até mesmo causando a morte de um homem de um Verso longínquo, Apolônio Q'zendas (um homem real, com nome, uma vida, e sonhos) que a neófita arremessou em uma Linha Morta!
Considerada a pior inimiga enfrentada pelos Zeladores remanescentes nos últimos quinhentos anos, a neófita foi caçada em todos as Linhas Vivas acessíveis, em muitos Versos, até que, há uns dez anos, Deandra, um tanto desconfiada da facilidade da captura, encurralou Beatriz na extremidade de uma Linha antiga, na fronteira de um Verso posto em êxtase pelo Sistema, inacessível, irrecuperável. Mas, de algum modo a neófita fez Deandra entrar em Queda, despencando-a, com toda uma persona criada em detalhes para a aprisionar, em um Verso qualquer, em um mundinho simplório no cantinho de uma galáxia comum, no lugarejo chamado Rio das Ostras. Lá chegando, assim que Deandra abriu os olhos em sua nova vida, Beatriz se projetou para a mente da Zeladora e lhe disse como e quando, provavelmente, conheceria dois meninos, e ao ver os pensamentos da outra ponderando sobre tais garotos enquanto, sorrateira mas não desapercebidamente, Deandra tentava apreender o significado deles da mente da inimiga, Beatriz foi dizendo:
_ Finalmente, uma Zeladora que promete. Mas você precisa entender por si mesma, e decidir sozinha se deve me ajudar com os velhos Artefatos.
A neófita falava com uma calma que destoava da tensão em seus lindos e grandes olhos escuros, emoldurados por um rosto de moça redondinho e belo, com cabelos praticamente negros descendo em ondas por suas costas e terminando em sedosos cachos, quase em sua cintura. Ela possuía a aparência de uma jovem, clara, bela mas astuta bruxa que dizia:
_ Quando a Zeladora aí começar a entender a realidade das coisas, eu volto. Enquanto isso tenho que manter o outro longe daqui, e seus colegas Zeladores longe dos meus planos.
Deandra chegou mesmo a jurar vingança, mas a persona que era sua vida naquele Verso a dominou, deixando-lhe apenas a certeza de que jamais deveria deixar os tais garotos saírem daquele mundo. E, perdida na persona, guiada por instintos, Deandra sentia compulsão em manter os garotos próximos. Quando soube do estranho encontro dos garotos com a exótica mendiga no Rio de Janeiro, instintivamente, quase em pânico, fez de tudo para manter os dois longe da metrópole.
Agora, ironicamente, ia em direção contrária e havia fechado uma conexão com a manopla direita do Predestinador em William e se preparava para sincronizar a dissonância dele com a de Wallace, na manopla esquerda, e, se ficasse convencida de vez com o resultado, iria agir contra tudo em que os Zeladores sobreviventes acreditavam hoje, e uniria os dois a Beatriz!
...
Giovanna, meia irmãzinha de William e Wallace, do alto de seus seis aninhos, já até havia se esquecido delas, as fadas.
Despertando no quarto de seus pais no Rio de Janeiro pouco depois de Isaac lá em Rio das Ostras, Giovanna achou que havia acordado por si mesma, por causa de uma vontade de ir ao banheiro.
Saiu silenciosamente de sua cama, que ficava ao lado da dos pais, um pézinho atrás do outro, e abriu com cuidado a porta sanfonada do quarto, e, quando chegou bem em frente a porta do banheiro, percebeu, fazendo uma carinha engraçada, que não estava com vontade de ir ao banheiro, e que havia visto algo com o cantinho dos seus olhinhos azuis, quando passou pela sala.
Virou-se, lentamente, os cabelinhos louros começando a se arrepiar. Mas, quando olhou para trás, sua expressão assustadiça mudou, primeiro para dúvida, e depois para uma diversão extasiada.
_ Fadas... _ murmurou a garotinha, alegremente, adorando aquilo, como se estivesse revendo velhas amigas muito queridas. As cinco luzinhas dançando no ar, chamando por ela.
...
Por mais de um ano _ a Zeladora se recordava agora, enquanto brigava febrilmente com a manopla esquerda do velho Predestinador _ ela tentou se libertar do Verso aonde foi aprisionada, mas só podia clamar por socorro quando conseguia se isolar completamente. Só deste modo a persona que ela vivia naquele Verso cedia lugar a sua verdadeira identidade, mas ainda assim sua mente não alcançava os outros Zeladores.
_ Deandra. Pare de devanear. _ Disse Beatriz ao lado dela, vestida em seu rico traje imaculadamente branco, os dedos cheios de jóias mutantes e hipnóticas, e a voz macia como as patas de um gato. _ Logo as crianças-zero vão entrar. Eu perderei minha chance, você, pode perder sua vida!
_ Estou tentando! _ Disse a Zeladora, pingando suor e lutando com a velha e desregulada máquina. _ Essa coisa deve ter uns dez mil anos, no mínimo! E, droga, se acha que pode fazer mais rápido, pode vir!
_ Bem que eu gostaria de... _ Mas uma forte explosão, não muito distante dali, abafou as palavras de Beatriz, e fez passar por baixo da maciça porta de metal do cômodo em que estavam um rolo de fumaça negra. Imediatamente Beatriz gritou:
_ Não perca eles! Vou distrair os zeros!
Ela sequer precisou abrir a porta, atravessou correndo a parede mais próxima, como um fantasma, e, momentos depois, Deandra começou a ouvir rugidos terríveis, de alguma fera medonha, e gritos de horror e fúria, vindos de algum lugar não muito longe.
Voltando os olhos para o Predestinador e deixando as imagens do outro Verso e da inocente Giovanna preencherem suas retinas, Deandra pensou: "maldito Tesserato! Saiu do esquecimento para botar o mundo de pernas pro ar!", Mas, apesar do resmungo mal humorado, ela sabia... Sentia... Que um Zelador deve e pode confiar cegamente em um Tesserato.
Quando Deandra viu o apelo e o sangue de Wallace abrirem uma Linha, e o líquido vital ser engolido pela passagem entre os mundos, ficou pasma, nunca tinha visto um nativo abrir uma Linha intencionalmente.
Por instinto, também, ela usou seus conhecimentos de Zeladora: tudo o que existe nos Versos deixa uma "assinatura" na estrutura da Realidade. E lá estavam as assinaturas dos meninos, mas... Eram dissonantes! Eram dissonantes!
...
Giovanna ganhou um presentinho das fadas, um brinquedo que mal podia ser pego, que mesmo bem preso entre os dedos, parecia rolar para dentro e para o lado, para um instante antes ou depois, e, assim, a menininha mal podia carregar o exótico objeto. Fazia cócegas, e ela dava risadinhas contidas. No cantinho da sala seu irmão, Wallace, ressonou e se mexeu sobre um sofá-cama.
A menininha tapou a própria boca com uma das mãozinhas miúdas, e quase deixou a brinquedo cair, para desespero das fadas, que acudiram Giovanna em frenesi. Além deste universo, Deandra rilhava os dentes!
Talvez, pensou a garotinha, fosse melhor ir para a cozinha brincar, para não acordar ninguém.
...
A mente confusa da Zeladora, por conta da sua persona de então, tentou até mesmo seduzir os dois meninos dissonantes, mas finalmente Beatriz Arrebatou Deandra daquele Verso. E, por cerca de um ano, a Zeladora ficou naquele estado de quase insanidade em que alguém fica quando não é dissonante e quando é arremessado numa persona sem nenhum preparo. Durante esse ano, Deandra odiava Beatriz e Beatriz cuidava de Deandra. E quando o espírito da Zeladora emergiu do Caos, sua inimiga esperava por ela naquela mesma sala, de uma fortaleza semidestruída. Quando Beatriz lhe estendeu a mão, e Deandra não pôde tocar nela, as mãos passando uma por dentro da outra, a Zeladora soube que não estava diante de uma neófita, mas de uma lenda.
_ Droga! _ Praguejou a jovem Zeladora espantando as reminiscências, quando sua pequena ajudante no outro Verso quase derrubou a extensão do Tesserato de Wallace, com medo de acordar o irmão.
Enquanto Deandra colocava de volta na mão de Giovanna a extensão, um tremor sacudiu a sala, e a escala do enfluenciômetro do trepidante Predestinador chegou quase a zero.
Com um grito de frustração a Zeladora percebeu que Giovanna escapava, que caminhava para longe do alvo, em direção a outro cômodo do apartamento.
Dando um chute com o pé direito, Deandra acionou o pedal de amplificação, e girou rapidamente o tronco, com o braço esquerdo estendido, como se estivesse fingindo voar, para guiar, com a ponta dos dedos da manopla esquerda, as sondas real-luminosas atrás da menininha! A outra manopla continuava firmemente fechada e travada em William, que ressonava, inocente de tudo aquilo, com Isaac agora também adormecido ao seu lado.
_ Botei eles pra correr! _ Foi gritando Beatriz, enquanto entrava ligeira através de uma parede. _ Mas são selvagens supersticiosos! Vão derrubar a fortaleza! Encontraram Artefatos. Vamos!
_ Estou quase! _ Gritou de volta Deandra, enquanto as paredes em torno de ambas rangiam e rachavam, e a poeira dos séculos caia do teto de rocha cinzenta. _ Pode ir!
_ Não! _ Cismou Beatriz. _ Você vem comigo e vai viver, Zeladora!
_ Você mesma falou, Beatriz! Não vou viver muito tempo se o outro alcançar esses garotos primeiro! _ Respondeu Deandra, olhando fixamente, por um momento, nos poderosos olhos do Tesserato.
_ Você... _ Disse Beatriz, apesar de todo o seu poder pela primeira vez parecendo insegura. _ Então você confia em mim?
_ Você é um Tesserato. _ Foi a objetiva resposta da Zeladora, que deu de ombros, dessa vez sem tirar os olhos do aparelho que operava.
Mal contendo um enigmático sorriso, Beatriz retrucou, com firmeza:
_ Então termine seu trabalho, Zeladora. _ Outra explosão, mais intensa, ao término da qual o Tesserato ainda disse: _Traga os Redesenhistas para mim.
...
Giovanna já estava na cozinha quando foi assaltada por uma idéia. Iria aprontar uma travessura com Wallace! Colocaria o engraçado e cosquento brinquedo no irmão, que acordaria rindo e, certamente, brincaria com ela!
A menininha não era dada a travessuras, mas aquela lhe parecia irresistível, e, pé ante pé, cercada por suas entusiasmadas fadinhas, se achegou ao irmão.
...
Silêncio...
Nenhuma explosão, nenhum grito nem rugido, nenhum ranger nem barulhos de desmoronamentos. Nem mesmo o som da respiração de Deandra, que prendera o fôlego assim que acionou o desacoplamento do Predestinador, e este desfez a Microlinha com o Verso de William e Wallace.
_ Não conseguimos. _ Murmurou Beatriz, na voz mais triste. _ Não estamos conectados, eu e os Redesenhistas...
_ Não... Não é bem assim. _ Disse a Zeladora, após tomar fôlego e seu olhar distante tomar foco, voltado-se para o Tesserato. _ Algum zero detonou um Artefato anulador, minha Microlinha  ficou cega e abortei para não machucar as crianças do outro Verso. Mas as conexões estão armadas, você só precisa ir lá e fazer contato direto com os dois, agora eles podem ser tocados por você... O que foi?
_ Não posso entrar naquele universo. _ Foi dizendo Beatriz enquanto levava as mãos ao rosto, e, depois, deixava ambos os braços penderem, em uma postura de desânimo, dos lados do corpo.
_ Como é? Tesserato pode tudo! _ Exclamou Deandra.
_ Quase tudo. _ Corrigiu Beatriz. _ Não posso tocar ou destruir sem a conexão com meu Redesenhista. E não posso entrar, sem ele, em um determinado universo...
_ Uma ova que não pode!
_ Isso é tomado como historinha de crianças... Uma tolice. _ Explicou o Tesserato, murmurando por causa do opressivo silêncio em torno das duas _ Você, Deandra, deve ter ouvido falar neste Verso quando era bem pequena, mal devia ter chegado a Zeladoria, quando ouviu falar dele.
Deandra ficou olhando com uma cara enfezada, bem dentro dos incríveis olhos escuros de Beatriz, parecendo não ter conseguido "pescar" o que a outra queria dizer. Então os olhos da Zeladora se desviaram por uma fração de segundo para um lado, voltando logo a Beatriz. Deandra havia lembrado! E sua expressão foi ficando primeiro debochada, incrédula, depois séria e consternada, por fim a jovem estava lívida e, com tremendo assombro na voz, foi dizendo:
_ O... O Original?... O Verso Mais de Cima?!... 

O Efeito, a Causa, e o Vilão Improvável
Mas as coisas não tinham sido como Deandra havia imaginado. Primeiro que não foram as crianças-zero que detonaram a anulação das propriedades de Microlinhas.
Sim, a anulação havia sido disparada de dentro do Verso em que estavam o Tesserato e a Zeladora, mas por um homem recém chegado. Na verdade ele fez isso um instante antes de chegar. Beatriz, mesmo com sua gama de sentidos, não o percebeu porque este sujeito sabia exatamente o que estava fazendo. Ele possuia vasta experiência com Tesseratos, apesar de Beatriz ser o primeiro Tesserato em que um Zelador punha os olhos em alguns milhões de anos.
A primeira coisa que o tal homem fez foi percorrer Linhas que tangenciavam aquele Verso, até encontrar um ponto frágil na Brana, e lançar mão de um Artefato que trazia consigo e que colocou em torno de seu pescoço. Quando um fio vagamente luminoso brotou deste estranho colar, o homem fez o fio passar pela Brana do Verso. Era um Espioscópio Tunelar (ele detestava o nome, parecia ridiculamente infantil, mas era assim que os Antigos gostavam de nomear seus Artefatos), que até onde ele sabia era o último da sua espécie.
Um segundo depois de ativado, o Espioscópio fazia centenas de telinhas tridimensionais pipocarem em torno da cabeça do seu operador, cujos olhos reviravam com a esquisita aparência de quem está tendo um ataque, enquanto ele lia tudo que queria do Verso espionado.
Aquele Verso tinha estado morto, marcado como "suspenso para implosão e coleta" pelo Sistema desde a época do Grande Distúrbio, até que esta Beatriz _ este Tesserato tão voluntarioso! _ trouxe aquele universo de volta do esquecimento, o que redesenhou aleatóriamente sua história desde sua paralização.
Conhecedor das assinaturas da Zeladora e do Tesserato, e sendo aquele um micro-Verso esférico bem pequeno, foi muito fácil para o homem achar as duas, e acompanhar quando alguns dos sobreviventes daquele universo, as crianças-zero, através de um de seus batedores, as decobriu encasteladas nas ruínas de um antigo Posto Zelador. O sujeito, cauteloso, esperou que Beatriz se enganjasse em lutar diretamente com os zeros, concentrando-se intensamente em criar ilusões assustadoras que podiam penetrar cérebros e almas (a única arma de um Tesserato contra reais, quando este funcionando sem um Redesenhista), e neste instante, feito uma águia mergulhando sobre a presa, o homem desativou e recolheu o Espioscópio e correu pela Linha tangente até sair em uma Linha de contato com o Verso alvo, e entrou nele feito um bólido! Mas não antes de lançar a sua frente uma granada de anulação seletiva, para Microlinhas, fabricada por ele mesmo, que implodiu, fazendo a textura da Brana daquele Verso se contrair e se alisar, desestabilizando qualquer Microlinha, e cegando a Zeladora.
O homem chegou àquele Verso exatamente no Posto Zelador gêmeo daquele em que estavam Deandra e Beatriz. Ficava no lado oposto da face interna daquele micro-Verso bolha, que era todo tomado por uma vastíssima floresta, tão vasta quanto um sistema solar inteiro do nosso universo (que era o tamanho total daquele). Ali, em seu Posto, o invasor colocou rapidamente seu Predestinador para funcionar. E esta foi a segunda suposição errada da Zeladora.
Deandra acreditou que as crianças do outro Verso tinham sido deixadas sós e em paz com suas vidas, no momento em que ela se desconectou.  
...
Wallace tinha uma bonita cor, muito morena, a sua pele era de um castanho profundo e dourado, o que contrastava com as mãozinhas miúdas e alvas de Giovanna, que escapuliram num arranco ligeiro de perto de uma das mãos espalmadas de seu adormecido irmão, onde ela havia depositado o tal brinquedo formigante! Ela prendeu a respiração pronta para disparar gargalhadas quando Wallace saltasse do sofá-cama! Seria agora que a traquinagem iria render boas risadas!
O rapaz chegou mesmo a se mexer, mas, para decepção da garotinha, não acordou. Os dedos de sua mão se agitaram de um jeito esquisito, fora de foco, enquanto o brinquedo mergulhava na palma exposta, tremeluzindo e desaparecendo.
Deixando uma exclamação desanimada escapar, Giovanna percebeu que as cinco fadas brilhantes coruscavam, piscavam cada vez mais fracas, e finalmente desapareciam no ar.
Batendo com as mãozinhas brancas nas próprias pernas, a menininha encarava o total desastre da arte que havia intentado aprontar com uma frustração indignada!
Mas, um instante depois, as fadas voltaram. Duas delas, pelo menos, incandescendo num roxo-carmesim pulsante! As cores não eram tão bonitas, mas lhes pareciam ser as mesmas fadinhas.
Giovanna bateu palmas silenciosas, e se riu toda, baixinho, mas animadamente. Então ela disse para as luzinhas:
_ Não deu certo. Ele não sentiu cócegas! _ Ela falava bastante correto para uma criança da sua idade nos dias de hoje. _ Me ajudem!
As duas fadas mergulharam zunindo, mesmo antes de Giovanna acabar de pedir ajuda, e passaram tão rende ao seu rosto que ela cambeleou, entre assustada e divertida. Em um piscar estavam as luzinhas rubro-arroxeadas sobre a mão de Wallace, lutando para trazer de volta o brinquedo, mas sem sucesso.
Aparentando estarem elas agora frustradas, chisparam em direção a menininha, como duas flechas incandescentes!
Pondo as mãozinhas frente ao rosto, Giovanna principiou um gritinho, achando que as fadas iam bater em seu rosto. Chegou mesmo a cerrar firmemente os olhos, mas algo dentro de si a fez engolir o grito. Enquanto um homem que ela acharia muito mau, em um outro universo, premia o pedal de um enfluenciômetro com toda a força, a menininha graciosa sentia vontade de se sentar e ouvir.
...
Ele havia, apesar de tudo, chegado tarde demais. Os Redesenhistas já haviam sido conectados! O invasor estava furioso, consigo mesmo, com seus inimigos e com todo o Multiverso! Não podia falhar! E havia falhado. Pensou, alucinadamente, no que poderia fazer, e não viu alternativas. Teria que guiar os Redesenhistas até ele, teria que fornecer um mapa de rupturas. Teria que contar com Lilith!
Teria muito pouco tempo para sair! Beatriz o ouviria ressitar uma Chave de Verso para a irmã  dos Redesenhistas de qualquer jeito, nem que o próprio Grande Distúrbio estivesse explodindo novamente, Beatriz deixaria de ouvir uma Chave!
Não havia jeito, não haviam alternativas. Pisou profundamente no influenciômetro, fez Giovanna lhe dar toda a atenção, ligou o Modulador de Pensafreqüência do Predestinador em vocalizar, e ressitou a Chave direto para o atento subconsciente da menininha, que deveria, quando recebesse o Mapa de Lilith, levar pelo menos um dos irmãos próximo a uma ruptura e abrir uma Linha com a Chave. Disse a ela como ressitar e ouvir a ressonância sonora da Chave para pegar exatamente a linha onde ele os esperaria.
Quase no mesmo instante, no entanto, que o  homem instruiu a menina, ele sentiu reverberar pela estrutura daquele Verso o poder do Tesserato, tal qual um vasto oceano martelando subitamente um solitário rochedo. Beatriz havia escutado seu cântico através da eternidade, e caçava o homem.
Rapidamente o invasor se desvencilhou do Predestinador e correu, feito um louco, para sua Linha de saída. Achava que talvez agora até mesmo sua vida dependesse disso. Ágil como um gato, saltou por cima de uma grande mesa de um material esquecido. Tinha a intenção de, ao cair daquele salto, despencar Linha de fuga adentro.
Foi quando a Ilusão, perfeitamente sólida, o pegou de frente, como uma parede de pedras. Era tarde demais, o Tesserato já estava sobre ele.
...
_ Q'ZENDAS! _ Reverberava a voz imensa do Tesserato, como o trovejar mais ensurdecedor, como o disparo de milhares de canhões juntos, o som do mundo quando este desaba. Beatriz preenchia todo o horizonte, vasta como uma deusa, sua pele tinha a textura de um planeta visto do espaço, seus olhos como dois abismos negros sugando a vastidão e ateando fogo ao cérebro de sua presa.
Com a força de uma marreta, a ilusão-realidade, seu novo-falso-real- mundo, caiu sobre ele. Paredes de rocha se formavam como se caíssem de mil quilômetros de altura, e também como se sempre tivessem existido ali.
Q'zendas sabia! Ele tinha que não esquecer! Tudo mentira! Tudo no Tesserato é... Mentira? Sim! Malditas criaturas, sangue-sugas da Existência, malditos seus Criadores! Sacudiu-se nas correntes que o prendiam em uma esquecida masmorra onde Apolônio... Sim, Apolônio sempre havia sido seu nome, não o outro nome, não... Onde Apolônio vivia sua miserável vida há... Uma vida inteira?
_ Não, não, não, eu não estou aqui!
_ Ah, velho! _ berrou um carcereiro imundo de além das grades _ Porque não desiste e morre de uma vez? Sabe muito bem, velho, que você pode escolher morrer de uma vez, seu verme!
_ Não! É tudo mentira! _ Mas sentia seus (agora?) ossos fracos e gastos doendo com o peso grosseiro de correntes, sentia as lembranças daquela outra vida, uma vida de rebeldia e perigos, de destemor selvagem, se desvanescendo... O último Espioscópio... Mas o que era isso?... Havia uma Meta, um Plano, ele... Ele... Seus olhos se enchiam d’água, enquanto sua gengiva agora desdentada e gasta espremia seu lábio inferior... Ele não estava... Ali... Mas... Estava aonde?
Aquilo era desesperadoramente real! E ele teria preferido a morte, certamente, se Beatriz não tivesse descido, talvez por curiosidade _ essas... Coisas... São extremamente curiosas _ ou talvez para tripudiar sobre o vencido. Mas lá estava ela. Primeiro ele a sentiu como sentimos a tormenta que se aproxima, depois ele a viu! Como um titã que se mesclava as rochas e paredes de pedra enquanto as atravessava, então, humanizando-se cada vez mais, o monstro apequenou-se, e enquanto tomava proporções humanas, veio descendo as escadas imundas da masmorra, surgindo diante de Apolônio, num traje leve, um longo vestido em bordados e renda preciosa e cara, de sutis cinzas e imaculados brancos sobrepostos, colo alvo e bem feito a mostra, parecendo uma encantadora jovem, mas ele sentia, ele cria, ela era lobo sob a pele do cordeiro, delicada em suas vestes, mas contendo uma suntuosidade típica desse... Desse... Tesserato.
Uma veia pulsava na cabeça antiga e quase totalmente desprovida de cabelos do que restava de Apolônio. A boca do velho se curvava para baixo, como sempre fora, tão arruinada quanto ele todo, vertendo salpicos de espuma. Todo ele era um destroço. Mas os olhos do velho sorriram quando Beatriz caminhou em sua direção, pois ele estava orgulhoso de si, ele conseguiu a façanha de lembrar o que ela era.
_ Deixa eu te ajudar, Apolônio. _ Disse a coisa com a forma de uma linda mulher. O velho quase pôde vê-la insinuando um beicinho. _ Diga, por que motivo me persegue, qual a razão de destruir meus planos e as pessoas que tento salvar? Entende que salvei seu Verso, e é somente por isso que você está aqui? Você era querido em seu Verso, tinha sua gente, suas crianças, sua família. O que, ou quem fez você me seguir e me odiar tão cegamente? EU TE FIZ UM BEM!
Apolônio, no entanto, emitiu apenas um gorgorejar húmido. Seu peito se encolheu numa tosse contida, ele engasgou e resmugou algo como “demônio, perfídia, profanador”. Ela pareceu não ligar para os insultos, e ainda o olhava com aqueles imensos e bonitos olhos, encarando-o. Dava para ver na expressão de Beatriz, pelo menos na opinião do velho, o quanto ela fingia, sim, ela fingia sentir piedade, tentava enganá-lo ainda mais, parecendo não ter prazer em ferí-lo. Apolôn... O velho, no entanto, tinha se lembrado de uma coisa, e começou a rir, uma risada engasgada e trôpega. Mas parou e ficou olhando com olhinhos miúdos e malvados para Beatriz, quanto ela voltou a falar.
_ Vai levar com você a verdade, não é? _ Perguntou o Tesserato, inquieto, parando de encarar o homem e vagando de um lado para o outro da masmorra, bem em frente ao velho, sem tirar os olhos dele, o vestido dela permanecendo miraculosamente imaculado. _ Desde que começou a me perseguir eu tentei tirá-lo do caminho de forma o mais indolor possível, seu maluco! Seu idiota! Vi que sabia o que eu sou! Não sei como, mas tem mão de outra pessoa nisso! Não pode ser que você, só um real, me enfrentasse e saísse sozinho das armadilhas que te arrumei! Eu o bani, te fiz viver um monte de personas novas, algumas vidas até incríveis que qualquer real adoraria viver, mas você sempre arrumou um jeito de escapar e voltar! Quando matou Doménikos não me deixou alternative, tinha que matar você! Tinha... _ Neste ponto a poderosa voz de Beatriz tornou-se mero murmúrio dolorido: _ Tinha que ter matado você mesmo... _ E a seguir ela completa, firmando e elevando de novo a potente voz: _ Mas agora você não sai mais daqui! Dessa vez nada entra, nada sai, até o fim!
O velho, que se limitava a resmungar coisas sem nexo enquanto ela falava, desatou subitamente a rir, e não parou mais. Por um longo momento, em meio as risadas roucas e insanas do destroçado velho acorrentado, Beatriz o olhou, com um misto de raiva, zanga, frustração e compaixão. E então deu as costas e tratou de ir saindo daquela masmorra, onde tinha certeza de que o ancião iria definhar até apagar a si mesmo da Existência. No entanto ela parou, ao pé das sujas escadarias, quando o velho Q’Zendas disse, entre uma risadinha e outra:
_ Tesserato...
E enquanto Beatriz se voltava para trás lentamente, assombrada com a força daquele homem que conseguia, de algum modo extraordinário, manter uma fagulha de sua mente livre de seu ataque de ilusões-reais, eis que o velho prosseguiu dizendo:
_ Tesserato solitário... _ Mais risadinhas insanas. _ Não era para ser a última...
E, no momento em que outras vozes, antigas e conhecidas de Beatriz, enchiam a masmorra com lamentos doloridos e inundavam de dor e dúvida o âmago daquele Tesserato, um novo ator subiu àquele palco. Enquanto a Ilusão explodia em estilhaços capazes de lobotomizar qualquer mente humana, um vulto embrulhado em andrajos que incandesciam surgiu e caminhou um tanto bamboleante, mas resoluto, em direção ao velho que ria sem parar. Beatriz se sentia petrificada ao ter noção de que algo sobrepujava seu poder, sugando suas forças, como se suas energias estivessem sendo vampirizadas de algum modo! E o Tesserato viu também quando o vulto recém-surgido, que continuava a avançar em direção a Q’Zendas, olhou para ela. Um dos olhos da feiticeira estava mergulhado na escuridão, enquanto o outro chispava em chamas mais antigas do que o próprio Tesserato!
“Quer se juntar aos outros, Beatriz?”
E no instante que o vulto tocou o velho, aqueles estilhaços da Ilusão, que escapavam para o infinito, voltaram atrás no tempo e no espaço, e a ilusão-realidade-prisão de Q’Zendas, violentamente, implodiu!
...

(CONTINUA...)

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