Mergulho Radical

RPG:C7

Arcanjos - Episódio I

Autor: Wagner Ribeiro de Magalhães Silva.

Os Arcanjos e todos os personagens aqui descritos são partes do RPG Código 7 (C7) © 1998.

Prólogo

[ONLINE]

:: 18/Dez/2.143 :: 23:15 Hora Padrão ::

:: Missão: 01387 – Nave de Pesquisa Cérbero – Órbita de Júpiter.

:: Situação Atual: identificado origem do sinal alienígena recebido deste planeta há seis semanas atrás. Emitindo um relatório em retrospecto da missão, pelo comandante Carlos Vecchio Bacelar.

:: Sub-rotina IA de Acompanhamento – Orwel.

Há seis semanas antenas de rádio-telescópio na terra receberam um sinal alienígena que paradoxalmente não vinha de fora do sistema solar, mas de dentro, mais precisamente de Júpiter. Imediatamente a Organização das Nações Unidas ordenou que a agência responsável por este tipo de assunto, conhecida simplesmente como C7, enviasse uma nave de pesquisas para averiguar. E agora ficou constatado que, mergulhado no maior furacão do gigante gasoso, há uma estação automática alienígena. Não pudemos compreender de onde ela veio, nem como se instalou. Cogitamos algumas teorias, e uma delas é de que o “Vigilante do Abismo” (nome que demos à estação alienígena) sempre esteve lá, desde os primórdios do nosso sistema solar. Sondas automáticas confirmaram que este gigantesco aparelho gera uma espécie de portal dimensional que permite viagens interestelares, pois as sondas voltaram com fotos de constelações longínquas... Atenção, aguarde, o portal estelar de Júpiter está se abrindo, estamos recebendo “visitantes”...

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[ONLINE]

:: 25/Dez/2.143 :: 10:15 Hora Padrão ::

:: Relatório: 01387/21 – Invasão Alien Através do Portal de Júpiter.

:: Situação Atual: Primeiro contato hostil, medidas de defesa sugeridas - Orwel.

:: Sub-rotina IA de Acompanhamento – Orwel.

Uma nave de combate alienígena emergiu do Portal Estelar de Júpiter (gerado pelo artefato Vigilante do Abismo, ou Pólo Diapositivo Joviano, conforme o nome dado por nossos cientistas), destruiu completamente a nave de pesquisa CGAC7 Cérbero, e bombardeou a lua Europa, onde existia uma base militar e uma estação de pesquisa civil. Por pura sorte o contratorpedeiro Marechal Dario estava nas proximidades, e armado com mísseis nucleares Starlight conseguiu destruir a nave inimiga. Desde então nenhuma outra nave veio do Portal Estelar, mas creio que aguardar um novo, e possivelmente massivo ataque, seria uma tolice. Na qualidade de Inteligência Artificial Oficial desta agência, aconselho a imediata reforma de algumas naves pesadas de combate, que devem ser equipadas com nossos melhores recursos bélicos. E o envio destas naves através do Portal, de modo a estabelecer uma “cabeça de ponte” de defesa no outro extremo, e manter contato conosco por sinais de rádio que vão trafegar pelo próprio Portal Estelar. Esta nossa frota deverá receber o codinome de seus veículos mais sofisticados, os caças chamados Arcanjos.

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[ONLINE]

:: 10/Abr/2.148 :: 00:15 Hora Padrão ::

:: Relatório: 01387/234 – Falha da Missão da Frota Arcanjos.

:: Situação Atual: recebemos um sinal automático intermitente da CGAC7 Mahatma, após período sem comunicação de 174 horas. Período de silêncio de rádio este que se iniciou após aviso de entrada em combate em larga escala. Relatório em retrospecto das medidas tomadas - Orwel.

:: Sub-rotina IA de Acompanhamento – Orwel.

Após uma missão sem maiores incidentes de cinco anos, onde a Frota Arcanjos estabeleceu que o Portal Estelar de Júpiter é apenas um ponto em uma rede de portais que parece cobrir toda a nossa galáxia e talvez além, eles finalmente encontraram O Inimigo (vamos chama-los assim por falta de melhor descrição, afinal eles têm muitas formas e tecnologias, e todas são pesadelos para os humanos, e agem de forma totalmente hostil por razões que ainda desconhecemos, mas supomos ser devido a alguma guerra interestelar alienígena para controle dos portais). Os Arcanjos estavam mapeando o quinto sistema estelar na rede de portais após o outro extremo do “nosso” Portal, quando acusaram início de intenso combate com unidades alienígenas com terrível poder de fogo (recebemos diversas imagens e muitos dados estarrecedores sobre O Inimigo). A nau capitânea, CGAC7 Mahatma, manteve posição enquanto as outras naves batiam em retirada, seriamente atingidas, pelo portal do sistema estelar em que se encontravam. Mas algo aconteceu com o controle dos portais, e as naves parecem ter sido enviadas a diversos destinos ao acaso. Apenas a Mahatma ficou em contato conosco, e, após desesperado aviso de que estava sendo abordada “por monstros”, o contato cessou. Agora, após um silêncio de 174 horas, enquanto nosso Portal esteve misteriosamente fechado, o Vigilante do Abismo o reabriu e recebemos um rádio-farol da Mahatma. Era necessária medida urgente, pois o Portal Estelar podia fechar a qualquer momento. Nosso agente diplomata Alex Rhea, com vasto conhecimento em comando de naves de grande porte, e piloto exímio, que acompanhava um grupo de novos recrutas em um evento esportivo em Io, foi ordenado a considerar formados e assumir comando destes jovens pilotos e mergulhar com eles no Portal, indo abordar e recuperar imediatamente a Mahatma. Isso aconteceu há 12 horas, horário padrão. Depois da passagem de Rhea e seus pilotos, e do retorno de uma mensagem dele avisando que retomou a nau capitânea, que estava muito avariada e aparentemente deserta, o Portal Estelar de Júpiter voltou a fechar. Aguardamos novos acontecimentos, e enquanto isto, eu sugiro o reforço imediato dos vasos de guerra estacionados em órbita fixa sobre o Vigilante do Abismo, e o envio de uma bomba Blackhole que deve ser posicionada na estação alienígena. Entretanto, vale salientar a importância ímpar do Portal, e o fato de que só permitiremos a implosão do mesmo em último caso. A equipe de cientistas que está a bordo do Vigilante tentando descobrir o funcionamento do artefato vai prosseguir seus trabalhos ininterruptamente, mesmo com as perdas reportadas.

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Mergulho Radical

Stuart Dilon é piloto desde que se conhece por gente. Crescera de aeroporto em aeroporto até os cinco anos, quando sua mãe e seu pai, aventureiros e aeronautas, americanos do Kentuchy, decidiram firmar raízes no Rio de Janeiro, Brasil. Dali Stu só saiu pouco antes dos dezessete anos, quando voltou aos E.U.A. onde se formou piloto na Escola Superior de Vôo no Arizona. Aos vinte e dois anos foi ao espaço, e se apaixonou pelo “céu além do céu”.  No vácuo fez grandes amigos, dentre eles o comandante Alex Rhea, que um dia o arrastou para o C7, onde teve treinamento militar. E foi aos 36 anos, por estar ao lado do amigo de longa data, no lugar errado e na hora errada, que Dilon foi parar quase do outro lado da galáxia, atravessando com Rhea e um bando de recrutas um portal interestelar em Júpiter.

Pensando que gostaria de ter ficado em casa, ou voando como piloto comercial em uma pacata nave de passageiros entre Terra e Marte, Stu premiu o sistema de injeção de combustível, afinando a mistura. Queria potência máxima nos jatos de ré, e conseguiu, a Kimberly Velvet, sua, e só sua nave na esquadra terrestre sob comando do agora ADCIC (Agente Diplomata Comandante in Chefe) Alex Rhea da recém reconquistada nau capitânea Mahatma, deu um solavanco súbito e mergulhou feito um bólido. O planeta no qual ela mergulhava agora era conhecido apenas como CGP0023-5, e a Velvet era uma das primeiras naves humanas e singrar sua atmosfera. Na verdade a Kimberly se arremessava em franco desespero, escudos térmicos ardendo como um meteoro, como se quisesse bater com tanta força na superfície do planeta que o tiraria de sua órbita, e o arremessaria para fora daquele sistema solar alienígena!

O capitão (sentia-se incomodado com o cargo, era um “peão” como gostava de afirmar, um piloto, cargos “almofadinhas” o deixavam tão pouco a vontade quanto uniformes de gala ou ternos caros. Mas agora assumia posição de “braço direito”, homem de confiança e segundo em comando do ADCIC da Mahatma) Stuart “Kentucky” Dilon tinha 8:32 minutos para chegar ao land-rover que carregava um artefato nuclear sobre a superfície do continente setentrional de CGP0023-5. Artefato nuclear este que havia falhado. A bomba iria explodir, ele sabia, a Mahatma sabia, mas os três caças Arcanjos enviados para escoltar o rover não tinham como saber, pois as comunicações estavam cortadas, visto que havia um enxame de caças inimigos nas proximidades, e um “pio” no rádio colocaria a Mahatma (no  momento solitária na órbita deste mundo onde se instalava uma cabeça de ponte de mísseis) sob fogo cerrado inimigo, e se os “buchas” (era mais leve chamar eles assim que de O Inimigo, embora o último chamamento tivesse mais haver com o horror que enfrentavam) pegassem a Mahatma agora, ainda em reparos, ela seria destruída.

Mas como _ você deve estar se perguntando _ Stu soube que a ogiva estava com problemas? Isso nos leva a cerca de três horas e meia atrás...

...

Havia ocorrido a retomada da Mahatma a menos de uma semana. E fazia quase o mesmo tempo que não conseguiam mais estabelecer contato com o comando da missão na Terra. A nau capitânea foi encontrada quase em frangalhos, abandonada à deriva, a maioria da tripulação morta, com raros sobreviventes “inteiros”, alguns mutilados, uma carnificina. Apesar da moral abalada, ainda estavam trabalhando em turnos apertados para pôr em funcionamento toda a nave, especialmente suporte de vida, sensores e armas. Mas a esta altura começaram a ser liberadas licenças de algumas horas por dia (Rhea é um comandante durão, mas não chega a ser desumano), e os jovens, recrutados às pressas, extravasavam a tensão de terem sido arrastados direto para a guerra cometendo alguns excessos. Pois Stuart estava curtindo um merecido descanso e caminhava pelas instalações de hangares da grande nau capitânea quando sem querer pegou “Yo”, o mecânico chefe de engenharia “apertando” unzinho enquanto contava mísseis nucleares, e os testava com um tablet de engenharia. Conectando o tablet a cada um das dezenas de mísseis, Yo mandava o fino painel de dados executar uma bateria completa de verificações em cada míssil, e, aguardando, tragava com extremo prazer sua maconha. Testando o balístico 0013, Yo viu o capitão Stuart dar a volta, subitamente, no corpo cilíndrico do míssil, e sorriu... Lento...

_ Isso é maconha, Yo? _ Fez Stu, ambas as mãos na cintura de seu macacão de vôo, tentando emprestar a voz o tom que um capitão de verdade teria.

_ Si, senõr... _ Respondeu um sardônico Yo.

_ Negão, você tá vistoriando mísseis nucleares chapado? _ Nota-se que Stu de fato não compreende ainda muito bem como se portar como um capitão.

_ Si, patron... Vai?

_ Me dá isso aqui! _ Stu tomou o cigarro do outro, e o fez esvaziar os bolsos, enfiando em seus próprios bolsos mais seis cigarros, e dois papelotes de cocaína _ Cara, coé? Quer matar todo mundo aqui? Olha isso, esse míssil que estava checando agora está com o detonador defeituoso! O tablet ta avisando e você nem aí. Se ele for armado explode vinte  minutos depois, sem aviso. Vocês piraram! Tão se drogando?

_ Mas eu vi o defeito, Stu, eu só tava devagar para marcar a parada como defeituosa! _ Protestou Yo.

_ É Capitão Stu pra você, engenheiro. Tem certeza que viu a falha, cara?

 Yo fez que sim, mas deu de ombros, e Stu pegou um simples e prático giz, e marcou aquele míssil como inoperante: “0013 – inoperante – falha de detonador”.

 _ Ah, sai fora, careta! _ gritaram vários jovens, moças e rapazes que estavam pelo hangar e viam a cena. Eles estavam remexendo em caças e armamentos que, a primeira vista pareciam aos pedaços, mas aquela turma era muito boa, e de fato estavam botando os Arcanjos (os melhores caças da esquadra terrestre) e outras maquinarias da Mahatma para funcionar. Stu os respeitava, mas parecia que o inverso não era tão verdadeiro quanto ele imaginava.

_ Galera! A gente precisa ficar de cara limpa, vão por mim! Um vacilo e é morte certa, caramba! Vocês viram o que aquelas coisas lá fora fazem! O Inimigo pode voltar a qualquer momento! _ Ele gritou, mas os garotos e garotas vaiaram, dizendo que estavam muito bem até ali, mesmo dando “uns tapas”.

_ Ei, coroa! A gente se libera, sacou? A gente voa longe assim. Voar careta? Pode ir... _ Falou uma jovem morena, tipo índia, de longos cabelos negros trançados nas costas, macacão de vôo, e reluzentes olhos negros.

_ Qual teu nome, garota? _ Perguntou Stu, já meio impaciente.

_ Mayara Iandé, capitão Stuart! _ Respondeu ela batendo uma continência debochada. Stu gostou dela, dela toda, ele era um apreciador da arte divina de fazer “mulheres gostosas”. Deus tinha caprichado em Mayara, era exótica e charmosa, mesmo ainda excessivamente jovem e “marrenta”. Ela parecia ser a junção de um corpo muito bonito com uma mente cheia de potencial.

_ Quantos anos têm?

_ Vinte e uns quebrados.

_ Vamos voar, Mayarinha?

 A garota não era boba nem nada, entendeu o duplo sentido, qualquer piloto entenderia. Sorriu, sobrancelhas em um “v” agudo e maldoso, boca linda desenhando um “não sei o que lá” maroto e implicante. Enfim, depois de estudar o “coroa” de cima a baixo por um longo momento (em que todos os outros permaneceram em silêncio), ela disse:

 _ Taí, “seu” Stuart, que eu julgo que deve ter trinta e uns quebrados no mínimo... _ Stu piscou para ela, e Mayara, resmungando, continuou _ ... Vamos voar. Eu escolho as armas. Nada de usar sua Kimberly queridinha, aquele bombardeiro que você adotou como seu, valeu? Você vai ter que voar em um Arcanjo.

_ Moleza! _ Fez Stu, rápido.

_ Pode ir! _ Retrucou Mayara.

_ Moleza, tô dizendo. Me dá dez minutos para entender o caça, e “voamos”.

_ Quero ver! _ Disse ela, franzindo o cenho. _ Vai perder, pato. Valendo o que?

_ Se eu perder?

_ Sim.

_ O que você quiser. Se você perder vai jantar comigo, e depois me convidar para seu alojamento, aonde vai me contar tudo que aprontou com seus ex-namorados antes de chegar aqui. E ainda vai ter que bater continência toda vez que me encontrar e me chamar de capitão gostosão...

_ Babaca!

_ Arregou?

_ Não! Tá feito! Já ganhei.

_ Ganhou o quê, se ninguém decidiu o que vai ser feito? Eu proponho uma corrida até a pequena nebulosa do Lótus, que está colidindo com este sistema estelar, e voltar. Se não for demais prá você, claro... _ Sorriu Stu, debochado, ao que os outros dispararam “úúúúús” a plenos pulmões. Mayara se enfezou de vez e saiu batendo os saltos de suas botas. Ao que Stu gritou _ Se não desistiu, Mayarinha, te espero aqui em meia hora.

_ Já ganhei, coroa! _ Berrou ela de volta, caminhando para longe _ Vou apenas pegar uma paradinha!

...

O Arcanjo de Mayara subia um grau em relação ao círculo plano imaginário em cujo centro estava a Mahatma, pois a nebulosa estava “acima” da nau capitânea. Não conseguia ver Stuart, ele havia ficado para trás, e ela estava mesmo muito feliz com isso. Premiu pedais, e girou só um pouquinho o manche, e o sensível aparelho girou em seu eixo longitudinal, rodopiando duas vezes. Mayara havia nascido em uma família de espaçonautas, era sangue, era desejo puro de estar no vácuo, e sempre sonhara poder pilotar uma coisa assim como era o maravilhoso Arcanjo: rápido, sensível, quase vivo de tão ágil a dinâmico. Apurou a mistura e os jatos cuspiram um fogo azul e delicado, e os isolamentos acústicos da cabine deixaram passar um rugido baixo e vibrante, que era puro rock’n’roll para ela.

E por falar em rock, foi mais ou menos aqui que Stu colocou no sistema de comunicação American Woman, na voz de uma Inteligência Artificial chamada FreeFly, que fazia muito sucesso desde idos de 2.146. Naquele momento o alerta de que havia “buchas” na área ainda não havia soado. Na verdade seria emitido antes que aquela corrida terminasse. Mayara é brasileira, descendente direta de índios Tupinambá, mas ela adora aquela música, era uma espécie de “trilha sonora” dela, ele adivinhou ou sondou bem. Foi quando o Arcanjo dele passou em um rasante tão baixo sobre a carlinga do caça de Mayara, que o plexxy1 de sua cabine ficou embaçado com o combustível dele. Combustível que um segundo depois cristalizava. Ela disparou a corrente elétrica que limparia o plexxy vaporizando os micro-cristais de combustível, e acelerou com tudo no rastro de Stu.

_ Iiiiiirráááá! Hi, baby, quer uma ajuda aí? Por aqui eu já saquei como usar uma belezura dessas! _ Fez Stu, balançando as asas para ela, que ficava para trás. Imediatamente ele trocou a música para Bete Balanço, na voz do próprio Cazuza, e ficou cantarolando para ela, que enfurecida, abriu os jatos ao extremo, arrancando com uma explosão e girando em volta do caça de Stu em altíssima velocidade, fazendo o sujeito se encolher e berrar: _ Caraca! Gata, quer sentar no meu colo faz isso sem o teu Arcanjo, por favor!!

_ Sai fora, Stu, eu transaria com uma FV2 antes de deixar você por tuas mãozinhas encarquilhadas em mim, véio! _ Gritou de volta _ Mas a música é boa!

_ É, gosta? Antiga que só! Viu como você tem a mente aberta para experimentar músicas clássicas, homens clássicos...

A garota caiu na gargalhada. Stu resolveu deixa-la ganhar dianteira, e guardou seu combustível para a “volta final”. Cerca de quarenta minutos de vôo tranqüilo (e algumas canções clássicas de rock) depois ambos entravam, um após o outro, na nebulosa do Lótus. Milhões de matizes de azuis e violetas incandesceram sobre eles, quando a nebulosa, que refletia fortemente a luz do sol daquele sistema, refulgia à volta. Por um segundo ficaram tão extasiados com a beleza do lugar que esqueceram da competição, e riram e se divertiram voando a volta um do outro, como anjos mesmo, cujas asas deixam rastros luminescentes ionizados. “Dançaram uma canção de vôo e liberdade” a moda que só os pilotos aéreos sabiam dançar uns com os outros. Stu gostava cada vez mais da risada de Mayara, uma risada franca e moleca, e ela também apreciava cada vez mais as qualidades do piloto companheiro, que a deixava sempre à vontade, como se Stu fosse um companheiro treinado de acrobacias aéreas. Era como se nadassem juntos, em um oceano multicolorido e radiante, mas havia, à volta de cada um, a maravilhosa tecnologia Arcanjo, e isso fazia as coisas ficarem ainda mais divertidas, ao menos para aqueles dois, pilotos apaixonados pela “arte de voar”!

Mas, súbito, o experiente Stuart resolveu trazer Mayara de volta a ação, e voou até a frente do Arcanjo dela, fazendo-a parar no meio de uma risada enquanto ele dava pinotes e ela ouvia “New Age Girl” em uma versão ainda mais debochada pelos fones de seu capacete. Mayara ficou séria, olhando para frente, quando ele balançou as asas e disse pelo rádio:

_ Agora, mais que nunca, eu quero saber o que essa acrobata aprontou com seus ex!

_ E eu estou pensando em uma tortura maravilhosa para você, senhor Stu! _ Disse ela franzindo os olhos amendoados e negros.

_ Vem fervendo, gracinha!

Ela acionou as turbinas e deu uma guinada para frente, ele freou seu Arcanjo e o fez virar para cima, ficando quase como uma parede em frente ao caça de Mayara, que, com um pequeno grito, puxou o manche com toda a força, e fez seu aparelho subir quase reto.

_ Seu!... Filho da puta maluco! _ Gritou ela, enquanto manobrava desesperadamente.

_ Calculo que sua reação foi algo em torno de um décimo de segundo. Você está careta!

_ Não! _ Berrou Mayara, aprumando seu caça, irritadíssima com a “pegadinha” do outro..

_ Está careta! Nenhum piloto chapado se desviaria a tempo! Eu iria subir com tudo se você não conseguisse, talvez no máximo você me arrancasse as aletas traseiras, mas não iríamos morrer. Eu acho. Como você não está usando drogas, podemos continuar nossa disputa, senão teria que me rebocar para casa! Adrenalina é melhor que qualquer droga, pivete porra louca!

_ Eu... Eu iria deixar você apodrecendo aí, seu filho da mãe! _ Resmungava ela em voz alta, no fundo dando graças a Deus que não estava usando as pílulas que havia buscado em sua cabine, juntamente com sua antiqüíssima garra de onça (dada pelo avô, quando disse a ela que, apesar de ser mulher, era uma guerreira, e deveria ter sua própria garra). Não duvidava que Stu pudesse arremeter antes do impacto, mas o choque poderia ter matado o maluco. Foi quando Mayara percebeu contato de radar, e entrou em uma espécie de “modo piloto de caça profissional”, voz controlada, dizendo: _ Capitão, atenção, contato radar a duas horas do plano virtual.

_ Peguei, garota. Cruz credo, o que são esses “trocentos” pontos?

_ “Buchas”? _ murmurou Mayara, com um quase imperceptível tremor na voz.

_ Vamos voltar!

_ Espere, Stu, estão vindo, seis deles. Olha, eles acionaram interferência de rádio, não podemos chamar reforços, sabem que estamos aqui. Se voltarmos agora vamos levar os caras direto para a Mahatma.

Stu pesou as palavras da moça. Sábias. A Mahatma tinha a maioria de seus canhões de costado inoperantes (até agora tinham testado apenas duas baterias de cada lado, e as deixado operacionais), e se aqueles fossem os caças Inimigos, a nave da esquadra terrestre não teria a menor chance, eram muitas naves, de pequeno a médio porte, provavelmente caças, mas muitas!

_ Ok, Mayara, ouça. Vamos despistar esses caras. Se for necessário, vou por uns mísseis neles e você vai voar feito o diabo fugindo da cruz direto para a Mahatma, vai pousar de barriga se for necessário, e mandar eles abrirem fogo com tudo contra esta nebulosa, e faz a Mahatma ir para o outro lado do planeta! Não, não precisa cair no clichê de perguntar “e você, Stu?”, eu vou virar maionese!

_ Eu não ia perguntar isso, capitão! Apenas vou me dar como vencedora da nossa aposta...

_ Alinha comigo, fica a uns dois corpos ao meu lado. _ Ordenou Stu, compenetrado em alguma manipulação de seus sistemas de bordo.

_ Para quê, não seria melhor a gente se separar e pegar eles pelos flancos?

_ Só nós dois? Nem pensar, eles vão vir com tudo e chamar o resto, devemos parecer que não os vimos, e chamar reforços...

_ Como?! Vai mandar sinais de fumaça?!

_ Quase! Confia em mim. Alinhe seu Arcanjo aqui ao meu lado.

Ela fez isso, e assim que ficou na posição, sentiu toda a sua pele se arrepiar, e escutou um violento estalo na carlinga de seu jato, e imediatamente em sua tela de radar os dois Arcanjos se multiplicarem, parecendo virar uns cinco ou seis.

_ O que foi isso?! _ Ela perguntou, atônita.

_ Macete de pirata! Estourei um relê, mas fiz meu radar emitir um “supersinal” que ricocheteou várias vezes nas carlingas de nossos caças. Se eles usarem alguma tecnologia de detecção parecida com a nossa vão pensar que somos muitos.

_ Caraca, maneiro isso, como aprendeu isso? Já foi pirata? _ Perguntou Mayara, elétrica.

_ Com Rhea. Não fomos piratas, mas temos alguns “colegas” que são. Mas isso é uma longa história, e não dá prá contar agora. Eu conto no teu quarto, de manhã...

_ Vai te catar, Stu!

_ Observe o radar, os “buchas” diminuíram velocidade de ataque... Engoliram nosso engodo...

_ Que que é engodo?

_ Hummm, é como levar gato por lebre, poxa! Sacou?

_ Hu-hum. A interferência de rádio continua...

_ Ganhamos algum tempo, mas eles não vão ficar lesando prá sempre. Escuta, deixa eles chegarem pertinho, então dispara a ré com tudo, mete chumbo nos “buchas”, gata morena!

_ Saquei, coroa na moral! _ Riu Mayara, brincando também para aliviar a pressão do combate iminente, ao que, de seu monitor de comunicação, Stu lhe piscou ao seu estilo cowboy, e ela continuou _ Vamos arrasar com eles, Stu.

_ Devagar com o andor, Mayarinha, porque temos pelo menos seis vilões na nossa cola, e assim que dispararmos, os outros vão vir com tudo... O inventário de bordo indica dois mísseis dragon, que... Deixe ver...

_ Mísseis térmicos, rastro de calor e dispara uma explosão de plasma a dez mil graus no ponto de impacto. Lemos os manuais, não fazemos só bobagens, Stu.

_ Legal. Fizeram os deveres de casa. E esses dois mísseis Fatboyslim?

_ Nucleares de capacidade baixa, seis quilotons cada um. _ Respondeu prontamente Mayara.

_ Urrú! Beleza. Mas os “buchas” no mínimo têm alguma coisa parecida, então não vamos cantar vitória... Eles estão vindo...

_ Aê, capitão, me pintou um insight: me consegue uns vinte segundos com as mãos livres para fazer um rastreio com os sensores?

Foi exatamente quando Mayara terminava esta frase que os seis caças inimigos ficaram visíveis saindo por detrás de uma camada de nuvens violáceas. Eles sequer emitiram um sinal, pareceram já saber quem eram os Arcanjos, e começaram a disparar. Tinham um aspecto sólido e frio, como um punhal prestes a entrar na carne. Ao contrário dos caças terrestres, que usavam micromísseis como munição, os caças inimigos usavam alguma coisa parecida com “nódulos de plasma” no lugar de balas, e esses “nódulos” espocavam e passavam como raios laser a volta dos dois Arcanjos, sendo que um dos tiros pegou em cheio o sistema de giro do deck de metralhadoras direito da nave de Mayara, explodindo em chamas. Sistemas automáticos de extinção de incêndio cuidaram do fogo, mas aquele deck de metralhadoras não girou para trás quando os Arcanjos viraram suas armas para os inimigos e começaram a cuspir fogo cerrado.

_ Para que quer tempo?! _ Berrou Stu, seu caça sendo sacudido pelos disparos inimigos e por suas próprias metralhadoras.

_ Só... Me dá esses segundos!! _ Gritou Mayara _ Estou com um deck de tiro avariado, mas os sensores ativos estão operacionais... Segura minha retaguarda!

_ Ah, com o maior prazer! _ Mas Mayara estava de cenho franzido, observando febrilmente seus sensores, e não deu atenção ao gracejo de Stu, que, por sua vez, fez seu Arcanjo girar no próprio eixo, e abriu fogo manobrando seus decks de armas de modo a seguirem inexoravelmente a nave Inimiga mais ao centro. O que fez este “bucha” explodir num globo de fogo, abrindo a formação inimiga. Temerário ao extremo, Stuart colava seu Arcanjo aos inimigos, não lhes deixando espaço para mirar, e atirando neles sem parar, atraindo-os para longe da posição da jovem piloto.

_ Mayara, não estou te vendo! você tá bem, moça?! _ Gritou Stu, sendo duramente atingido em uma aleta traseira, que incendiou mas se apagou. Ocorre que os canais de comunicação estão nas aletas traseiras, e agora mesmo que Stu estava surdo-mudo no espaço, em meio ao combate. _ Meu Deus! Mayara, se cuida! Volta para a Mahatma!

Foi quando ele viu o Arcanjo de Mayara surgir de um oceano de névoa azul abaixo deles, e disparar contra um inimigo. A esta altura Stu, e agora Mayara, já haviam abatido três “buchas”, e os outros, reforços de pelo menos mais dez inimigos, vinham rapidamente em sua direção. Rodopiavam uns sobre os outros no espaço, trocando tiros. Stuart fazia sinais desesperados com as duas mãos, largando perigosamente os controles, quando passava pelo jato de Mayara, indicando que ela deveria “se mandar”, voltar a Mahatma e deixar Stu para trás. Mayara por sua vez fazia sinais engraçados, indicando as nuvens azuis, e tentando imitar um gato... Ou um dragão...

_ O que é isso?! _ Perguntava Stu, atônito, desviando-se por pura sorte de uma chuva de fogo inimigo _ Caraca! O que quer dizer... Espere, meus sensores ativos não estão legais mas...

E, enquanto pressionava o botão de disparo e mandava mais um inimigo para o inferno, Stuart deu um violento soco contra seu painel de sensores, e os pôs a funcionar, apontando suas antenas para a nuvem que Mayara indicava. Ao fazer a leitura de decomposição luminosa, Stu soube do que era feita a nuvem, e berrou:

_ Puta que me pariu, Mayara, você ganhou nossa aposta!

_ Ei! Eu ouvi essa! _ Gritou ela de volta, o caça dela quase esbarrando no de Stu.

_ Ah, o rádio, o rádio ta funcionando de novo! A curtíssimo alcance podemos falar! Maldita hora para milagres mecânicos. Mayara, presta atenção aê, cara!!

Stu guinou seu caça protegendo o Arcanjo de Mayara de um disparo certeiro com a “barriga” de seu próprio jato. Imediatamente os alarmes começaram a berrar na cabine de Stu, avisando que o casco havia sido comprometido violentamente. Ele estapeou os controles até calar o alerta. Mayara fez um sinal de mergulho, e ambos entraram como balas nas nuvens azuladas, seguidos por cerca de onze “buchas”. Todas as naves deixando rastros em chamas atrás de si. Assim que saíram do outro lado, Stu e Mayara lançaram todos os seus mísseis Dragon, que se soltaram de suas carlingas e descreveram ligeiras curvas, mergulhando nas nuvens um momento depois, e explodindo. Quarenta mil graus explodindo de uma só vez dentro da nuvem de hidrogênio altamente volátil cozinharam todos os onze “buchas”!

_ Ahhhhhhhhhh!!! _ Gritava Mayara, a pura euforia da vitória _ Ahhhhh!! Funcionou, gato! Funcionou! Minha idéia funcionou!! Ahhhhhh!!! Caracahhhhhhhh!!! Urrúúúú!!!

_ Agora eu sou gato, é? Tá melhoraaando a parada! Parabéns, tenente Mayara! Parabéns, cara, por perceber que a nuvem era hidrogênio, e ter a idéia de usar ela como arma! _ Gritava Stu, também feliz. Mas então ele percebe que havia uma nave maior, uma espécie de escolta, uma espécie de bombardeiro com uma aparência ainda mais ameaçadora que a dos caças fusiformes, vinha atravessando o restante das chamas da nuvem de hidrogênio. _ Hãã, Mayarinha, temos um amigo chegando só agora na nossa festa!

_ O quê? Aonde? Ah... _ E justamente aqui a tal nave, parecendo um bombardeiro, dispara um canhão, e um raio resvala na asa esquerda de Mayara, arrancando aquela parte da fuselagem com brutalidade, e o tiro ainda prossegue depois do estrago no Arcanjo, acertando o casco distante da Mahatma e explodindo em uma bolha de chamas branco-azuladas. A concussão no Arcanjo da garota foi tão forte que arrebentou os cintos de segurança de Mayara, a garota foi remexida pela inércia dentro da cabine como se estivesse em um grande liquidificador, deixado-a com várias marcas roxas em seu corpo moreno, e gritando, com mais raiva que medo enquanto era chacoalhada: _ Di-i-i-diabos! Ah! Diabos! Car-r-r-ralho! Por-r-r-rra!! Que raio foi isso?? O que esse filhodeumaputa atirou em mim?!

Stu não perdeu tempo respondendo, as chamas comiam a parte traseira do caça de Mayara, ela mal conseguia manter o jato seguindo em frente, e ele precisava proteger a garota de um segundo tiro. Stu posicionou seu caça entre o Arcanjo de Mayara e o bombardeiro “bucha”. Não foi a coisa mais fácil que o piloto fez na vida, afinal um disparo do bombardeiro, que apenas resvalou em Mayara, quase a destruiu, se seu Arcanjo fosse atingido em cheio, ia ser uma coisa muito, muito ruim e definitiva para ele. Definitivo que quero dizer é no estilo “morrer definitivamente”, claro.

Stuart girou seus decks de tiro e começou a disparar, tinha ainda alguma munição, mas era pouca. Chegou a cogitar o uso de mísseis nucleares, mas a curta distância só se fosse para levar o “bucha” para o inferno junto com ele. De todo o modo, as rajadas de tiros de seu Arcanjo, para trás, surtiram efeito: o bombardeiro agüentava os tiros, mas a precisão de sua mira ficava comprometida, e ele errava os tiros em Stu e Mayara.

_ Acelera, Mayara, entra varada no hangar, qualquer um! Se a porra da comporta estiver fechada abre a tiros, mas vai! Vai!! Vai!!! _ Ordena Stu.

_ Sai de trás de mim, Stuart! Você vai se ferrar! Teu caça tá mais inteiro, dá prá você chegar mais rápido na Mahatma! _ Responde Mayara, girando a cabeça, olhando sem parar para trás, com medo de não ver mais o companheiro ali. Pois Stu, atrás dela, aparou o primeiro tiro direto do bombardeiro que lhe destruiu toda a parte traseira superior de seu caça em um redemoinho de fogo azulado. Era plasma, incandescente como labaredas solares. Stu sentiu o calor atravessando o isolamento térmico de sua cabine, e percebeu o visor do capacete de seu traje pressurizado de piloto embaçar imediatamente, tal foi o esforço de seu organismo de equilibrar o brutal aumento de temperatura. Suava tanto que os desumidificadores de seu traje ameaçavam falhar. Por alguma sorte inerente ao fato de ser agora um combatente do vácuo, a queima da parte traseira de seu caça (cuja fuselagem rangia e berrava, retorcendo-se!) não atingiu seus tanques de hidrogênio blindados, não destruiu seus propulsores (que eram montados nas laterais dos Arcanjos) e não desativou suas metralhadoras, que cuspiam fogo como o diabo gosta! Tanto que o bombardeiro perdeu seu canhão principal em um esgar de chamas rubras quando as balas de Stu o acertaram em cheio. Mas o bombardeiro “bucha” tinha outras “garras” e um grupo de seis disparadores de nódulos de plasma entrou em ação, despedaçando aos poucos o que ainda restava do Arcanjo de Stu, que lutava com os controles com tanta ferocidade que não percebeu que gritava como um cowboy sobre a pior e mais selvagem das montarias de rodeio! Por sua vez, Mayara, que possuía um dos manobradores avariados e só conseguia ir mal-e-mal em frente, berrava para o amigo:

_ Stu! Stu! PeloamordeDeus, homem! Sai daí! Vai morrer!!

_ E eu queria mesmo viver para sempre, juro pelo Arizona! _ Berrou ele num arroubo de humor negro desesperado _ Mayara! Foi bom demais voar com você, garota linda!! Será que vou assustar ele como assustei você?

Eles haviam passado sob a imensa estrutura da Mahatma, que parecia, de certo modo, aturdida, parecia ter sido pega de surpresa, mas, sem que os pilotos notassem, abria suas imensas asas agora, que se transformariam em pistas de pouso de emergência para Stu e Mayara se voltassem para casa. Os dois Arcanjos saíram da sombra da imensa nave terrestre ainda com o “bucha” logo atrás atirando impiedosamente em Stu, cuja fuselagem do jato gritava e se desmanchava em fogo. Mayara sabia, com lágrimas de impotência amargamente brotando de seus olhos negros indígenas, que Stu pretendia fazer a manobra de parar seu caça novamente, mas podia sentir no fundo de sua alma que ele faria isso tão próximo do “bucha” que colidiria com ele.

_ Stu... Porquê vai fazer isso? _ Perguntou Mayara, em uma voz pequenina, embora decidida e sólida, triste e resignada.

_ Por que é a coisa certa, precisa de mais? Considere um presente...

_ Stu...

Stuart Dilon não esperou que a jovem amiga falasse mais, não poderia esperar, em poucos segundos não teria com o que colidir contra seu atacante, pois o resto de sua nave se desfaria. Acionou os retrofoguetes, freou subitamente o Arcanjo, e guinou o nariz para cima com toda a potência dos jatos de manobra da proa-inferior. Mayara, solta na cabine, segurava o manche com uma única mão, e se contorcia toda para trás (suas câmeras traseiras estava inoperantes), soluçando de nervoso e tristeza, era uma combatente agora, e ver um companheiro morrer em desvantagem por ela, rompia algo dentro dela. Viu quando o Arcanjo de Stu “parou no ar”, viu tudo como que em câmera lenta, chegou mesmo a ter um vislumbre do sujeitinho teimoso e “na marca” dentro da cabine do Arcanjo que iria barrar o “bucha” com o próprio “corpo”. Mayara Iandé viu mesmo os jatos de frenagem do “bucha” entrarem em “pânico”, sendo acionados a toda a potência para tentar um giro súbito. Mas a aguerrida piloto não viu que um momento antes de Stu fazer o que estava fazendo, toda uma bateria de canhões da grande e poderosa Mahatma se posicionou, travou o alvo, e disparou uma salva capaz de destruir vários bombardeiros “bucha” contra UM só. O que Mayara viu foi a salva simplesmente “passar” pelo Inimigo, pulveriza-lo, e prosseguir em direção ao infinito. O bombardeiro “morreu” sem reclamar, ele nem sequer explodiu, tamanha foi a força da carga que a Mahatma pôs sobre ele (não era a toa que os canhões de costado da Mahatma tinham sido apelidados, depois de um teste contra um asteróide, de “Os Furiosos Martelos de Thor”), e foi um tiro cirúrgico, pois Stu e o “bucha” estavam quase colados um no outro, e os gases incandescentes do que antes fora metal alienígena foram a única coisa que passou por Stuart, que do meio das chamas, teve algum tempo extra, e se ejetou de seu Arcanjo que explodia. Stuart foi lançado no vácuo a quase um quilômetro de Mayara, que conseguiu parar seu jato, com dificuldade, e resgatar o amigo. Ao se aproximar dele as chamas de seu próprio Arcanjo já haviam se extinguido e ela pode despressurizar a abrir a cabine, usando o rádio de seu traje para falar com Stu:

_ Quer dizer que tentou morrer para não pagar a aposta, véio?

Stu deu de ombros, flutuando no vácuo de ponta-a-cabeça em relação à cabine onde Mayara se esticava para lhe dar a mão. Ele respondeu:

_ Temos que conversar sobre isso, pivete... _ Sua voz continuava com aquele sotaque ianque, mas estava exausta. Mayara não sabia ainda, mas Stu havia injetado (com o auxílio do equipamento de socorro de seu traje) uma grande quantidade de drogas medicinais ainda a pouco, para se manter acordado. Ele estava de fato muito ferido.

_ Apenas uma... _ Foi dizendo a linda piloto enquanto fazia esforço para puxar a massa de Stu para dentro do Arcanjo (que era um modelo “monoplace”, o que significava que só possuía um assento, e que ela teria que enfiar literalmente o piloto resgatado entre as pernas, mas aquilo não eram horas para orgulhos tolos) _ ... Apenas uma pergunta, Stu: de quem é o caça que voltou até aqui com o piloto dentro?

Stuart calou a boca.

Um momento depois eles estavam cercados por uma escolta de Arcanjos, cujos pilotos os saudavam animados, afinal, Stu e Mayara tinham sido os primeiros! Os primeiros a enfrentar O Inimigo, e tinham vencido (ou algo radicalmente próximo disso) naquele “rito de passagem” entre meros pilotos para arrojados Pilotos de Arcanjos. Os outros Arcanjos puseram para tocar “Black Hole Sun” para seus campeões por um tempo, enquanto voavam em formação para casa. Através do rádio de um dos arcanjos que estava próximo a eles e retransmitia, o próprio ADCIC Alex Rhea falou com ambos:

_ Estão bem?

_ Sim senhor, Comandante, bem as pampas! _ Disse Stu entre resmungos de dor. Mayara já havia percebido que o sujeitinho estava com queimaduras de segundo grau pelo menos, e, olhando para ele com reprovação debochada, respondeu também:

_ Estamos bem, Comandante. Obrigada.

_ Hãã, ei, Rhea, obrigado pelo tiro, cara, bem na hora. Como em Mercúrio daquela vez, fico te devendo mais uma. Sua mira continua “o cão”, heim, Comando!

_ Disponha Capitão. A nave que destruí não avisou os outros, não deixamos, mas eles podem estar à espreita, e logo darão falta desta aqui. Vamos silenciar rádios, acho que o inimigo pode estar nos rastreando por ondas longas. Contato só por retransmissão de ondas curtas. Venham logo, vou pôr umas surpresas para eles na superfície do planeta e colocar a Mahatma do outro lado. _ E desligou. Ao que Mayara fechou um canal privativo de comunicação (de ondas curtas, claro) com Stu, e perguntou:

_ Ele estava no comando dos canhões em pessoa?

_ Isso... Ahhh, hmmm (doía muito mesmo)... Ele atira melhor que eu, tenho que admitir.

_ Como soube que era ele?

_ Só o PRÓPRIO Thor usaria seu Martelo tão bem assim, meu anjo, só o próprio Thor. Vai aprendendo...

Com um pouco de esforço, a exímia Mayara pousou o aparelho, e foi festejar com os jovens amigos. Dispensou qualquer droga que lhe foi oferecida durante os festejos. Rhea manteve a nau capitânea em estado de alerta laranja, mas decidiu deixar o embarque de material nos rovers para os robôs, e permitiu que os jovens comemorassem por uma hora enquanto a Mahatma era posicionada na sombra do planeta em que estavam instalando uma base de mísseis. E por falar em mísseis, foi aqui que um robô (que deveria reconhecer a marca de Stu no míssil com defeito) decidiu embarcar o artefato nuclear 0013 no land-roover que iria descer ao planeta e instalar os últimos mísseis de defesa. Era um planeta estéril, mas que possuía um objeto alienígena de valor inestimável no local onde estavam sendo instaladas as armas de defesa, um mecanismo de controle parecido com o Vigilante do Abismo em Júpiter, e consequentemente, naquele setor do espaço, era o único ponto de acesso à rede de Portais Estelares.

Já Stuart Dilon, enquanto era tratado por robôs na enfermaria por quase uma hora, ficou imaginando “o que” teria de pagar à Mayara pela corrida que perdeu, então o colocaram para dormir. A tecnologia médica de século XXII era ótima, mas às vezes era melhor pôr pacientes para dormir, ainda. Assim que o capitão acordou foi iniciar seu turno e verificar relatórios, não houve mais ataques de “buchas”, Mayara ainda estava “pensando” na “prenda” que queria, e, assumindo seu posto no comando, Stuart soube que a nave de carga com o land-rover carregando os mísseis já estava na superfície do planeta. E o veículo se dirigindo ao ponto onde deveria desembarcar as armas nucleares, que devido ao estado de defesa laranja, estavam sendo armadas agora. Os olhos arregalados de Stu viram o momento exato em que duas coisas ruins aconteceram. A primeira, um rápido sinal de rádio fez uma linha de dados vermelha se acender no monitor de controle do rover, na ponte de comando da Mahatma, indicando que os mísseis (inclusive um de número 0013) estavam armados. A segunda, sondas automáticas de rastreio, deixadas do lado iluminado do planeta, informavam um enxame de naves Inimigas, se aproximando lentamente, mas inexoravelmente. Rhea disse, súbito:

_ Cessar todas as comunicações, eles estão nos procurando. Acionar a autodestruição das sondas de rastreio do lado iluminado. Stuart, pega a Kimberly e vá buscar o nosso pessoal na base de mísseis lá embaixo.

_ Senhor, há um míssil defeituoso naquele lote, e ele vai explodir. Eu o marquei como defeituoso, mas alguém o embarcou. _ Stu parecia constrangido como se o erro fosse dele próprio.

_ Malditas máquinas defeituosas! _ urrou Rhea, dando um potente murro no braço da cadeira do comandante _ Quanto tempo até explodir? Se eu os avisar os Inimigos certamente nos destroem.

_ Cerca de vinte minutos para a explosão, senhor, mas eu posso ir buscar eles. Eu consigo!

_ Vá, capitão, traga meu pessoal vivo. _ E acionando o sistema de comunicação interna, Rhea vociferou: _ Atenção, estamos em ALERTA VERMELHO! Repito, ALERTA VERMELHO, todos aos postos de combate! AGORA!

...

Foi por isso que Stu se arremessou sobre o planeta CGP0023-5, e era por isso que ele estava quase explodindo junto com a sua Kimberly. Sua nave fora preparada para o vôo em tempo recorde, enquanto Stu berrava para que Yo ficasse longe de Kimberly. A tensão era terrível, o capitão estava explodindo excessivamente com o jovem engenheiro, mas diante da situação, era falha puramente humana.

Solta do corpo da grande Mahatma, a viúva Kimberly despencou, a princípio leve e suave, em seguida acelerando furiosamente, em um turbilhão de determinação e fogo, em direção a jovens que, de outro modo, estariam condenados. Mas por enquanto, no meio do caminho turbulento de Stuart, esses garotos ainda estavam vivos, e estariam vivos por mais oito minutos, mais ou menos.

...

Mariana Giordano ajeitou seus dataglasses3 um pouco, pois eles às vezes escorregavam sobre o nariz, e respondeu:

_ Simples, há algo errado lá em cima, em órbita, e foi por isso que a Mahatma cortou comunicações. E nós vamos ficar calados, fazer nosso trabalho, e não fazer perguntas. Palhaçada! Nos tratam como crianças!

Ela conversava com seu amigo de jogos de xadrez e de desafios de engenharia, Pedro Herculano Rocha. Ambos jovens técnicos, capazes de “construir uma bomba nuclear inteligente com uma garrafa térmica, uns fios de cobre, um tablet básico, uma bala de revólver e um pouquinho só de plutônio”, como costumavam brincar com os outros. Estavam na superfície de CGP0023-5 desde o início das instalações daquela base automática de defesa. Mariana, atraente com sua voz rouca e suave, corpo esquio e cabelos de um incandescente ruivo que terminavam em pontas pretas, especialista em Análise de Sistemas de Informação e Processamento IA, estava ajudando a Tenente-Coronel Técnica Halulu Miamoto na instalação e programação final da Inteligência Artificial que comandaria a estação enquanto a Mahatma estivesse fora (trabalho delicado, esta IA, batizada na seqüência dos portais visitados de Chandra-V, teria de ser à prova de “hacking”, estavam torcendo para os Inimigos não possuírem capacidade de quebrar criptografia quântica). Já Pedro, moreno claro, mais de um metro e oitenta de altura, cabeça encimada de cachos negros presos por um arco com entalhes tribais, olhos rasgados, era armeiro, físico nuclear, matemático e nas horas vagas palentólogo. Ele era da turma que trabalhava diretamente com os mísseis sob orientação do Capitão Armeiro Ngoma Koriba. Pedro, em seu tom baixo e elegante, dizia à Mariana:

_ Claro. Só queria ver se você pensava igual a mim. Os comandantes desta missão não falam nada, mas o clima está ficando tenso. E parece que o capitão Koriba mandou mesmo que todas as comunicações fossem cortadas. Ei, como é que o pessoal de IA está se virando, sem a VRNet4 de vocês no ar?

_ Humpf! _ Fez Mariana, mostrando a Pedro que o tablet dela estava usando uma conexão NearGear, com alcance de meros dois metros e encriptação de dados tão pesada que era bastante lenta na transmissão _ Voltamos a idade da pedra, se eu te disser a taxa de transferência disto aqui você vai vomitar, bróder. Duzentos e cinqüenta e seis kbytes, acredita?

_ Vontade de vomitar dá, mas eu não faria isto em frente a uma dama tão charmosa! _ Piscou ele. Ao fundo um som sibilante indicava a corriqueira chegada de jatos vindos da Mahatma, se fossem Inimigos, centenas de alarmes estariam soando.

_ Ta me estranhando, Pedrão, sou a velha amiga Mary, valeu! Joga teu papo galante nas “avoadas” _ Disse ela, usando o termo corrente entre os engenheiros para designar as jovens pilotos da Mahatma, e dando um empurrão de brincadeira no rapaz, que fez cara de “machucou, humm”, riu, e abraçou a amiga, que riu também.

E enquanto mesmo brincavam um com o outro, ao pé de uma grande torre de antenas onde Mary verificava uma porta de comunicação de dados e Pedro ligava uma conexão dos silos de mísseis, três caças Arcanjo, voando em formação e num rasante extremamente baixo passaram por cima da base de mísseis. E os dois engenheiros tiveram que tapar os ouvidos com o estrondo supersônico que se seguiu.

_ Esses babacas exibidos!! _ gritou Mariana sobre o som dos caças que se desfazia aos poucos _ Ainda vão acertar alguma das torres com isso!!

_ É mesmo!! Olha, vou indo, os caças são sinal de que nosso último rover, com os mísseis finais, está chegando! Entre outros trabalhos sofisticados, seu amigo Pedro aqui tem que ajudar a descarregá-los, pois os robôs de carga estão falhando.

Trocaram um rápido beijinho nos lábios, coisa comum entre jovens amigos naquela época, e Pedro foi caminhando em direção a zona de descarga onde o rover deveria desembarcar sua carga. Mas os Arcanjos não vinham sozinhos, em algum ponto de suas trajetórias foram interceptados pela Kimberly Velvet, que, bastante avariada, com parte de sua fuselagem ainda em chamas, passou ainda mais baixo que os caças, esbarrou numa das antenas da torre, que explodiu em fagulhas (Pedro voltou correndo e abraçou Mariana, tentando protege-la o melhor possível de qualquer fragmento, por sorte ficaram ilesos). O bombardeiro de Stu deu uma guinada a quinhentos metros da torre que ele quase destruiu, usando seus jatos de manobra no máximo, e fez a volta, passando por cima do grande disco dourado alienígena que fazia parte do Pólo Diapositivo daquele planeta. Pousou quase em frente aos jovens engenheiros com os sistemas hidráulicos de seus trens de pouso chiando intensamente. A Kimberly inteira ainda vibrava e balançava, e algumas placas de seus escudos térmicos caíam em chamas no chão à volta dela, quando, na parte inferior da cabine, a escada de embarque dianteira desceu, e Stu saiu correndo por ela, o rosto encharcado de suor, o macacão aberto no peito, um olhar quase insano. Parou em frente aos jovens que só agora desgarravam um do outro, e ordenou:

_ Identifiquem-se, filhos. Nome e função!

_ Sargento Mariana Giordano, Sistemas IA.

_ Tenente Pedro Herculano, Armeiro.

_ Grande Sujeito Maneiro do Céu! _ Disse Stu, ambas as mãos projetadas para o céu, olhos fechados e a cabeça inclinada como um pregador no púlpito da igreja _ Obrigado! Obrigado meu Deus! _ E olhando para os dois disse: _ Preciso de vocês, agora! Um dos mísseis do último lote vai explodir em menos de três minutos! Onde o rover desembarca material?!

Pedro apontou e Mariana disse:

_ Trêss... ! _ Engasgou _ Menos de três minutos?!?

_ Menos de um se a gente ficar aqui batendo um papinho agradável. _ Disse Stu, sorrindo, e puxando os dois pelos braços na direção indicada por Pedro. Atrás deles vinham correndo os pilotos dos três Arcanjos, curiosos em saber quem era o maluco que os seguiu em um bombardeiro em chamas, e por quê. Mas Stuart, Mary e Pedro já tomavam uma boa dianteira, correndo para a zona de desembarque. Mas assim que eles chegaram lá foram interceptados por Ngoma e Halulu, que chegavam correndo, e perguntando:

_ Ei! O que houve, capitão Stuart? Qual o motivo desta algazarra? Estamos sob ataque?

Stu subia correndo no rover seguido de Mary e Pedro (os pilotos dos três Arcanjos chegaram, mas ficaram apenas olhando, tensos, o que acontecia), e enquanto identificava a bomba 0013, foi dizendo aos seus jovens ajudantes:

_ Armeiro, destampa isto aqui! Tu vai ter que parar esta joça! Abre o núcleo de comando do míssil pra mim, e conecta teu tablet nele, gracinha linda do IA! _ E voltando-se para os comandantes, disse _ Koriba, Halulu, boa tarde, he he, tem Inimigos por todo lado, e este míssil aqui vai explodir já-já, e estou tentando fazer um... _ parou de falar olhando para o imenso disco dourado, deitado no chão do deserto atrás dos comandantes da base, cercado por algumas colunas, e que era o “Vigilante do Abismo” dali. Então sem perceber concluiu a frase que estava dizendo: _ ... Milagre...

_ Impossível! _ Dizia Pedro nervoso, enfiado por dentro da bomba com um feixe de fios na mão. _ Ela armou e está em modo de segurança, códigos de desativação não estão funcionando! E tem muitos circuitos redundantes! Usei spray criogênico para congelar o detonador, mas nos dará apenas um minuto a mais numa bomba desta classe!

_ ... E o computador de bordo já se desconectou do detonador! _ Completou Mariana.

_ Aquilo funciona? Já sabem como abrir aquilo? _ Perguntou Stu para qualquer um.

_ Sim! _ Respondeu Mariana, falando rápido, voluntariosa, sem perceber respondendo na frente de seus comandantes. _ Abrir é fácil, o difícil é apontar na direção certa. Ta vendo aquele pequeno pedestal ali, sobe nele que ele lê sua mente e uma espécie de IA alienígena fala contigo, basta “pensar” que quer o portal aberto que ele abre, mas a IA parece estar com defeito, sei lá, ela nunca pergunta o destino, apenas abre ou fecha o portal! Tudo o que atingir o meio daquela plataforma dourada é desmaterializado quando o portal abrir!

_ Este é o “modo local”, para travessia de naves estelares ele projeta a abertura do portal em órbita, muito maior! _ Observou Halulu.

_ Então corre lá e abre essa “porteira” pra mim, ruivinha, faz favor! _ Ao que a moça deu uma olhadela para Koriba, que fez “sim” meneando a cabeça, e ela correu para o pedestal. Halulu então se virou para Stu, que já tomava o assento da direção manual do rover (que chegou até ali em piloto automático, piloto este que não era exatamente ágil o suficiente numa situação de emergência como aquela, já que ele é programado para levar com cuidado as bombas nucleares), e disse:

_ Capitão Stuart, e se este portal levar para algum lugar habitado? Tem consciência de que pode...?

_ Têm alguma outra idéia? _ perguntou Stu olhando fixamente para os comandantes por um segundo. Então, se acomodando no rover, ele emendou: _ Eu achei que não. Aê, podem abrir caminho? Valeu.

_ Vai se sacrificar, capitão? _ Perguntou Pedro.

_ Não, eu pulo antes do rover entrar no Portal.

_ O tempo está quase no fim, e... _ Disse Pedro, olhando rapidamente seu relógio de pulso, e estendendo a mão, para acionar a ignição do veículo. Assim que o motor deu partida ele se desligou, e o sistema de bordo alertou:

“Porta blindada aberta, o veículo não pode dar partida. Porta blindada aberta, o veículo não pode dar partida...” _ Pedro desligou o alarme. Dilon então perguntou, olhando o relógio:

_ Dá pra mudar ou quebrar isto rápido, armeiro?

_ ... Não... Merda... _ Fez Pedro, com amargura, e subitamente incapaz de continuar encarando Stuart.

Stu, sentando ao volante, semblante sujo e cansado, pareceu ficar subitamente muito mais velho do que era, e ficou olhando o disco dourado, como se ele fosse uma miragem. Fungou. Engoliu em seco. Deu um minúsculo sorriso. Olhou de volta para Pedro e disse:

_ Me faz um favor? Quando voltar a Mahatma encontra uma garota chamada Mayara Iandé, e avisa que vou ficar devendo uma coisa a ela? Ela vai entender.

Pedro fez que sim. Stuart “Kentucky” Dilon então fechou a escotilha blindada do rover militar, dando duas voltas no sistema de trava, que acendeu verde, e arrancou com o veículo, indo a toda velocidade em direção ao disco dourado. Cantarolando “Who Wants To Live Forever”, do ancestral Queen, ele passou (levantando terra e cascalho para todos os lados) ao lado de Mariana, que parecia travar alguma batalha silenciosa sobre o pedestal de controle daquele Portal. Então tudo aconteceu em uma fração de minuto, o portal abriu, o rover o atingiu, uma explosão luminosa cobriu toda a base de mísseis, varrendo tudo com uma concussão que derrubava qualquer coisa que não estivesse firmemente presa.

Mas no fim, tudo estava inteiro, e aos poucos o Portal Estelar foi se fechando, enquanto vultos caminhavam e se juntavam em meio à luminosidade que se desvanescia. Era o pessoal da base de mísseis que se juntava em frente ao disco dourado, liderados por Halulu, Koriba, Pedro, e Mariana. Esta última, de olhos marejados, começou a murmurar uma prece pelo morto.

...

_ Ei, May! Tem uns “rebites” aqui querendo falar contigo! _ Gritou um jovem piloto que tentava consertar um engate de cabine quebrado, encarrapitado sobre um Arcanjo que parecia que não iria voar tão cedo. Ao ouvirem o termo “rebites”, o apelido dos engenheiros, Pedro e Mariana torceram os narizes, mas estavam ali para outra coisa, poderiam brigar mais tarde. Estavam nos hangares da Mahatma. E Mayara saiu debaixo de um motor, encarando os dois engenheiros que nunca havia visto antes, um moreno alto e atraente e uma ruiva com cara de muito inteligente. Iandé foi dizendo:

_ E aê, coé a de vocês? Em que posso ajudar?

_ Acabamos de subir a bordo. _ Disse Mary _ Viemos lá debaixo, do planeta. Um míssil com defeito foi enviado pra lá...

Em algum lugar o barulho de uma pesada caixa de ferramentas sendo derrubada sobre alguém, e uma voz com sotaque espanhol berrando uma imprecação.

_ Eu sei, ajudamos a Kimberly a ficar pronta para zarpar e dar uma mão a vocês! Mas tudo acabou bem, não é? Cês estão aqui. Beleza, parabéns. _ Disse Mayara, olhando para os dois.

_ Presisamos falar com você _ Disse Pedro, devagar _ sobre o capitão Stuart.

Várias cabeças se voltaram para eles, e Mayara, sentindo um estranho nó na garganta, tentou parecer durona e disse que os engenheiros poderiam falar na frente de todos. Pedro contou o que aconteceu na superfície de CGP0023-5, e transmitiu o recado de Stu.

Após um longo e constrangedor silêncio, Iandé agradeceu, apertou as mãos deles, e saiu.

Meia hora depois estava de traje pressurizado, sentada sozinha do lado de fora do casco da Mahatma. Ela sabia que Stu era um “prego sacana”, sabia que ele “brincava com tudo”, e sabia que ele não queria, de verdade, só “comê-la”, sabia que ele era um cara muito legal e que implicava com ela, mas que gostava de verdade dela, e que ela havia encontrado (e perdido) em um curto espaço de tempo, um grande amigo. Mayara chorou, sob os bilhões de estrelas da noite eterna, por quase uma hora, antes de voltar para dentro, para o calor do coração da Mahatma.

...

Com a base de mísseis funcionando, e usando o planeta como escudo, a Mahatma começou a se afastar. O que foi uma sorte, pois seis horas depois de sua partida, o planeta foi sitiado pelas naves Inimigas, que estacionavam a toda a volta daquele mundo. Mas Chandra-V, operacional, não deixava ninguém chegar perto do Pólo Diapositivo de controle do Portal. Qualquer veículo ou nave que se aproximasse era atingido por armas nucleares. Sobrava aos alienígenas sitiar Chandra-V até a munição dele acabar ou bombardear a base, mas isto destruiria também o Portal. Ao menos Rhea conseguira um impasse, e tempo para poder terminar de reparar a Mahatma. Ordenou que a nave se deslocasse até um gigante gasoso próximo, numa viagem pelo espaço normal que levaria quase dois meses em velocidade máxima. Chegando lá a grande nave mergulharia na atmosfera superior com seus coletores abertos para recarregar combustíveis como hidrogênio e outros elementos. A operação foi bem-sucedida, e agora a Mahatma continuava febrilmente seu trabalho de reparo. Mas como todos estivessem muito exaustos e abatidos, o ADCIC ordenou que todos dormissem em turnos um pouco mais longos, de modo que por várias horas uma estranha calma tomava conta na grande nave de guerra. E foi num desses momentos de calma que Alex Rhea ficou sozinho. Carrancudo, estava sentado na penumbra, na sala de comando da nau capitânea, pensando em como era duro perder os amigos em combate, e que deveria programar uma cerimônia apropriada pela memória de Stu em breve. Sentiu-se mal, sentiu-se humano e falho, sentiu que a qualquer hora poderia perder outras pessoas, ou poderia perder sua própria filha, Alexandra, que era um dos pilotos de Arcanjos e poderia morrer feito a mãe, entre metal retorcido e em chamas... Havia uma garrafa de cerveja em sua mão, e ele levantou um brinde para os monitores frontais que mostravam a imagem de sondas de rastreio que, de longe, filmavam o planeta CGP0023-5, onde jazia o lugar derradeiro de seu primeiro oficial.

_ Ei, Stu. Guarde um lugar para mim além do infinito, está bem?

Silêncio.

_ Raios, porque não conseguimos ouvir os mortos?...

As estrelas emolduravam o planeta que de longe era até bonito. Nas telas ao lado, mapas digitais táticos mostravam os enxames de naves Inimigas formando quase uma muralha, uma muralha mortal em volta de CGP0023-5. Rhea esfregou os olhos e resolveu que era hora de passar em revista as seções de engenharia, e se levantou. Assim que a fechou a escotilha blindada da ponte atrás de si, o monitor frontal exibiu um sinal. Como qualquer sinal recebido disparasse um aviso ao responsável pelo rádio e ao comandante, a escotilha blindada da ponte voltou a se abrir, e Alex entrou, olhando curiosamente para a tela frontal, onde um relatório simplificado do cabeçalho da mensagem recebida estava impresso.

_ Deus... _ Murmurou o comandante.

Era uma mensagem de rádio, emitida a cerca de três horas da superfície de CGP0023-5. Atrás de Rhea, a capitão Fahima, responsável pelo rádio, entrou, chamada pelo mesmo sinal que trouxe Alex de volta. A mulher, de seus quarenta anos, traços médio-orientais, ela própria uma das raras sobreviventes intactas da tripulação original da Mahatma, leu os dados na tela, e disse, esboçando um sorriso perplexo:

_ Senhor. Isto é um milagre. O capitão Stuart ainda está vivo. Esta é a chave criptográfica de comunicação do tablet pessoal dele, se O Inimigo não consegue quebrar as chaves de Chandra-V, também não pode simular a de Stu. Ele ainda está vivo, senhor...

_ Sim... _ Disse o comandante Alex Rhea, sentindo o peso de suas responsabilidades ainda mais intensamente sobre si _ Mas por quanto tempo?


 FIM DO EPISÓDIO I


(Continua... Episódio II - “Dos Braços da Morte”)

________________________

Notas do autor:

1 – Plexxy ou Plexxyglass é uma espécie de metal transparente usado em cabines, capacetes, e escotilhas de veículos espaciais em Arcanjos.

2 – FV é sigla para Fazedora de Viúvas, uma arma do tipo fuzil usada pelos agentes C7 em Arcanjos. Existe uma variação de poder de fogo ampliado, chamada FV Vulcan, mas ela foi desenvolvida depois da partida da Mahatma, e não está disponível em Arcanjos.

3 – Os dataglasses são óculos que fornecem dados, fazem filmagem e transmissão de vídeo e áudio, trabalhando em conjunto com o tablet de um engenheiro, pode processar e fornecer qualquer tipo de informação computacional. Observe que, a exceção de quando as redes de comunicação estão cortadas, todo aparelho de comunicação e de processamento em C7-Arcanjos está “em rede” o tempo todo.

4 – A “internet em RV” do universo C7 e de Arcanjos. No sistema solar, a VRNet toma conta de todo o sistema. Isolados, os Arcanjos têm uma versão “menor e local” da VRNet Solar.


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