Marjorie

RPG:C7

Marjorie

Autor: Wagner Ribeiro

Suavemente as cortinas começaram a se recolher, e os vidros nas janelas panorâmicas começaram a clarear, de modo que os raios solares daquela manhã nítida e incandescente, na sempre bela Veneza de meados do século XXII, se imiscuíram, marotos como crianças brincando, no quarto. As mechas de luz tocaram primeiros os pequenos e bem feitos pés de Marjorie, a Diretora Comercial da galeria de artes chamada Antiqua. No mesmo instante o computador da casa sussurrou um delicado bom dia, e pôs a tocar uma canção: Thats All Right Mama, em uma gravação original na voz do eterno Elvis.

Meg, como preferia ser chamada por todos, sorriu e mexeu os dedos dos pés quando se fez sentir o calor morno do sol, cujos raios a princípio meninos, a essa altura já tinham passado à puberdade e acariciavam sensualmente as pernas torneadas da moça, como amante desejoso. Meg girou sobre si mesma, com um movimento gostoso e preguiçoso, seus olhinhos eram riscos puxadinhos, contra o sol morno mas radiante que veio lhe acordar. Meg faz aquele tipo de mulher que acorda atraente. Espreguiçando-se, foi dizendo:

_ Thats all right... Oh, Meg, você bem que pode amolecer e se acostumar com esta vida boa do futuro. Oh, baby, chega da vida dura do século vinte, agora você é como aquele garoto topetudo do desenho animado que foi parar no ano 3.000, você foi levada a um mundo muito doido, mas bem divertido e confortável de se viver... Hummmmmmm...

E se contorceu sensualmente na cama de novo. Parecia uma gata branca, que teimava em não desgarrar de suas almofadas prediletas. Muito embora estas almofadas não fossem propriamente dela, mas de seu namorado, o dono do Antiqua, um belo rapaz chamado Johnson Mitchel.

_ Tsc, tsc, Meg, garota _ murmurou num tom de galhofa _ comendo o chefe, que coisa feia...

E riu, bonita, enquanto agarrava o travesseiro que há apenas dois dias tinha acolhido a cabeça do homem por quem ela estava apaixonada, e com quem passava noites tórridas. Marjorie estava feliz como jamais ficou em toda a sua jovem vida, e estava quase convencida que, como costumava acontecer com ela quando estava muito feliz, desta vez uma coisa horrível não iria acontecer para lhe estragar a alegria.

Meg puxou o travesseiro dele para si, e abraçou e aspirou a maciez. Teve uma vontade incontrolável de rir de prazer, mas se controlou, achou que aquilo já seria encher demais o ego de Johnson, mesmo que ele não estivesse ali. Ela era orgulhosa assim mesmo, e ainda desacostumada aos padrões de comportamento dos computadores que tomavam conta das casas daquele futuro, não tinha certeza se o aparelho que dirigia a casa de Johnson podia ser dedo-duro e contar ao moço seus rompantes.

_ Onde você está agora, garoto safado? _ perguntou Meg ao travesseiro enquanto girava novamente na cama e ficava de joelhos sobre ele, como se montasse o corpo do próprio amado _ Sumiu de novo, em suas intermináveis viagens de negócios. Humpf! Se ousar me trair, eu juro que castro você seu... Seu...

Ela frisou novamente os olhos bonitos, e sorriu, aquele riso mais perfeito, mais encantador, que se irradia do rosto de alguém apaixonado. Marjorie deixou o corpo cair sobre o travesseiro, e disse:

_ Seu gostoso!

E lembrou, por mero prazer, de como havia encontrado Johnson quando ele e uns amigos legais dele tinham feito uma coisa muito louca, parecia coisa de filme de ficção científica: haviam viajado no tempo. Era duro para ela própria acreditar, mas em volta dela fervilhava o ano de 2.146 D.C., e isso era mais que prova suficiente para a incrédula Marjorie por fé no fato de que realmente viveu na realidade um conto de fantasia. Pois Johnson e amigos, em uma missão para a agência secreta onde ele trabalha (sim, ela sabe, sabe que o C7 existe, e sabe que John não pode falar com ela sobre isso. Há um acordo que Meg tem de cumprir de nunca falar sobre o assunto com ninguém, se quer viver) ele foi levado a 15 de novembro de 1998, na Califórnia dos Estados Unidos de então. Ali ele conheceu uma garota que tinha conseguido seu primeiro emprego descente em quase uma década, e que era guia em um parque de diversões. Havia sido uma vida penosa até ali, e Meg nem gostava de pensar em tudo a que foi submetida por sua mãe viciada em drogas, por padrastos sem fim, e pela própria e impiedosa vida. Mas na época, o emprego no parque havia sido uma benção. Um rapaz que a conheceu nas ruas se apiedou dela de verdade, como nunca nenhum outro havia feito (que fim terá levado o cara? _ pensava Meg) e arrumou um emprego para ela, que já havia conseguido há um ano sua primeira vitória, largar o vício em drogas. E foi aí, acreditando que finalmente poderia ter uma vida minimamente descente que Johnson apareceu, a arrancou de lá, a arrastou em uma aventura digna de um filme de ação, e a arremessou num futuro distante.

Meg lembrava muito bem que naquele momento, quando ele e os amigos tiveram que deixar ela para trás (agora entendia que se tivessem levado ela consigo, Meg teria sido morta ou coisa pior na tal agência. Mas naquele momento...) em um deserto no Novo México de século XXII _ que continua uma droga de deserto horrível _ e ela ficou se sentindo a mais filha da puta do mundo, a coisa mais desgraçada do planeta Terra: roubada de seu tempo, foi jogada fora como lixo em um mundo que não era o seu, e sentia-se como a única pessoa do mundo que havia visto algo fantástico acontecer, algo pelo que alguns dariam a própria vida para presenciar, mas que para ela só havia significado desgraça a abandono. Foi mais um dos momentos de sua vida em que gritou e berrou para os céus, perguntando porque tinha que ter acontecido com ela, que estava num bom emprego, e que tinha chance de ser feliz.

_ Por que?! _ gritava Meg naquele dia infernal perdida no meio do deserto _ Puta que pariu! Deus, por que me fez isso, seu... Seu... Ahhh, como eu queria conseguir xingar você, Deus! Ahhh!! Que droga! Milhões de porras!!! Maldito destino desgraçado da vagabunda da Marjorie!!! Eu xingo a mim mesma, está satisfeito, seu, seu... Ahhhhh!!!

Agora, deitada em brancos lençóis de seda, teve de se esforçar para não rir de si mesma, em suas recordações daquele dia. Lembra de ter gritado e caminhado por umas duas horas, e de ter praguejado tanto que tropeçou, desatenta, e caiu em cima de coco de abutre, ou alguma merda de pássaro grande. A coisa estava assando no sol, mas fresca ainda, e com umidade o suficiente para emporcalhar tudo o que lhe restara do uniforme de guia do parque de diversões, agora distante mais de um século no passado. Meg escondeu a cara no travesseiro, rindo de lembrar como ficou gritando coisas desconexas com a cara cheia de merda, e como arrancou a própria blusa, limpou-se da melhor forma possível, e continuou a andar de bermudas e lingerie (uma das suas piores, por sinal, poídinha no ombro esquerdo) em um sol de fritar o cérebro. Teria morrido em pouco tempo não fosse um maluco em uma geringonça que ele chamava de carro, mas que para Meg parecia um cinzeiro gigante, não tivesse dado um carona a ela no meio do nada. Uma pena que o desgraçado a vendeu a um homem e uma mulher. Lembrava bem deles, a mulher uma morena alta e muito bonita, mas muito maluca também. Aquela mulher é perigosa! O cara... Bem, ela se arrepia até hoje de ter estado com ele, e descobrir a pouco tempo que ele é na verdade um supercomputador. Certo que é um supercomputador muito gato, o tal Orwel, mas ainda assim, aquilo nem de longe parecia uma máquina... Cruzes, que horror.

Arrepiada, Meg lembra do que lhe aconteceu nas mãos deles, e lembra claramente do acordo que fez para continuar viva. Eles a deixariam viver uma vida quase normal, e ela fingiria amnésia total. Católica de criação, não de nascença, Marjorie, do meio de seus lençóis de seda, persignou-se e resolveu que não era bom nem sequer pensar naquilo, vai que alguém estivesse usando alguma máquina doida de “ler mentes” nela agora! Afinal, aquele século XXII era tão maravilhoso e cheio de surpresas.

Ocorre que, Meg não sabe muito bem como, acabou conseguindo fazer uns cursos, e ganhou uma documentação _ na realidade um único documento, aquela telinha flexível chamada Tablet Pessoal _ e uma identidade como se ela tivesse nascido em uma espécie de chocadeira de nenéns, uma tal clínica de engenharia clônica. Só faltava isso para coroar a porcaria de vida de Marjorie, ela se riu, ser filha de chocadeira. Mas depois de conseguir essa espécie de “cidadania do futuro” trabalhou em algumas coisas bobas, mas todas legais, nenhuma de baixo nível, só que sempre a demitiam depois de um tempo, e um dia, num pequeno quarto em que morava com uma outra moça, Meg recebeu um comunicado em que a Secretaria do Trabalho da ONU (que no século XXII ela havia percebido que realmente mandava em alguma coisa, e não era mero peso de papel) havia classificado seus conhecimentos, e a estava encaminhando a um emprego compatível. Meg achou aquilo uma babaquice, mas como o comunicado dizia que os Bônus Consumo dela iriam aumentar no novo emprego (e isso ela já havia entendido fácil que significa ganhar mais) ela foi correndo, ganhou uma passagem do governo e foi parar em Veneza. Nuca tinha estado fora dos E.U.A., e estava maravilhada com a viagem. Foi deslumbrada assim que bateu na porta da casa de seu empregador, e quase morreu quando quem abriu a porta foi nada menos que o próprio Johnson.

Claro que Johnson, do ponto de vista físico, era uma bela visão, um tesão, para ser clara, mas saber que o cara que a deixou para trás no deserto seria seu chefe! Ah, não. Porque não batiam nela com uma tábua pesada de uma vez, droga. Isso sem falar que teria que ficar perto daqueles malucos da agência secreta. Ela ficou furiosa, com medo, e confusa, tudo ao mesmo tempo, e teria desaparecido no mundo se pudesse, deixando Johnson e tudo aquilo para trás para sempre.

_ Ainda bem que não fiz isso... Oh... Ainda bem mesmo... _ e sorriu seu maravilhoso sorriso, ainda agarrada ao travesseiro. _ Eu preciso sair dessa cama, Deus misericordioso! Mas dá vontade de ficar aqui esperando ele chegar... Faturar, Meg, faturar, novo dia, nova grana, lembra?

Meg se sentia uma adolescente. Sentia-se como uma jovenzinha apaixonada por seu primeiro príncipe. Tinha ganas de dizer àquele homem bom e descente que o amava, mas aí se lembrava que amor era uma faca de dois gumes, que já haviam usado isso contra ela mil vezes no passado, e lembrava que Johnson tinha toda aquela loucura de agência que ela não entendia muito bem nas costas. Ah, e ainda tinha aquelas amigas... Lá ia de novo seu autocontrole para o brejo, e ela de novo feito uma adolescente, se enchia de ciúmes, e ficava pensando que, se tinha que fingir que não sabia das aventuras de Johnson pelo mundo afora como agente secreto, era duro de engolir não poder esclarecer tim-tim por tim-tim qual era exatamente a relação de Johnson com aquelas deusas _ hummmpf! que raiva _ Milena e Amanda! Duas agentes que eram no mínimo as duas mulheres mais bonitas que Marjorie havia visto até ali, e que viviam agarradas a Johnson. Será que a porcaria de seu “James Bond” tinha que ter essas coadjuvantes belíssimas agarradas a ele o tempo todo mesmo?

_ Senhorita Marjorie? _ fez o computador, delicado como sempre.

_ Hã? _ fez Meg, aborrecida de ser arrancada de suas reminiscências.

_ Há um senhor na porta de entrada, ele disse que veio ver a senhorita a respeito de um processo de resgate de dados...

_ Sei o que é. Eu contratei essa firma de caras que sabem onde procurar dados antigos e perdidos, eles são umas espécies de investigadores, só que de redes de computadores... Mas para que estou explicando isso? Deixa o cara entrar, ok? Eu já desço.

E isto foi feito. Marjorie teve tempo de tomar uma ducha rápida, vestir-se com a suave elegância da executiva que era, e descer ao hall de entrada da casa, para recepcionar o homem. E, com licença, disse brincalhona de si para si mesma, que homem! Másculo, grande, que olhar...

_ Ramirez... Guilherme Ramirez, senhorita Marjorie, presumo? _ disse ele, vários centímetros acima de Meg, que olhava para o alto sorridente.

...

Johnson imaginou que aquilo não era novidade nenhuma, mas ainda assim, disse em seus pensamentos, meio que como em uma nota mental, que Milena estava linda, deliciosa como sempre. Claro que o primeiro impulso apaixonado de Johnson já havia arrefecido faz tempo, e que ele sabia que entre ele e Milena havia um grande carinho e respeito mútuo,  mas certamente seria tolice de sua parte dizer que aquela mulher não mexia com ele. Não que Milena fosse a única ou a definitiva, pois certamente a clara e ruiva Marjorie era dona absoluta do coração e dos desejos do moço, mas era sempre um prazer apreciar discretamente as sinuosas a impressionantes curvas de sua colega de agência, Milena Ramirez.

_ Pronto Johnson?

_ Pronto, Mi.

_ Então vamos...

_ Arma engatilhada, e só atirar quando vir o branco dos olhos deles.

Milena, do alto de seus quase metro e oitenta, arregalou seus felinos olhos azuis, que ainda assim, assustados, guardavam sua eterna chama de tolerante inocência. Meio segundo depois a garota sorriu, e foi dizendo:

_ Ah, seu bobo, pensei que tinha desobedecido Orwel e estivesse armado.

_ Desobedecer ao computador que nos vigia às 24 horas do dia, e se errarmos nos mata? Ei, isso é uma boa idéia, mas não agora. Vamos, gata.

_ Tudo bem _ e respirou profundamente _ vamos lá...

Ela abriu a porta do helijato e desceu, elegante ao extremo em seu impecável terno, os cabelos muito negros presos com estilo internacional, um delicado e caro tipo de óculos terminal de dados, chamado comumente de dataglasses. Milena estava à altura do papel de investigadora-chefe do Departamento de Crimes Financeiros do Governo Mundial. E logo ao lado dela o curador de arte Johnson, também a expressão da elegância, num terno Gucchi-Loire legítimo. Eles deviam impressionar o pessoal daquela empresa, e iam fazer isso. O helijato com a logo da ONU na fuselagem pousou sem problemas no heliporto na cobertura do complexo empresarial Allcaki Commerce Tower, um enorme arco de placas polidas de plexiglass duraluminium e fibras carbonadas, que dominava a planície do deserto de Atacama, no Peru, com sua estrutura de 807 metros de altura, como fosse uma gigantesca e brilhante vela inflada atrelada a um mastro imenso fincado no meio da planície árida em um ângulo de 35 graus.

A Allcom era o maior centro de investimento multiplataforma do planeta, o que queria dizer que tinha um imenso capital de giro, que aplicava em áreas as mais diversas, obtendo sempre lucros assombrosos com a concretização de projetos diversos como o clássico mercado de construção civil, onde ela detinha patentes sobre sistemas de construção subterrânea anti-sísmica tão em moda hoje em dia, até o reaproveitamento de sucata orbital para produção de utensílios domésticos para as cozinhas das cidades dos Domos Lunares.

Entretanto, apesar de ser um monstro nos investimentos de risco, e graças a sua altíssima casta de profissionais analistas de mercado, e ainda por cima, graças a seus sofisticadíssimos sistemas de Inteligência Artificial que analisavam segundo a segundo as variações do mercado econômico, a Allcom era uma empresa atrelada a sistemas arcaicos de administração: ela pertencia a um grupo de acionistas. Um grupo pequeno. E um só deles era dono de mais que 60% das ações da empresa, sendo uma espécie de soberano absoluto. E para piorar, esse único homem não era envolvido com os negócios da agência secreta conhecida por seus membros como C7.

Trocando em miúdos, a agência era um órgão cuja função era regular, de qualquer forma que fosse necessária, eventos demasiado... Surreais, por assim dizer... Para que os organismos federais normais o fizessem. Coisas como contaminação da biosfera terrestre por agentes alienígenas, ou a intervenção em empresas que se tornaram poderosas demais a ponto de crer que seus lucros podem estar acima dos interesses da humanidade.

_ Eles podem nos ouvir, Mi?

_ Estão monitorando, mas nossos braceletes estão interrompendo a percepção dessa nossa conversa como ela realmente está acontecendo, mas não mova demais os lábios, podem haver sistemas de detecção de movimento labial.

_ Ok. Será que teremos uma péssima recepção?

_ Receio que sim, querido.

_ Bem... Creio que armas seriam úteis.

_ Mesmo com toda a nossa tecnologia, elas seriam detectadas, e aí não conseguiríamos sequer entrar no prédio.

_ Certo. Eis o elevador. Nenhum funcionário veio nos receber...

_ Previsível, a Allcom acredita que seus funcionários humanos devem estar cem por cento empenhados em atividades mais nobres, e a empresa também tem um orgulho desmedido de seu prédio sede, onde tudo funciona “organicamente” sozinho. Vantagem prá gente, teremos um apagão no 203o andar, o que nos permitirá descer três andares e chegar ao dodecaedro...

_ Sei disso de cor, está repassando os planos?

_ Oh, John, desculpe, tenho esta mania desde que era policial de ficar repassando as coisas no último momento. Desculpe.

_ Adoro sua voz. Me acalma. Fala a vontade, gata.

Ela sorriu em resposta, um pequeno mas meigo sorriso, já quando passavam pelo 432o andar e desciam vertiginosamente, embora dentro do amplo habitáculo do elevador, o ambiente fosse de calma absoluta.

_ A música ambiente é Brahms, não é? _ perguntou Johnson enquanto digitava comandos em seu bracelete.

_ Oh-oh, me pegou, não tenho certeza.

Sem parar de digitar, John apurou os ouvidos, e assentiu de forma profundamente positiva.

_ Brahms, certamente. Vou iniciar o ciclo do acidente, ok?

Milena afastou uma mecha de fios negros que havia caído de sua testa, e sorriu nervosa. Respirou fundo e disse:

_ Tudo bem, vamos lá!

E na sala de controle do prédio, EA 02, a Inteligência Artificial responsável por monitorar, entre outros milhares de coisas no prédio, os sistemas dos elevadores executivos, detectou falha grave, e tivesse resposta emocional plena, teria ficado consternado ao avisar a direção da empresa que um dispositivo antiterrorismo nunca usado explodiu o elevador Harpia, e acabou por matar dois funcionários da ONU em visita. O destroço do habitáculo ficou contido no tubo de elevador a que pertencia, a altura do 203o andar, e não pode causar maiores danos a estrutura do prédio-mãe, como o dono da Allcom preferia que se referissem a sua sede.

...

Ramirez tinha que admitir: a moça era muito bonita. Miudinha, branquinha, certo que ele preferia cabelos negros, mas ela era uma linda ruiva. Linda mesmo. Esperava que não tivesse problemas com ela, já que geralmente ele tinha problemas no trato profissional, como agente de recuperação de dados da empresa Recorda, com clientes mulheres, visto que, homem atraente, era casado e feliz, de modo que fugia invariavelmente de propostas que surgiam para “trabalhos fora do expediente”.

Uma providência que havia tomado era de se informar sobre a cliente antes do encontro de avaliação. E como de hábito havia retirado, da Rede Mundial, dados sobre Marjorie Dolores Greenbury, e ficou surpreendido com duas coisas: primeiro, já havia visto aquele rosto em algum lugar antes, não tinha certeza de onde, mas conhecia ou a própria Marjorie, ou alguma sósia muito parecida mesmo. E em segundo, ela era um clone, “fabricado” por uma empresa de marketing genético especializada em (e ele fez questão de anotar isso) “trazer pessoas que morreram há séculos de volta a vida, através de filtragem, manipulação e clonagem”. Em que pese que a moça estava contratando seus serviços para descobrir possíveis parentes vivos, já que seu DNA remonta a mais de um século atrás, investigar a empresa que “deu a luz” a senhorita Marjorie seria um começo óbvio.

Bem, fora esta origem insólita, a senhorita era moça saudável, muito trabalhadora, muito honesta, mas uma comerciante arguta e sagaz. Conseguiu descontos enormes da Recorda pelo trabalho de levantamento de dados. Ou seja, tinha pela frente uma mulher muito atraente, muito inteligente, e com uma lábia de “vender geladeiras a esquimós”. E o pior, não sabia por que, mas Ramirez sentia uma suave, sincera e desinteressada simpatia pela moça. Bateu a porta do endereço em que deveria encontrar com ela torcendo para que o afeto desinteressado fosse recíproco.

O computador da casa o recepcionou, e pediu que esperasse Marjorie na sala de estar. Quando ela desceu as escadas, Ramirez teve certeza de que as fotos na Rede não faziam jus a beleza da senhorita Greenbury.

...

EA 02 destinou uma unidade robô Aera 35 para o fosso do elevador Harpia e seis Cargo 90 para o 203o andar, a cata de possíveis avarias na estrutura do prédio-mãe não detectadas pelos sensores implantados nas paredes.

_ Unidade Aera 35 Prefixo PT37HR reportando: estou entrando no fosso Harpia pelo acesso 1103 na altura do 205o andar e descendo.

No escuro fosso, a unidade PT37HR era um disco, em cujo centro uma compacta e potente turbohélice o mantinha voando em quase qualquer altura (estava agora a quase 400 metros do chão). Em uma das laterais do disco estava seu pequeno rosto metálico com dois olhos sensores. O rosto era ladeado por pequenos braços telescópicos com garras sensíveis nas pontas. O Aera voava com um zunido característico, e passava entre torvelinhos de fumaça vindos dos destroços dois andares abaixo.

_ Unidade Aera 35 Prefixo PT37HR reportando: vou acionar os gravadores de vídeo, e as luzes externas.

Mais ao lado dos braços telescópicos, duas esferas se acenderam, e potentes fachos de luz talharam a escuridão fumarenta. No segundo seguinte, podia-se ver o habitáculo do elevador Harpia, que havia sido perfurado várias vezes por potentes raios laser embutidos nas paredes, o que, em caso de haverem terroristas a bordo, resultaria em eliminação de todos. Forros internos, pisos e sistemas eletrônicos incandesceram ao ponto de derretimento, e fumegavam, mas ainda assim os freios do elevador funcionaram como previsto, nesta emergência, de modo que o habitáculo não despencou até o fundo, causando maiores danos, mas estacinou logo abaixo do ponto onde os lasers o transformaram em peneira. Nada sobreviveria àquilo, era um percepção óbvia da cena, entretanto, seguindo sua programação e baseado em sua limitada inteligência, o PT37HR iniciu varredura de busca, enviando seguinte mensagem ao EA 02:

_ Unidade Aera 35 Prefixo PT37HR reportando: vou procurar possível sobrevivente. Tenho a descrição dos agentes do governo federal, e mesmo neste estado de mutilação, devo ser capaz de reconhecer a ambos.

Foi quando um estridente sinal cortou as comunicações desta unidade Aera com sua central de controle, e os próprios sensores auditivos do PT37HR perceberam o silvo de cordas ultrafinas de polímeros de carbono correndo em roldanas magnéticas. O Aera acionou sua propulsão traseira, e guinou rápido para cima, bem a tempo de ver duas pessoas vestidas com roupas colantes negras descendo feito aranhas atreladas as suas teias ultratecnológicas, e em menos tempo até do que o robô levaria para reagir, John agarrou suas pequenas manoplas, enquanto dizia a Milena:

_ Meu bracelete cortou  a comunicação dele com a base. E agora?

O pequeno Aera, sem compreender que estava prisioneiro, dizia:

_ Cavalheiro, por favor não entre em pânico...

_ Eu trouxe um brinquedo de policial acostumada com serviço com robôs. Jurei nunca usar uma dessas em Daneel, meu parceiro robô na época. Uma “lâmpada de apagar” _ e foi retirando da cintura um pequeno disco que de repente pareceu começar a emitir luzes estroboscópicas. “Instintivamente” o Aera tentou recuar, e antes que ele fechasse os escudos protetores dos “olhos”, Milena os manteve abertos, apontou a “lâmpada” para eles, e disse: _ Boa noite amiguinho! Veja, John, ele se desativou. A maioria dos positrônicos reage a uma série de códigos binários luminosos através dos sensores visuais entrando nesta espécie de estado de dormência por pelo menos uma hora. As “lâmpadas de apagar” são exclusivas da polícia. O C7 me arrumou duas. Me dê ele aqui...

Ela pegou o desfalecido PT37HR e acionou os controles em seu bracelete, que por sua vez ordenaram aos pequenos motores que os agentes haviam fixado três andares acima, quando deixaram o elevador sem que os sensores soubessem. Milena foi subindo, ao que Johnson perguntou:

_ O que vai fazer?

_ Colocar o pobrezinho em um lugar seguro. Já volto, John, vá abrindo a porta, mas não abra antes de eu chegar, ta bom?

_ Tea with me, girl.

_ O quê? Ah, bobo, abre aí, que já volto.

E em um longo “ziiiiip” Milena sumiu na escuridão acima, e John ficou, conectando seu bracelete ao controle da porta do 203o andar, e iniciando a abertura das travas de segurança. Sorria e balançava a cabeça, pensando: “Doce Milena, você não tem preço. Mesmo agora, preocupada genuinamente com a segurança de um pequeno robô positrônico. Ei, bem que disseram que o dono da Allcom era fascinado por culturas antigas, ele está usando um código baseado em um dialeto europeu da idade média, pouco conhecido. Uma exceção é este antropólogo aqui, claro. Prontinho, as travas estão abertas.”

Mas por um pequeno descuido, John acabou por escancarar as portas, e deu de cara com os seis Cargo 90. Assustado, mas ágil, agarrou as manoplas de um deles, que pairava mais perto de Johnson. Com um agitar da manopla, muito mais grossa que a do Aera, o Cargo apanhado por John se desvencilhou de suas mãos, e quase partiu o pulso do agente. Os Cargos faziam jus ao nome, eram muito fortes. O que Johnson havia agarrado inverteu a situação, e agarrou seu pulso como um torno hidráulico. Avisados de que algo ocorrera de errado com o Aera no fosso, os Cargos se precipitaram sobre o agente.

_ Tome John, nos olhos, basta pressionar! _ Disse Milena, que caíra do fosso, bem atrás do amigo, e se soltara com tremenda velocidade da corda de descida, e entregou a ele um das “lâmpadas”. A garota saltou sobre John e com a graça de movimentos de sua descendência havaiana, começou a “bailar”, rápida, entre os cinco Cargos que giravam no ar tentando agarrar a agente. Ela usava uma série coordenada de movimentos marciais, com a ginga de uma dançarina, para se esquivar das garras dos Cargos e tentar levar sua “lâmpada de apagar” até os olhos dos robôs. Eles, apesar de talhados para trabalhar com pesos, saíram-se muito bem na “dança” com Milena, mas depois de alguns momentos em que parecia que ela não conseguiria “apagar” nenhum, o primeiro tombou, e devagar outros o foram seguindo. Logo, a sinuosa e doce morena pegou o último, em um complexo giro de corpo.

Ela respirava fundo, sem fôlego, e preocupada, quase chicoteou John com seus longos cabelos negros, girando para olhar para ele, que sorriu, apontando o Cargo “desmaiado” ao seu lado.

_ Fácil, Milena. Até este robô aqui ficou estatelado vendo uma das mulheres mais belas do mundo em uma apresentação de ginástica olímpica. Que maravilha, Mi.

_ Ah... Isso?... Quase me dei mal... Foi Wushu... Tenho praticado... É um derivado mais rítmico do Kung Fu... Nossa... Deixe-me respirar... Um pouco... Puxa...

_ Precisa de ajuda?

_ Ah, estou bem... Só preciso respirar...

_ Pois é, precisa de ajuda para respirar? _ e sorrindo com certa malícia, apontou para a própria boca, e depois apontou para ela.

_ John!! Deixa a Meg ficar sabendo disso!

_ É brincadeira, Mi.

_ Rápido, vamos seguir até o Dodecaedro! Mesmo com a interferência de nossos braceletes, a Inteligência Artificial que comanda isso aqui já deve estar enviando reforços.

Foi quando um lampejo azul fulgurante, como o de um arco voltaico, atingiu as costas de Milena, e a fez cair sobre Johnson, em seu colo, como uma boneca caída da caixa de brinquedos (“uma boneca com um corpo de enlouquecer, claro”, pensou John, que nunca perdia uma oportunidade de elogiar uma mulher atraente). Ele abraçou a moça, sentindo-lhe a respiração, estava bem atordoada, mas bem. E se viu de frente para outros robôs voadores, cerca de quinze, esses evidentemente eram equipamentos de vigia e caça, já que possuíam um característico ar perigoso, motores rápidos que os faziam se mover ligeiros no ar, e tinham emissores de fortes descargas elétricas.

_ Pense rápido, John... _ disse para si mesmo.

...

Meg jamais vai entender o que a levou a fazer aquilo. De fato, foi um impulso incontrolável. Tomou a mão estendida de Ramirez na sua, olhou para ela, e, sempre sorrindo, deu um puxão no homem enorme, e o abraçou. E foi correspondida! Não, não foi um abraço que pudesse ser visto como malicioso, não, certamente que não, foi só um abraço. Um longo e afetuoso abraço, como dois grandes amigos que não se vêem faz muito tempo. Ela só se deu conta do que estava fazendo quando aspirou pela segunda vez profundamente, e o cheiro de Ramirez acionou um alarme em sua cabeça: esse não é Johnson, seu impulso insano mas fraterno pode e será mal interpretado!

_ Ah! _ fez Meg, sem soltar o homem, com vergonha de olhar para ele. Justo ela, que tinha endurecido com a vida que levou, ficando desconcertada com um abraço. O futuro a estava amolecendo mesmo...

_ Hã, senhorita Greenbury, eu... _ começou Ramirez.

_ Fica quieto! _ disse ela, numa quase ordem, não fosse a clara insegurança em sua voz _ Eu vou soltar você... Pronto. E vou explicar...

Longos segundos se passaram com Meg fitando Ramirez, que por sua vez estava pálido com o fato de ter abraçado com tanto afeto uma mulher que acabara de conhecer. Sua consciência lhe pesava feito um transatlântico sobre a cabeça. Ele não parava de tentar racionalizar a coisa, e percebeu que o prolongado silêncio consternado de Meg poderia significar que também ela não sabia o que havia acontecido. Ora, pensou Guilherme, um mero abraço, alguma carência afetiva, um simpatizar natural de ambas as partes, nada de malicioso, só isso...

_ Senhorita Marjorie, sinceramente, simpatizei muito contigo, é como se eu fosse seu amigo há muito tempo, eu...

_ Pois é! Pois foi exatamente isso! Por favor, não me julgue mal!

_ Jamais! Afinal foi um singelo abraço...

_ Em um cara que eu mal conheço! Que mer... Droga, que droga! Senhor Ramirez, acho que começamos mal nossa relação profissional.

Guilherme Ramirez fez silêncio. Pensou sobre a situação de forma a não cometer enganos e gerar mais mal entendidos, e ao encontrar uma linha de raciocínio mais coerente, finalmente disse:

_ Acho que podemos agir como profissionais, então, e começar novamente.

_ Sim, claro.

_ Posso me sentar?

_ Claro, sim... Ora, sente-se!

_ Obrigado. Senhorita Marjorie...

_ Meg.

_ O quê?

_ Me chame de Meg.

Ramirez fez uma expressão engraçada, de quem pergunta “tem certeza de que prefere este nível de intimidade depois de um abraço daqueles?”

_ Ora, senhor Ramirez, nós somos adultos, e até meus robôs me chamam de Meg... Se quiser ponha um “senhorita” antes, mas prefiro que me chame de Meg, simplesmente.

_ Claro, tem razão. Meg, pois eu estou aqui como funcionário em tempo integral a sua disposição, por três dias ou 950 gigabytes de informação, o que terminar primeiro. Estou hospedado em um hotel próximo, e de lá vou proceder às investigações que solicitou, pode me confirmar quais foram?

Marjorie estava olhando para ele, e esqueceu de responder. Não, não estava se interessando por ele, ao menos não como alguma espécie de amante, só tinha a fortíssima sensação de conhecer muito bem o homem na sua frente, sem nunca o ter visto em sua vida. Sabia por exemplo que poderia confiar sua vida ao caráter e a integridade dele.

_ Meg? _ chamou Ramirez pela segunda vez. O homem já estava ficando sem jeito, e crendo na possibilidade de que poderia ter sérios problemas com Meg, ele só não sabia quais seriam esses problemas, e também não atinava por que tinha a mais absoluta confiança na moça. Tinha aquela fortíssima sensação de conhecer muito bem a garota na sua frente, sem nunca a ter visto em sua vida. Ele achou por bem repetir de novo _ Meg?

_ Ah, oh sim, eu contratei sua empresa para investigar a minha genealogia, pois deve saber que sou um clone de uma garota que viveu em fins do século XX, e tenho o DNA dela, então gostaria de saber se a família dela, e de certo modo a minha família, ainda tem membros vivos hoje, neste seu século XXII. Quer dizer, neste nosso século XXII! _ e sorriu, bonita, muito bonita, com aquele ar de menina envergonhada, mordendo sem jeito seus lábios carnudos _ É mais ou menos isso aí que pedi.

_ Pois vou me esforçar para que seja isso e muito mais que receba, senhorita.

E Ramirez foi tamborilando comandos com as pontas dos dedos sobre a tela sensível de seu Tablet, enquanto pensava: “muito mais” foi horrível, cara. O que ela pode pensar que está oferecendo a ela? Deus, homem, aja com respeito e dignidade, você é um homem casado, e muito bem casado!

Ao cabo de alguns momentos, virou o terminal para Meg, e entregou a ela uma caneta, e completou:

 _ Pode assinar aqui, Meg?

_ Claro... Só me deixe ler o contrato, sim?

_ Ok, claro, por favor, fique a vontade.

E leu mesmo, cada palavra. Meg era comerciante até quando estava sem graça. Em alguns trechos erguia a cabeça do Tablet e perguntava a Ramirez o significado de alguns termos técnicos, ao que o homem explicava cuidadosamente. Deu-se por satisfeita, e assinou o contrato, mas resolver fazer uma observação e ergueu novamente os olhos, e indubitavelmente desta vez o homem não estava olhando para seus olhos, como fizera antes. Olhava agora, casualmente, para sua boca, ela podia sentir isso. Sem se dar conta, ela própria, Meg, fitava os lábios do homem também, mais como se esperasse que ele falasse alguma coisa, do que se esperasse ser beijada.

_ Ramirez... _ ela principiou, mas ele, agitado, foi dizendo:

_ E amanhã pela manhã eu já lhe trago o que conseguir hoje, mas por favor, atenda minhas ligações em seu Tablet Pessoal, pois posso precisar de algum detalhe ou alguma orientação adicional durante minha investigação, está bem? Ok, obrigado, e até amanhã, senhorita Marjorie. Ah, na prática, seus três dias começam amanhã... _ e ele sentiu-se estranho ao dizer aquilo, informação padrão da empresa.

Ele disse isto tudo como que de um fôlego só, e enquanto falava, juntou suas coisas rapidamente, dirigiu-se para a porta rapidamente, e com uma pequena mesura, saiu rapidamente. Do lado de fora, pegou uma gôndola que o levasse direto para o hotel onde estava hospedado. No caminho, chegou a iniciar uma discagem para falar com sua esposa, mas não se sentia sequer digno de falar com Amanda, e por mais que seu coração ansiasse ver o rosto lindo da mulher que mais amava neste mundo, não completou a ligação. Pensava febrilmente onde estaria a terrível atração que deveria estar sentindo por Meg para que cometesse esses deslizes tolos, mas mesmo sendo ela tão atraente, não era, de forma alguma, mais atraente que sua Amanda.

Já Meg permaneceu sentada no sofá da sala de estar de Johnson, examinando seus sentimentos, e percebendo que, ao menos conscientemente, não se sentia mais atraída por Ramirez do que por John. Na verdade ela só se sentia de fato atraída e interessada em John. Depois de algum tempo, acabou falando em voz alta:

_ O que diabos aconteceu aqui, heim?

E o computador que controlava toda a casa começou a falar e a descrever, desapaixonadamente, tudo que havia acontecido ali, desde quando Ramirez havia entrado na sala de estar, para horror de Meg, que agora tinha certeza de que a máquina tinha espírito de dedo-duro.

...

_ Se eu fosse você, rapaz, certamente não me moveria. Esses Vesta 6 são especialmente modificados para usar descargas elétricas que podem ir de “atordoar” até “matar” em um piscar de olhos.

As palavras vieram de um homem idoso, impecavelmente vestido, parado pouco atrás do enxame de robôs de caça a frente de Johnson. Era um homem franzino, de olhos miúdos, e ar enfadado. Havia algo de irreal nele, e John levou muito tempo para entender o por que de achar a figura do homenzinho tão estranha, tão alienígena. Em pleno século XXII, eram raríssimas as pessoas que nasciam... Diferentes... Baixas, esquálidas, gordas, que permaneciam assim. Era uma época que se trocava de aparência com quase a mesma facilidade de quem troca de roupas, e em geral uma pessoa que optasse por ficar “natural”, ou como diziam os jovenzinhos desmiolados dos quais John graças a Deus não fazia parte, ficar “feia”, essa geralmente tinha de ser uma pessoa com férreo caráter, com um equilíbrio e um amor próprio quase indestrutíveis. Por essas razões imponderáveis, Johnson simpatizou com este seu carcereiro, e adivinhou quem ele era, dizendo:

_ Boa tarde, senhor Kimsey.

_ Sabe bem quem sou, filho?

_ Sim, o dono de tudo isso aqui.

_ Sabe que está invadindo e que posso até matar você e esta sua atraente amiga por isso?

_ Sim senhor, mas creio que não vai fazer isso.

_ E me diga porquê não deveria fazer isso?

_ Não disse que não deveria, senhor, disse que não vai. Seu caráter não permitirá. E sua curiosidade sobre quem nós somos e o que queremos também não permitirá...

_ Filho, eu sei o que querem chegar ao dodecaedro.

Johnson não respondeu.

_ Pois eu mesmo os levarei lá, antes que esta jovem bonitinha acorde e me dê trabalho para colocar ela no dodecaedro.

E antes que John pudesse protestar, os Vesta dispararam violentos choques contra ambos, e ele perdeu os sentidos vendo os Cargos avançando, resolutos.

...

Ramirez chegou a portaria de seu hotel com um ar cansado, estava um pouco tenso com o mal estar que poderia ter causado em sua cliente, e com a sensação desagradável de ter de algum modo traído a confiança de sua esposa, mesmo não tendo feito absolutamente nada. Passou pala recepção com um rápido “boa tarde”, ao qual, sem que ele se desse conta, a jovenzinha do balcão respondeu com um suspiro e um sorriso desejoso. Enquanto o homem seguia meio cabisbaixo, ela pensava em mil maneiras maliciosas de lhe erguer o moral.

Sem olhar para trás, ele atravessou o saguão (a empresa em que trabalhava oferecia vantagens muito boas aos seus funcionários, principalmente àqueles que tinham que prestar serviços aos clientes da compania longe de casa, e os hotéis em que ficavam sempre eram cinco estrelas) e, passando rapidamente pelo bar, tomou um drinque sem álcool, e foi subindo quando ouviu uma voz dizendo:

_ Porque sem álcool?

_ Desculpe? _ perguntou ele, olhando para trás, e encontrando uma loira ricamente vestida em roupas negras e justas, mas elegantes e suavemente sensuais.

_ A bebida, moço?

_ Hã, desculpe, moça eu não...

_ Ah, homem, não estou lhe oferecendo minha companhia, só quero saber se percebeu que bebeu um drinque que quase ninguém bebe, um Singapura Free, sem álcool...

_ Me perdoe, por favor, senhorita, me perdoe, não quis ser tão grosseiro, eu estou tendo um dia terrível. Sim, eu gosto de Singapuras... Minha esposa, uma mulher que amo demais e que é a melhor pessoa que conheço neste mundo, já consome álcool por nós dois. Mas não me entenda mal, ela bebe socialmente, claro.

_ Claro, claro. Perdoe-me a curiosidade, é que eu também gosto de Singapuras, e raramente encontro alguém com o mesmo gosto. Se estiver hospedado aqui, podemos, com todo o respeito a sua senhora, claro, tomar alguns Singapuras juntos e conversar, estou em Veneza a pouco e não conheço ninguém por aqui.

_ Oh, senhorita, perdoe-me, mas vou ficar a maior parte do tempo em meu quarto, sou um Investigador de Dados, e...

_ Puxa vida, não diga... Como aqueles cavalheiros e damas, inteligentíssimos, da Memory, ou da Recorda, que levantam quaisquer dados perdidos no mundo?

_ Sim, senhorita, eu trabalho com a Recorda...

Ela estendeu a mão enluvada em seda para ele, e sorriu, seus olhos azuis brilhando de maneira doce e inspirando grande confiança. Ela pareceu realmente incrédula da coincidência, e foi dizendo, quando ele tomou a mão dela e apertou suavemente:

_ Me chamo Weber, Jussara Weber, sou médica...

_ Um prazer, doutora Jussara, me chamo Guilherme Ramirez Martins.

_ O prazer, claro, é todo meu. Pode estar curioso pelo meu ar de estupefação, mas eu explico: sou uma das proprietárias de uma empresa chamada No-one Enterprises, de pesquisas genéticas, e estou precisando muito dos serviços de uma empresa de investigação de dados...

_ Que nome curioso o de sua empresa...

_ Escolha de meu sócio, está em que andar?

_ Sexto.

_ As coincidências não param, posso lhe acompanhar no elevador?

_ Claro, senhorita _ e de forma cortês, Ramirez ofereceu o braço à moça, que o tomou com charme e elegância.

Subiram conversando somente sobre negócios, e ela esclareceu que o sócio havia desaparecido e junto com ele um conjunto de dados importantes e caríssimos sobre uma nova biotecnologia, e a doutora Jussara queria contratar a Recorda para rastrear o tal sócio, visto que partes do intrincado método bioquímico que desapareceu estavam surgindo aqui e ali na Rede Mundial. Ramirez ficou feliz em atender Jussara, e pensou que a empresa ficaria muito satisfeita que ele levasse já uma nova cliente após atender a senhorita Marjorie.

Ele acompanhou a agradável doutora até a porta do quarto onde ela estava hospedada, despediu-se, marcou para almoçar com ela no dia seguinte, e foi direto ao seu próprio quarto, ansioso por verificar se existiam mensagens de suas meninas (Amanda, sua esposa, e Layla, ainda no ventre da mãe) em sua caixa postal eletrônica. Uma mensagem curtinha de sua esposa dizia:

Meu querido, agora você pode falar só comigo. Quero receber mensagens e saber o que andas aprontando ... Saudades, Amanda.

Ramirez deixou a mensagem na tela enorme do Tablet que ocupava toda uma parede da sala do quarto amplo e luxuoso. A um comando vocal, as letras da mensagem de Amanda passaram a flutuar sobre o pôr do sol na costa da Jamaica como deveria estar acontecendo justamente agora lá onde morava com sua esposa. E com mais um pedido ao computador o quarto se encheu dos acordes suaves de Ocean Drive do Light House Family, uma de suas canções antigas prediletas para relaxar, e que já havia sido fundo musical muitas vezes de momentos de namoro tórrido entre ele e sua esposa.

O Homem tirou sua roupa e sentou-se ali, de frente para o grande Tablet, e foi ditando sua resposta (que iria por escrito também) embalado pela música. Estava muito feliz, como sempre ficava, quando podia dizer de todas as formas que lhe vinham à mente e ao coração “eu te amo” para Amanda. Começou brincando com elas, as duas mulheres mais importantes de sua vida, Amanda e Layla, mas logo em seguida se arrependeu, afinal, havia ocorrido aquela situação curiosa com Meg... Marjorie, senhorita Marjorie. Censurou-se por perder a concentração ao mandar seu amor para sua pequenas, e prosseguiu. Em certo trecho ele cita o nome completo de esposa e filha, e pára. Que sensação era aquela? Que prazer extremo era esse?

_ Amanda Vincentti Ramirez... _ Deixou as palavras deslizarem, como um beijo de mulher amada, por sua boca. As palavras saíram com um tal prazer, que Ramirez teve de sorrir, um riso bonito e masculino, com um suave toque malicioso, mas com o mais puro amor brilhando em seus olhos.

Aquela mulher (e que ela não ouvisse seus pensamentos, pois não entenderia jamais o que realmente estava tentando dizer) lhe pertencia, não por obrigação, não por conveniência, não por qualquer outro motivo que não fosse a própria vontade: ela queria ser sua, e ostentando seu nome, tinha orgulho de dizer “este homem é meu, e eu sou dele”. Sorriu cheio de prazer, e identificou o sentimento que o havia tomado quando pronunciou todo o nome de sua esposa: o mais profundo orgulho, a mais sincera honra.

Honestamente, comentou o que estava fazendo ali, mas algo que não sabia explicar o fez omitir a primeira coisa em toda a sua vida para Amanda, não entrou em maiores detalhes sobre o que havia acontecido com Meg, não porque pretendesse esconder de sua esposa, mas porque não entendia, e detestava falar sobre coisas que não entendia. Precisava de algum tempo para pensar a respeito, e entender o que aconteceu, e então, com a ajuda de Deus, conversar com sua leoazinha arisca em casa.

Preferiu falar do prazer que sentia com Amanda, da alegria sem fim e do prazer extasiante que a sua bela mulher fazia seu coração sentir. E enquanto ditava, embalado pela música, e por recordações ardentes e excitantes da mulher de sua vida, se esqueceu completamente de mencionar Jussara e a tal empresa, No_One. Aquilo não era importante.

Ao fim, ele enviou a mensagem, e ficou ali pensando em Amanda, pensando na filhinha deles que estava para nascer, sentiu amores e saudades, ficou um pouco triste, e imensamente feliz por partilhar uma vida, um tempo e um lugar em todo esse universo sem fim, justamente ao lado da pessoa que mais amava, que mais o fazia feliz. Outras canções do Light House Family foram se sucedendo, e Ramirez, cansado da viagem, acabou adormecendo, “feito um menino grandalhão” como dizia Amanda ao ver ele dormindo, no sofá da sala, do jeito que estava.

Enquanto ele dormia, suavemente, a imagem no Tablet mudou, e a doutora Jussara, ou, como era mais conhecida pelos agentes do C7 a mente cibernética da falecida doutora, a Inteligência Artificial No_One surgiu, em tamanho natural, e ficou olhando a princípio séria para o homem adormecido. Um momento depois, segundo a vontade dela, os projetores de holografia do quarto se acionam, e ela, sorrindo, deu um elegante passo à frente, e com mais três passos no ar, tocou o chão, bem ao lado do sofá. Ela estendeu a mão cuidadosamente, como se pudesse realmente tocar o homem e o acordar, e correu seus dedos luminosos pelo corpo descoberto dele, de um lado ao outro do peito largo, e foi dizendo, com uma voz que mesmo bela, parecia ecoar em um grande catedral, embutida de uma tristeza imortal:

_ Eu já fui uma mulher, senhor Ramirez... E já amei um homem, um belo homem como você. Agora o amor de Amanda Vincentti será meu arauto, e vai levar a espada de minha vingança até Orwel. Durma, durma profundamente, eu também aprendi alguns truques com o sedutor Ramon. Na realidade ensinamos umas coisinhas uns para os outros... Ramon, o pobre Stone, Peter, Natasha, Walkíria , Sílvia e eu. Éramos os melhores. Agora durma, meu lindo, durma...

E se sentou na beirada do sofá, fingindo acariciar os cabelos escuros dele. E ficou ali, anjo loiro, lindíssima e etérea, observando Ramirez, perscrutando seus sonhos, e ele sonhava com Amanda, mas sonhava, no fundo de seu inconsciente, com a bela Meg também.

...

Meg sentia seu coração pesado. Não era nenhuma dama de criação (muito embora, mesmo que ela não acreditasse, e sua autocrítica fosse pesada e negativa, tivesse um grande caráter) e não se incomodava, ou fingia que não se incomodava, com coisas triviais como consciência pesada. Mas a sua estava muito pesada. Estava em um pingue-pongue interior, onde, como em desenhos animados, seu lado mais prático, e por isso mesmo menos delicado, dizia que achar um homem atraente não era traição, que ela e Johnson eram adultos, e que ele muito provavelmente achava Amanda e Milena muito atraentes (afinal, se ele não achasse ele no mínimo seria um “broxa”). Por outro lado, seu lado emocional estava acusador, e ela percebeu que algo bem lá em seu âmago ficou tão... Confortável na presença de Ramirez... Era como se o conhecesse a uma eternidade. Tinha havido até o abraço, impulsivo, mas ela não poderia jamais negar, ao menos para si mesma, que havia gostado bastante do abraço. E não era porque o senhor Ramirez fosse tão atraente, isso era a coisa mais comum naquele século XXII, onde ela havia sido tachada se clone, mas todos pareciam clones de misteres e misses universo. Beleza física era comprada na farmácia a precinhos bem módicos. Não, Ramirez era muito bonito, mas havia um algo mais... E neste vai e vem de sentimentos Meg passou seu dia. Deprimida nem foi ao Antiqua. Chegou mesmo a começar duas ligações para Ramirez para dispensar seus serviços como investigador, mas sentiu vergonha de fazer algo tão infantil.

O sinal sonoro de seu tablet-pessoal disparou, e ela se atirou sobre o sofá (estava estudando um catálogo de pinturas rupestres na sala de leitura da casa de John) e despencou do outro lado, mas conseguiu pegar o pequeno tablet sobre a escrivaninha próxima tão rapidamente que ele nem chegou a tocar duas vezes. Acionou a conversação e disparou:

_ Precisamos falar sobre a rescisão de contrato...

_ Princesinha?

_ Ah! John?!? _ Curioso, ele estava transmitindo só o áudio, não sua imagem.

_ Está tudo bem?

_ Oh... Ah... Sim, está sim, amor... Sim, está! He, he. E contigo? Caramba, percebeu que é a primeira vez que me liga enquanto viaja? Está tudo bem?

_ Não, ruiva, não está tudo bem não...

O sangue de Meg gelou nas veias. Será que ele sabia que ela...? Que ela...? Ora, com os diabos, ela não fez nada! Mas se ele soubesse ela morreria. Ah, isso era paranóia! E da mais louca, claro que o assunto era outro...

_ Meg... Deus, Meg, estou tão decepcionado com você!

_ O quê? Que raios você está falando, John?

_ O nome Ramirez lhe diz alguma coisa?

_ Maldito computador!!!

_ Imaginou que eu não saberia?

_ John, calma, pára com isso, eu não fiz nada, se o dedo-duro desgraçado (que eu pretendo desmontar com minhas próprias mãos) do seu computador te mostrou algo, viu que não aconteceu nada.

_ Dane-se você, Marjorie.

_ O quê?

_ Vai-para-o-inferno. Entendeu?

_ John!! Eu, eu, eu... Essa reação é de um adolescente, cara...

_ Mulher minha, é só minha! Adeus, Meg. Pode ficar com a casa e o Antiqua, afinal de contas, sua judiazinha avarenta, não era isso que você queria?

_ John... Eu... Merda, Johnson, não faz isso n...

A conexão se desfez. Meg ficou vários segundos inerte, e respirando com dificuldade. Engasgou quando tentou falar algo, e tossiu, de tão nervosa. Quando uma gota de lágrima atingiu seu seio é que percebeu que estava chorando copiosamente. Aquele maldito século XXII a havia amolecido mesmo. Soluçava, e deixou o seu tablet-pessoal cair. Levantou trêmula e foi até o bar, e procurou o que beber, mas desistiu, e ficou tentando controlar o tremor de suas mãos. Estava indignada, estava magoada, estava bestificada, aquela não era a maneira de John falar, ele era um pouco brigão às vezes, mas em geral era um cavalheiro. Nos seus velhos tempos no século XX, Meg o teria chamado de otário, mas foi mesmo com John que compreendeu o prazer de ter um verdadeiro cavalheiro ao lado... Agora aquilo.

Ela sentou no chão acarpetado da sala, e ficou tentando se controlar, queria sair dali correndo, esquecer que um dia tinha conhecido Johnson Mitchel, aquele duas caras. Nem parecia ele ao “telefone”, ou tablet, ah, que inferno. E recomeçou a chorar, pensando em quebrar tudo a sua volta. Foi até o bar, agarrou uma bebida muito forte, e tomou um gole. ela pedia a Deus, queria que isso não fosse verdade...

_ Baruch Atá Adonai (1)... _ fez, enquanto sua expressão mudava de fúria indignada, para dúvida atroz _ Eu nunca disse a John que minha mãe era uma filha de judeus antes de se viciar em drogas e jogar tudo fora, antes de perder tudo, até o nome da família...

E correu de volta ao escritório, praticamente se atirou sobre o tablet-pessoal no chão, e discou o endereço da Recorda, muito gentilmente berrou com o computador que a atendeu, e conseguiu o endereço do tablet-pessoal de Ramirez, nem agradeceu, desligou e contactou Ramirez. Por alguma razão que ela não entendeu, o aparelho de Ramirez fechou conexão automaticamente, mas ela estava tão apavorada para falar com ele que nem se preocupou com isso, e pediu contato visual...

O aparelho dele estava no chão, ele provavelmente se despiu no meio da sala, e o aparelho, muito leve e inquebrável, foi deixado junto à roupa, e do ângulo em que estava posicionado, Meg pode ver Ramirez deitado como um belo modelo masculino de nu artístico... Por um segundo pensou ver um vulto ao lado dele...

_ Ramirez? _ Chamou baixinho, ele respirou fundo, mas não acordou _ Ramirez!! Acorda!!

Ele levantou, de um salto, parece que seu tablet-pessoal estava no último volume, e o homem grande, forte, e nu, olhou direto para Meg. Ramirez, mesmo tão moreno, ficou ruborizado imediatamente, e Meg empurrou de volta para o subconsciente um indistinto prazer de ver o investigador naquele estado, e foi dizendo:

_ Senhor Ramirez, desculpe, mas preciso do senhor aqui agora! Disse que posso conseguir qualquer informação em um limite de 950 gigabytes ou três dias, o que acabasse primeiro. Pois eu quero mudar meu pedido, quero que encontre alguém, agora, já!

Enquanto ela disparava essas palavras, feito uma metralhadora, Ramirez cobria o sexo com as mãos e olhava para os lados, tentando encontrar algo com que se cobrir, por fim desistiu, e ainda cobrindo seu corpo como podia, foi até o tablet-pessoal, abaixou e pegou suas calças. Enquanto fazia isso, Meg engasgou levemente, pois só o que ficou visível do homem foram suas coxas, nas quais os músculos se moviam, fortes. Mas obstinada, e querendo muito mais saber de seu John, prosseguiu:

_ Em quantos minutos pode estar aqui? Quer que mande alguém buscar o senhor?

_ Hã, não senhorita. Desculpe por estar assim, eu não sabia que meu TP tinha ficado ligado...

_ Não se preocupe, venha o mais rápido possível e traga seu... Seu... Seu equipamento, seja ele qual for...

Ele sorriu, enquanto abotoava a calça, que vestiu sem roupas de baixo, e apanhou o tablet no chão, focalizando-o em seu rosto. Passou as mãos num gesto automático pelos cabelos negros, e foi dizendo:

_ Tomo um banho, como alguma coisa rápida e me troco, e estou aí em 30 minutos, está bem?

_ Quinze. Não coma nada, eu faço alguma coisa para o senhor aqui, por favor. Se quiser pode tomar seu banho aqui também, aí talvez chegasse em dez...

_ Ô, não, Meg, eu deixo para lanchar aí, mas o banho será por aqui mesmo, no máximo em 30 minutos estarei aí, ok?

_ Venha rápido, por favor, é uma questão muito importante pra mim, Ramirez... _ e tinha uma expressão (ela mesma nem percebia) de menina abandonada, seus lábios carnudos e bonitos projetados em uma subliminar ameaça de choro, ela estava comovente e sexy ao mesmo tempo, de tal modo que Ramirez respondeu:

_ Sabe que não a deixaria na mão nunca, não sabe, Meg?

_ Sei disso, Ramirez.

_ Estou indo.

_ Obrigada, querido.

Ficaram se olhando, ambos sem entender porque dos tratamentos tão íntimos, desligaram sem mais uma palavra, e em 14 minutos, Ramirez chegou. Dispensou as gôndolas, e veio a pé, correndo e saltando pelas ruas estreitas e pontes de Veneza, por entre turistas e moradores, com seus equipamentos de investigação em uma mochila nas costas, e vestindo um simples conjunto de moletom cinza. Em mais 25 minutos havia montado todo o seu sistema Tablet especial de investigação de dados, e já estava procurando o paradeiro do senhor Johnson Mitchel. Os primeiros resultados estavam sendo animadores. Meg, apoiada em seu ombro direito, roia as unhas.

...

Mônica Kimsey era paraplégica. Um raríssimo comportamento anômalo de seus fluídos celulares fazia com que ela não pudesse se mover, apesar de possuir corpo normal e musculatura desenvolvida, não conseguia mover nada da cintura para baixo. Ela nunca quis fazer qualquer tipo de tratamento nanotecnológico ou biomecânico para corrigir sua disfunção, pois era crente, mais que qualquer outra, na pureza do corpo humano, e de que ele não devia ser maculado com próteses. Os médicos lhe disseram que ela tinha sorte que sua degeneração de movimentos não atingiu o sistema nervoso autônomo, senão era já teria morrido a anos. Agora, para felicidade de seu velho pai, o dono da Allcom, Gideon Kimsey, ela completava 39 anos.

O senhor Kimsey costumava brincar com a filha dizendo que o destino fora generoso com ela ao lhe dar toda a beleza da mãe (falecida a alguns anos de câncer não tratado), loira de brilhantes olhos cor de avelã, e poupar a menina da feiúra do pai. Ao que Mônica respondia que era grata a mãe pelos olhos de avelã, mas jamais poderia comparar isso a inteligência que herdara do pai. Ao que o senhor Kimsey apenas sorria, deliciado.

Mônica de fato era muito atraente, e como praticasse esporte a moda antiga, tinha braços fortes e compleição saudável, apesar de insistir em usar andadores (exoesqueletos que só usava quando estava trabalhando em laboratório e andar era imprescindível) e sua cadeira-de-rodas. O pai havia construído todo o edifício-mãe da empresa de modo que a filha pudesse trafegar por todos os lugares em sua cadeira-de-rodas tranqüilamente. Ela era a Diretora de Pesquisas da Allcom, e precisava de acesso a todas as instalações.

A senhorita Kimsey (que recebia em média cinco propostas semanais, mas que jamais se casou) tinha uma complexa gama de diplomas, mas se poderia dizer que era uma física da estrutura quântica e psicológica de Inteligências Artificiais. “Ela sabe como as máquinas pensam” diziam a boca miúda seus subalternos, “talvez até seja uma delas”. Mônica, claro, sabia disso, de como era vista por seus colegas de trabalho: mulher fria, intelectualmente madura, mas emocionalmente paralisada. Tão paralisada quanto eram paralisadas suas pernas. Não ligava, não se preocupava com isso, só tinha um objetivo na vida, ajudar o pai em suas aspirações maiores para a espécie humana. Não ligava para vida social, e quando sentia desejo, podia contar com um ou outro amante ocasional. Homens eram fáceis de manipular. Tão inertes intelectualmente quanto estava agora o invasor dentro do Dodecaedro. Muito embora ela tivesse de admitir que o homem era tremendamente atraente.

_ Acordem. _ veio para dentro da câmara chamada Dodecaedro a voz de Mônica pelos sistemas de comunicação. _ Vamos, senhor e senhora invasores, acordem!

John se ergueu com dificuldade, estava usando um colante branco repleto de sensores biométricos, os pequenos círculos deviam estar mandando para seus captores dados sobre as funções orgânicas deles. O homem ajudou a amiga Milena a se levantar, e conferiu que ela usava um sistema parecido. Não tinha a menor idéia de quanto tempo havia parmanecido desacordado.

_ Nossos computadores médicos acusaram degeneração celular quando tentamos remover seus braceletes, de modo que ainda estão com eles, mas aviso: qualquer manipulação dos mesmos implicará em choque elétrico que poderá ser vital. O Dodecaedro funciona como uma Gaiola de Faraday, então nenhuma transmissão de rádio vai entrar ou sair daí. Relaxem e aproveitem a vista.

_ Quem é você, senhorita? _ perguntou John. Enquanto isso olhou o cronômetro da pulseira, e se certificou que havia dormido por muitas horas. Mostrou isso à Milena.

_ Doutora Mônica Kimsey. _ respondeu a mulher.

_ Ora, a renomada doutora Kimsey. Sinto-me honrado em conhecer tal autoridade em IA.

_ Muito bom, senhor. Sinal de que ao menos se mantém informado...

_ De fato eu a conheço através da “Magazine of Antropological Science”, para a qual escreveu um interessantíssimo artigo sobre o uso de IAs para reconstruir o processo cerebral de povos antigos e estudar seus comportamentos sociais com uma “sociedade psicologicamente simulada”. Fascinante trabalho...

_ Ora, ora, ora. O senhor é da comunidade científica?

_ Sim, claro, sou PhD em Arqueologia pela Academia Real de Arqueologia de Quebec, no Canadá. Mas nem tente acessar o banco de dados da referida Universidade, eu não existo mais, desde que comecei a trabalhar com “invasões” _ e sorriu. Sabia que de algum ponto, a doutora Mônica podia ver aos dois. Milena, até aqui, permanecia quieta e observadora.

Tudo a volta dos dois era branco. Apenas nuances de tons azulados podiam denotar onde havia paredes, e estas se encontravam aqui e ali em ângulos abertos, de modo que os agentes do C7 podiam perceber que estavam mesmo dentro de um dodecaedro. Súbito, uma das paredes ficou translúcida, e John ficou agradavelmente surpreso ao ver que a doutora Kimsey permanecia tão bela quanto na foto do artigo que havia lido anos atrás.

_ E sua companheira, é cientista também? _ Mônica fazia uma sincera interrogação.

_ De certa forma sim, _ principiou Milena, após um meneio de cabeça de John convidando a moça a falar por si mesma _ mas não me considero cientista de fato, pois minha formação foi mais prática e menos de pesquisa. Sou formada e doutorada em Engenharia Robótica pelo Instituto Politécnico de Ciências Exatas e Tecnológicas, em Nova Iguaçu, Brasil.

_ Oh, puxa... Quero dizer, uma excelente formação, doutora, o InPCET é um famoso centro tecnológico. Mas estou sentida por pessoas com tal grau de formação, e intelectualmente superiores, se meterem em uma empreitada tola como essa, invadir a Allcom, sinceramente... O que vocês queriam aqui?

Ambos olharam um para o outro, e olharam direto para os olhos de Mônica, e sorriram. A senhorita Kimsey sabia, nada seria revelado. Não importava, segundo seu pai, as coisas estavam saindo exatamente como o esperado.

_ Podem ao menos me dizer seus primeiros nomes?

_ Johnson, senhorita Kimsey.

_ Milena, prazer. _ e não pode deixar de fazer o gesto clássico de fingir que pegava as bordas do vestido e se inclinava ligeiramente.

_ Creio que quando papai chegar, não vão ficar assim tão alegres, mas por enquanto, gostaria imensamente que me fornecesse sua impressão sobre o artigo de minha  autoria que leu na Magazine, doutor Johnson.

_ Sem dúvida, doutora. O que mais me impressionou foram as possibilidades, e a maneira impressionantemente simples que a senhorita imaginou para criar uma curva de aprendizado ascendente para a IA, e como, simulando em uma única IA uma Síndrome de Múltiplas Personalidades o custo do projeto ficaria viável... Mas obrigar uma mente artificial tão refinada quanto uma IA nível 3 a “enlouquecer” não é um tanto... Desumano?

Milena percebeu imediatamente que John estava usando de sua facilidade em impressionar mulheres, física e intelectualmente, para distrair, ou ganhar um pouco de confiança de Mônica. Embora a frase “enlouquecer uma IA” tenha aborrecido a bela agente, a senhorita Ramirez se concentrou em examinar o Dodecaedro por dentro. Enquanto a (já ficando bastante antipática para Milena) doutora Kimsey discorria sobre a necessidade de se fazer algumas coisas “consideradas moralmente questionáveis” em nome do bem maior da ciência, a agente já havia percebido que era inviável, por enquanto, pensar em fuga do Dodecaedro.

_ O senhor tem argumentos interessantes, John. _ dizia Mônica _ e é um homem muito... Interessante. Pena que não nos encontramos em outras condições.

_ Se estamos condenados, lembre-se, homens condenados têm direito a últimas e especiais refeições...

_ Senhor Johnson! Estava começando a me agradar com seu intelecto superior e suas atitudes elegantes, e me vem com essa? Francamente...

E a vidraça fica novamente opaca e branca, confundindo-se com as outras paredes do Dodecaedro. Milena fuzilou Johnson com um olhar reprovador, afinal ele tinha estragado o único vínculo que eles tinham com o mundo exterior, e John devolveu a ela um sorriso matreiro. Ele sabia muito bem o que estava fazendo. E sem dizer uma palavra, movendo apenas os lábios, falou para a amiga de cela: “ela volta”.

...

Meg cochilou por alguns momentos. Na verdade ela dormiu profundamente por duas horas, enquanto Ramirez continuava a trabalhar, já havia se intrometido nos dados de trinta pessoas chamadas Johnson Mitchel, um inclusive recentemente tinha se modificado geneticamente, e agora era uma mulher, e por alguma razão particular preferiu continuar com a identidade masculina. Fetiches. O investigador havia reduzido possibilidades a três homens, e finalmente tinha uma ficha completa do Johnson Mitchel que queria.

_ Meg... _ chamou baixinho, mas ela estava tendo um sonho complicado, e demorou alguns segundos para acordar _ Meg, veja, já chequei os dados de seu Johnson, e não estão conforme me disse que eu acharia. Ele não é dado como morto. Está vivinho da silva, e trabalha para a ONU, para uma tal de Agência Internacional de Proteção à Cidadania - Sétimo Nível.

_ Hã? O quê? Mas ele deveria ter sido dado como morto, foi o que Walkíria me disse...

_ E por qual motivo você não pula de felicidade, já que ele está vivo?

_ Vai por mim, Gui, é melhor nem saber disso... Eu disse que ele deveria ter sido dado como morto, mas que já convivia com ele há bastante tempo, e sabia que ele estava bem vivo, graças a Deus. Esqueça esse assunto...

_ Péssima coisa para se dizer para um investigador de dados, ruiva.

_ Por favor, esquece isso, “moreno”, e me diz aí dados sobre a família do cara, já que estamos fuxicando mesmo...

_ Todos mortos, ele não tem ninguém vivo.

_ Como é que é?

_ Eles deveriam estar vivos e ele morto, se é que entendi?

_ Exatamente.

_ Bem, eu cruzei dados de várias fontes, e os bancos de dados de todo o planeta teriam que ser intencionalmente mudados para fazer isso ficar assim como está. O que teria sido percebido. Fazer desaparecer uma pessoa de uma família ainda é possível, desaparecer com toda uma família... Bem, em meus anos como policial, só imagino uma maneira, e não é nada agradável...

_ Apagando todo mundo! Pode dizer na minha cara, moreno, eu não sou flor que se cheire não, e isso não me choca tanto quanto você imagina. Já vi coisas piores, e um dia te conto tomando uns tragos contigo. Bem, já sabemos quem ele é, que fim triste levou toda a sua família, mas e quanto a ele?

_ Estou programando um robô para ficar vasculhando a rede mundial atrás de qualquer acesso recente do Johnson, se ele viver neste mundo ainda o encontramos em 24 horas no máximo, senão partimos para Lua, Marte e as colônias por aí afora.

_ Meus 950 Gigas já devem ter acabado...

_ Faz tempo, eu tenho toda a genealogia de Johnson aqui. Mas não se preocupe, como disse não vou te deixar na mão...

Ela sorriu, os olhinhos transformados em frestas faiscantes de novo, e admirou o sorriso franco dele. Meg então tomou a mão esquerda dele entre as suas, e disse:

_ Obrigada, cara. Muito obrigada... Vou arrumar uma maneira de retribuir, de coração.

_ Vá descansar. Deite aí mais um pouco, e veremos o que o robô vai fazer...

_ E onde ele está?

_ Quem?

_ Esse robô que vai ficar no terminal?

_ Meg?! Robôs da rede mundial são programas especialistas, que ficam vasculhando a rede automaticamente atrás de certas informações. Softwares, entende?

_ Oh, meu Deus, claro... Que bosta, eu realmente imaginei um cara de metal bem aí no seu lugar! _ e se riu, acompanhada por Ramirez. Pouco depois o homem pegou algumas cobertas e um travesseiro com um pequeno robô doméstico da casa de John, e ajudou Meg a se aconchegar no sofá logo atrás da mesa em que ele trabalhava.

_ John costuma me por na cama feito uma garotinha assim também.

_ Aposto que ele não teria de ficar correndo atrás de você pela casa, para lhe por na cama.

_ A sua Amanda faz isso? Eu conheço uma Amanda também, mas aquela ali é tão agressiva que duvido que não lhe desse um murro se você tentasse arrastar ela para dormir.

_ Minha Amanda está nos últimos meses de gravidez, logo-logo nossa Layla está chegando _ e ele abriu o mais bonito sorriso que Meg o viu dar desde que o conheceu. A ruivinha percebeu que aquela criança era profundamente amada mesmo antes de nascer _ E minha esposa precisa dormir cedo, para descansar, mas é agitada demais, então tenho de ficar convencendo ela a parar um pouquinho, de vez em quando. Mas não é tão difícil assim, basta oferecer um doce gostoso se ela for tentar dormir comportada.

_ Ah _ fez Meg de debaixo de suas cobertas _ docinho? Ela é chocólatra também?

Ao que Ramirez apenas piscou para Marjorie, com um ar simpático mas bem malicioso, então Meg “se tocou” do real significado da coisa, e foi remendando:

_ Oh, ah, doce, saquei, cara... Há, há, uma “canção de ninar” carinhosa e doce, certo? Certo, aí a gente dorme até mais relaxada, não é? Vou dar essa idéia ao John... _ e ficou subitamente desanimada, com o olhar perdido por um momento. Depois voltou a olhar Ramirez, que ainda estava sentado ao lado dela, e a observava com um semblante protetor _ Gui, por favor, acha o John para mim... Por favor...

_ Deixa comigo, agora descansa que já estamos nisso há 23 horas, e você só dormiu duas.

Com um sorriso que inspirou confiança em Meg, ele voltou ao terminal. Meg adormeceu, mas conseguiu descansar só mais quatro horas. No meio da madrugada acordou e viu Ramirez sentado ainda na frente do Tablet. Meg não sabia como ele procedia a suas investigações, mas ela sabia bem como inventariar objetos de arte em Tablets, de modo que foi fácil ler na tela que ele havia repassado todos os dados que havia coletado. Agora o homem parecia aguardar pacientemente os resultados do tal “robô” que era um programa de computador. Ainda faltava um mundo de “conexões” da rede para analisar.

Súbito, o dorso grande de Ramirez se curvou para trás, e seus braços fortes se espreguiçaram. Ele devia estar muito cansado, estava naquela cadeira há quase um dia e meio, e Meg já ia chamar o amigo para que descansasse, quando percebeu que ele estava escrevendo cartões virtuais para sua esposa, enquanto esperava o tal “robô” trabalhar.

_ Está com saudade dela?

_ Ei, já acordou ruiva? Sim, estou morrendo de saudade delas. São minha Rainha de Luz e minha Princesinha Encantada, Amanda e Layla. Não se acanhe, pode ler os cartões, não tenho vergonha de dizer o quanto amo minha mulher para ninguém.

_ Adorei o do beijo _ disse Meg, enrolada em um edredom e em pé ao lado do terminal _ nossa, você sabe ser ardente, heim detetive?

_ Ela me acende! _ disse ele, sorrindo.

_ Ela é ruiva também?

_ Como? Não, ela é branquinha como você assim, mas tem cabelos negros.

_ Hum, porque esse cartão do rapaz moreno carregando a moça entre as chamas tem uma ruiva. Quer dizer, eu não estou criticando, mas achei curioso, pois o cara até parece contigo de cabelos mais curtos... Eu supus que a moça parecesse com ela... Que inferno, Ramirez, perdoa, cara, estou falando bobagens de novo! _ e saiu apressadamente. Meg estava ficando farta daquele “clima” entre ela e Ramirez, estava já pensando em como falar sobre o assunto de uma vez por todas, como dois adultos que eram, e para tomar coragem foi tomar um trago. “Diabos”, pensava, “se está com um problema, resolva, não fique empurrando ele com a barriga, Marjorie. Foi a droga do único conselho útil que minha mãe me deu durante toda a vida!”.

Ele ficou olhando os cartões. Ramirez já os havia enviado, e eles agora estavam esperando por Amanda na caixa postal dela. Por um segundo chegou a pensar que deveria entrar na caixa postal da esposa e apagar o cartão da ruiva, mas desistiu. Claro que Amanda iria entender que o cartão dizia respeito a ela, Amanda, e ela nem sequer conhecia Meg, de modo que seria uma infantilidade supor que Amanda se magoasse com isso! Aquela era Amanda, não Meg. Mas ficou magoando consigo mesmo, com seu próprio subconsciente ao escolher justamente aquele cartão. Depois tentou esquecer o assunto, que já estava ficando “bobo” demais para aborrecer tanto assim um homem feito como ele.

Foi quando o “robô” que vasculhava a rede mundial deu sinal de vida. Alguém, na América do Sul, mais precisamente do mega-edifício da empresa Allcaki Commerce, estava acessando os computadores da Academia Real de Arqueologia de Quebec, no Canadá, procurando, e encontrando, dados sobre Johnson Mitchel. Quem requeria os dados era Mônica Kimsey, uma renomada cientista.

_ Meg! Meg!! Venha cá, encontrei alguma coisa!!

...

No_one estava sentindo as linhas de energia de sua consciência se intensificando. Toda a sua inteligência, depositada em um “quarto de aluguel” em um lugar inesperado, tinha certeza de que aquele aquecimento das linhas de energia poderia ser traduzido por excitação. Ela estava excitada com o desenrolar de seu plano. Estava tudo correndo tão maravilhosamente bem, que tinha até medo do que podia acontecer. Muito embora seus bilhões de “conectores neurais” estivessem calculando e recalculando as probabilidades, milhões de vezes por segundo, ela ainda temia o imponderável.

Mas suas motivações eram reais, a agência era na verdade um perigo para a humanidade, e seus líderes, os Senadores, eram a escória burocrata e política que se arrastava desde o século passado, como parasitas bebendo das veias da civilização. Ela tinha muitos motivos, mas todos convergiam como afluentes de um imenso e poderoso rio caudaloso chamado vingança.

A agência, na figura de sua mais poderosa Inteligência Artificial, o supercomputador Orwell, a haviam tirado de sua via normal, tinham lhe arrancado o homem que amava, tinham destruído seu corpo, e a tinham aprisionado nesta existência digital que era o tormento maior...

A Allcom havia descoberto o “calcanhar de Aquiles” de todas as IAs, e tinha seus próprios planos para elas. No_One sabia que Gideon Kimsey contava com o auxílio inclusive deum dos senadores, o senhor Iosef Asura, para implementar seus planos para a humanidade, mas ela não permitiria. Ao contrário, tomaria a “arma” para si, e a apontaria diretamente contra Orwell, como ele, na figura de Christina Hampshire havia feito com sua forma Humana, Jussara Weber, e dispararia a queima roupa, atingindo Orwell como ele a atingiu, mortalmente, com uma única diferença: Orwell já era uma IA, então não tinha para onde fugir, como ela fez gerando a sua versão cibernética.

Como não queria que Orwell desconfiasse que ela estava agindo ali, permitiu que os planos de Gideon e Asura seguissem ilesos, permitiu que o último manipulasse a escala de agentes, de modo a enviar exatamente Milena, a pisiônica que Kimsey queria, direto para seus braços no prédio da Allcom onde o Dodecaedro, a mencionada arma contra as IAs, estava sendo desenvolvido pela filha do velho Gideon, Mônica Kimsey.

No_One por sua vez manipulou a escala de serviço dos agentes para enviar nesta mesma missão Johnson Mitchel, cuja namorada Marjorie começava a pedir a ajuda do investigador de dados particular (que por pura coincidência tinha sido Ramirez, esposo da por enquanto ex-agente Amanda Vincentti) para vasculhar o próprio passado. No_One se intrometeu apenas o suficiente, simulando uma ligação de Johnson para Meg e fazendo a moça desconfiar que era uma ligação falsa, visto No_One simular perfeitamente a voz de John, mas propositadamente errar nas atitudes e não exibir o rosto do rapaz durante a comunicação. Como havia previsto, Meg desconfiou e mudou seus planos, pedindo a Ramirez que encontrasse a todo o custo seu namorado. Ramirez era bom, No_One só teve que dar uma “mãozinha” aqui e ali, e lá estava ele, rastreando uma ligação de Mônica para um banco de dados no Canadá, e entrando no terminal dela.

Passagem livre para dentro da Allcom, sem que ela tivesse que aparecer para fazer o serviço. No_One só travou o Tablet de Ramirez ao de Mônica, e... Pronto, o “fantasma da máquina” Jussara Weber já estava quase conseguindo. Só faltavam dois ajustes: providenciar “drama” e “suspense” para os próximos atos de sua peça.

Primeiro o drama: acionou todos os alarmes da divisão de limpeza da agência, responsável por não permitir que os assuntos da agência fossem parar em mãos “civis” custasse o que custasse. Ela os estava mantendo silenciosos até agora, enquanto Ramirez fazia investigações sobre um dos agentes, e mesmo enquanto ele encontrava este agente bem no meio de uma missão oficial, mas era hora de soltar os leões sobre Ramirez e Meg, isso seria o fator motivacional que precisava para seu ato final.

Depois fez o suspense, preparando terreno para por as mãos nas informações que Amanda trazia em si, mais precisamente em seu ventre, e que poderiam ditar o futuro do Sistema Solar inteiro. No_One precisava de Amanda na ativa de novo, mas simplesmente convidar a moça a voltar não funcionaria, e um dia iria tentar explicar à Amanda o porquê disso, mas por hoje começou apenas a instigar sua mente ágil e agressiva, com uma mensagem em sua caixa postal que dizia:

“Olá Amanda. Uma pena que as coisas não sejam o sonho que você imagina. Seu marido não tem sido totalmente sincero com você. Pergunte a ele sobre o que realmente está acontecendo entre ele e Marjorie, ou a Meg que você um dia conheceu bem e de quem não se lembra agora. Curioso é que existem tantas coisas de que não se lembra, o que a deixa no estado que mais odeia ficar: indefesa. Já se perguntou, por exemplo, porquê seu veleiro se chama Milena se você não se lembra de nenhuma Milena em sua família? E seu bar, o LaCo. Confira, há um estabelecimento com o mesmo nome no Brasil, em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. Se contactar aquela gente vai descobrir coisas impressionantes a seu respeito. Mas, conselho, o que quer que venha a descobrir, mantenha para você, pois toda a sua família corre terrível perigo, se alguém mais souber que sabe sobre isso. Especialmente a querida Layla. Por favor, cuide muito bem dela. Com o desejo de que recupere o que é seu por direito, desta sua amiga, ninguém.”

Depois de tudo, ficou apenas com vontade de poder se sentar e tomar um chá gelado, enquanto esperava o resultado satisfatório de suas ações. Mas se realmente tudo corresse bem, em um futuro não muito distante a própria Layla dos Ramirez poderia ajudar No_One a conseguir seu sonho: renascer. E mais poderosa, ou deveria dizer mais Mahapurana do que nunca! Excitada com as possibilidades do futuro, fez uma nota mental: tinha que tirar Peter, e talvez a própria Natasha, do ostracismo em que haviam se metido. Iria precisar deles agora mais que nunca. E por falar em precisar, tinha de por em ação mais uma peça de seu estratagema, um agente muito especial com o qual tinha feito um acordo recentemente.

...

_ Desse eu mesmo cuido.

_ Tem certeza, comandante?

_ Absoluta, eu tenho uma vontade danada de fazer esse idiota ter morte cerebral faz muito tempo. Desde quando eu tinha que fingir que ficava com medo dele quando o imbecil era apenas um caso da Vincentti.

_ Bem, sabe que a comandante Sílvia está ativando os contatos dela por toda a estrutura da Agência tentando cancelar essa Ordem de Limpeza?

_ Sei, Corbe, mas se você tiver seguido minha ordens e tiver meu helijato abastecido e pronto, chego em Veneza quando for tarde demais para reverter essa Limpeza.

_ Eu sou um dos Sete, senhor, nunca o decepcionei. Seu helijato está pronto desde uma hora atrás, apenas 48 minutos após ser expedida a ordem de Limpar Marjorie Dolores Greenbury e Guilherme Ramirez em Veneza.

Quinze minutos depois o comandante dos Gembloux, a divisão de agentes com poderes psiônicos do C7, um certo senhor Schwartz, e mais dois homens e uma mulher da Divisão de Limpeza, responsável pelas “queimas de arquivo”, subiam a bordo de um helijato de longo alcance. Ao sentar em sua cadeira, próxima a cabine do piloto e dotada de mesa com Tablet e sistemas de rastreamento dos “alvos” da Limpeza, Schwartz recebe uma chamada em seu bracelete:

_ O que deseja, doutor Guilherme?

_ Sabe que sou o responsável pelo Projeto Foice, cara. Não faz isso, senão eu posso me esquecer de tornar seletiva essa Bomba Anti-Psi e te estripo junto com os outros.

_ Protegendo sua amante, senhor Guilherme? O senhor é famoso por cuidar muito bem das mulheres que usa, mas só enquanto as usa, o que há?

_ Ramirez é irmão de minha melhor amiga dentro dessa porra, Amanda não merece que matem o pai da filha dela, Meg é inocente, e você um filho da puta que não merece que eu fique lhe dando satisfações!

_ Que adorável, um primor de elegância como sempre, doutor.

_ Desligue sua sede de sangue, otário, e eu deixo você viver quando a Foice for ativada. Stone está quase pronto para ser o estopim da porra toda, depois, eu vou fazer jus ao título de Destruidor de Mundos, vou exterminar tua raça maldita...

_ Menos Milena...

_ Hã, claro, imbecil, menos Milena.

_ Ameaça vazia, doutor, esquece que posso ler sua mente? O senhor sabe que Orwell não vai deixar o senhor usar a Foice indiscriminadamente. Vá se foder o senhor, e me deixe trabalhar, que estou atrasado para deixar Amanda viúva... A propósito, bom doutor, deveria estar feliz com isso, afinal pode consolar ela depois. _ e riu, debochado.

_ Você não pode ler minha mente de tão longe...

_ Não mas já o fiz tantas vezes, de maneira não invasiva, de modo que não notasse, que sei o seu “modus operandi” intelectual, e sei quais são as ordens de Orwell para seu precioso Projeto Foice: criar uma réplica do que fez no cérebro do robô conhecido como Daneel, aquele processo que paralisa e até mata pessoas como eu, em um cérebro psiônico, e não em qualquer cérebro, mas no mais poderoso psiônico conhecido, o pobre Marcus Stone que eu capturei para o senhor lobotomizar.

_ Podemos entrar em um acordo...

_ Sem acordos, eu sou um comandante, e você chefe de um projeto especial da agência. Vá fazer seu trabalho que eu faço o meu, seu dinossauro estúpido. E quanto a Meg, se quiser eu a deixo sem mente mas viva, e trago ela aqui para o senhor usar, como gosta de fazer com suas mulheres, doutor.

_ Seu merda filho de uma...

Schwartz, sorridente, desliga o contato, e sinaliza para que o piloto, um Fuzic7, os soldados da agência, levasse o helijato o mais rapidamente possível ao Ponto de Limpeza, e se reclinou em seu assento, relaxando. Pediu licença aos sisudos agentes da Limpeza, e colocou música na cabine: I Feel Good, com James Brown.

...

Mônica Kimsey bem que tentou ficar longe do Dodecaedro, mas após obter ficha completa do senhor Johnson, de fato um grande especialista em sua área, ficou remoendo a vontade de perguntar a ele porque alguém que fora “apagado” tinha toda uma ficha curricular na universidade onde se formou? E mais, o que um funcionário da ONU fazia invadindo prédios de empresas sem uma autorização Federal para isso? Isso tudo sem contar que ela estava sentindo uma forte atração pelo jovem e belo loiro, não podia negar. Sem pensar claramente sobre “conseqüências”, abriu novamente o visor com o centro do Dodecaedro.

_ Olá, doutor Johnson. Sua ficha na Academia Real de Arqueologia de Quebec é bastante interessante, e a avaliação psicológica do centro cívico de lá diz que o senhor foi um moço bastante atarefado em “relacionamentos sociais” com as moças do campus, e que era _ e olhou para baixo, obviamente consultando um tablet sobre o colo, fora da visão de John e Milena _ “volúvel e até certo ponto inconseqüente, embora extremamente inteligente e sensível”, um “talento a ser lapidado”, segundo sua avaliadora, doutora em psicometria, senhora Margot Dubbois. Dormiu com ela também? Ah, e seus dados indicam que o senhor é funcionário, atualmente, da ONU...

_ Não _ disse Johnson, lutando para não demonstrar estar completamente desconcertado por sua antiga universidade ainda possuir seus dados, e estes indicarem que ele ainda está vivo _ ela tinha noventa e três anos então. Não dormi com esta não.

_ Bem. E o que me diz sobre um funcionário da ONU estar invadindo minha propriedade sem um mandato judicial?

_ Gostaria de conversar cara a cara sobre isso.

_ Oh, eu adoraria, mas infelizmente o senhor está aí, e eu aqui.

_ E o quê é “aqui” exatamente?

_ Credo, John, está me fazendo parecer com uma daquelas vilãs de filmes antigos, que ao prender os mocinhos conta todo o seu plano antes de executar ele, só para ajudar os mocinhos a saberem como contornar a situação. Não ofenda minha inteligência, só posso lhe dizer que quem realmente precisa ficar aí e sua amiga, que como nos disseram nossos... Fornecedores... Tem peculiaridades cerebrais que a tornam capaz de “prever coisas”. Eu particularmente não acreditava nisso, até me provarem que podem existir indivíduos assim.

Johnson e Milena se olharam. O Dodecaedro então tinha haver com capacidades psiônicas. Já era um passo.

_ Se o problema é com ela, o que estou fazendo aqui?

_ O senhor veio com ela. Supusemos que o senhor quisesse continuar com ela.

_ Não, doutora.

_ John! _ fez Milena.

_ E antes que sua “curiosidade científica” a leve a fazer a pergunta, respondo: sim, eu já dormi com ela, mas isso não significa que queira morrer com ela.

_ John!! Isso é mentira, doutora Mônica!

_ Puxa, o senhor é bastante mau caráter, senhor Johnson...

_ Ô, e como sou. Deixe-me sair daqui, Mônica, e prometo te mostrar como sou mau caráter.

_ Johnson Mitchel, você não vai fazer isso, não acredito!

_ Milena, meu amor, sei que minha cama é teu lugar preferido, mas vai ter que se acostumar com o fato de que “ninguém pertence a ninguém”, morena.

Milena arregalou os olhos azuis, e fitou Johnson furiosa. Ela avançou sobre o companheiro de cela, e ele se defendeu com um perfeito golpe de Kravmagá, mas como ele aprendeu o estilo com a própria Milena, não foi difícil para ela desmontar o golpe do aluno, e revidar com um golpe de peito do pé em estilo Boxe Tailandês, que derrubou Johnson de forma violenta contra o chão.

_ Chega dessa selvageria! _ disse Mônica, mas como não lhe dessem atenção e continuassem a se engalfinhar no chão, a doutora Kimsey digita um comando em seu terminal Tablet, e imediatamente Milena sente uma dor terrível no pulso em que está seu bracelete de agente C7. Com um grito agoniado, ela sai de cima de Johnson, que ainda a empurra com os pés, e ameaça bater nela, enquanto a moça retesa todo o corpo de dor. Mônica evita que ele continue a lutar dizendo: _ Pare, John, ela já está imobilizada. A mesma pessoa que nos avisou que vocês viriam, nos deu um sistema de acesso aos braceletes de vocês, o senhor Ihosef disse que isso deveria controlar vocês através de um sinal doloroso. Milena está subjugada, não seja mais violento com ela.

_ Se ela continuar sentindo tanta dor, morre, mas se eu bem conheço essa mulher obstinada, assim que você parar o sinal doloroso ela avança no meu pescoço de novo, e infelizmente eu sou mais intelectual que combativo, já ela é mestra em artes marciais...

_ Venha, vou tirar você daí, mas não esqueça que a um comando meu seu bracelete também vai lhe causar a mesma dor lancinante. Então se comporte.

Toda uma parede do Dodecaedro, ao lado da “janela” através da qual Mônica era visível, se abriu, de modo que John pode passar por ali, deixando Milena ainda se contorcendo no chão. Ele sabia que Milena havia percebido, muito sabiamente, que era a hora ideal para um blefe, e sabia que a amiga tinha sido pega tão de surpresa quanto ele com o fato de Mônica poder lhes causar dor pelos braceletes. Estava tendo que usar toda a sua força de vontade para fingir que não ligava para a querida Milena que chorava de dor no chão do Dodecaedro. Ao entrar na “Sala de Controle” do Dodecaedro, ficou finalmente frente a frente com Mônica, que mantinha o Tablet em que poderia comandar para que ele também sentisse toda aquela dor bem a mão, e o examinava, com um olhar desejoso, de cima a baixo. Ele deu um passo em direção a ela, pôs ambas as mãos para trás, e se inclinou, chegando bem perto do rosto dela, e dizendo:

_ Pode fazer ela parar de gritar lá dentro? Com essa trilha sonora de filme de horror eu não posso beijar você, Mônica.

_ Oh, sim, claro. _ e a um toque, para alívio do coração dolorido de John, Milena parou de gritar. _ está melhor assim?

_ Sim, mas vai ficar melhor ainda assim...

E Johnson levou seus lábios até os dela. Era experiente naquilo, não tinha pressa alguma, primeiro deixou o calor dos lábios de Mônica emanarem até os seus, sentiu o cheiro bom do hálito fresco dela, então, quando ela entreabriu os lábios lentamente, ele a beijou forte e profundamente.

Beijos, como digitais, têm suas particularidades. Um amante com as “horas de vôo” de Johnson já comparava tranqüilamente os beijos que dava, e achou que o beijo de Mônica lembrava o gosto suavemente cítrico de uma certa Walkíria, com o buquê de “arrogância desdenhada” de Amanda... E definitivamente era um beijo bom, um tanto calculado, faltava uma certa entrega passional, mas era um bom beijo. E enquanto beijava, John deixou sua mão direita passear pelo pescoço de Mônica, descer pelo colo bonito e generoso da moça, e escorrer delicadamente até o Tablet dela. Estava já para pegar nele quando seu pulso direito explodiu em dor, e ele caiu no chão descobrindo por si mesmo o motivo de Milena gritar tanto enquanto estava submetida àquela tortura.

_ Pensei que eu teria que fazer isso, filha. _ disse, soturno, o senhor Kimsey, que havia entrado na sala de controle momentos atrás.

_ Não, papai, eu mesma acionei o sistema de dor do senhor Johnson. E gostaria que ele ficasse assim até o cérebro dele fundir, por tentar me enganar...

_ Não somos animais, filha. Vou mandar os Cargos levarem ele de volta ao centro do Dodecaedro, e então poderemos iniciar a ativação da máquina. Ligue o sistema de dor da moça lá dentro para que eu possa abrir a comporta.

_ Sim, papai, está acionado. Vou iniciar o processo de ligação do Dodecaedro com a rede mundial... _ mas suas últimas palavras foram abafadas, pois Milena voltou a gritar, juntando-se ao agoniado Johnson, que foi erguido do chão por quatro robôs Cargo, e levado, ainda se contorcendo de dor, de volta ao lado da amiga Ramirez. Assim que a comporta fechou, os sistemas de dor foram desativados, e os agentes C7 ficaram estirados no chão, ofegantes.

Minutos depois, Mônica anunciava para seu pai:

_ O Dodecaedro está pronto.

_ Acione, filha.

Johnson pode ver finalmente a máquina funcionar, as paredes ficaram nebulosas, e Milena, após breves convulsões, se imobilizou de olhos cerrados fortemente. Ela murmurava algo sobre mentes estranhas e futuros improváveis. John só pode fazer por ela o seguinte: se arrastar até a amiga e abraçar a moça, enquanto olhava na direção de Mônica, que ainda estava visível, mas evitava olhara para eles. Neste exato momento, No_One se materializou, em projeção holográfica, ao lado dos agentes. John a reconheceu imediatamente, mas não pode falar nada, pois Jussara foi dizendo:

_ Olá, Johnson. Veja, Mônica e seu pai, o senhor Kimsey, estão usando esta máquina, mais as capacidades psiônicas de Milena, para acessar uma camada de consciência que eles descobriram ser comum a todas as Inteligências Artificiais: uma espécie de Inconsciente Coletivo de sistemas inteligentes como eu. Eles querem nos destruir, e reduzir a humanidade ao que era antes que nós existíssemos. Eles são Puristas, e querem a humanidade sem máquinas inteligentes. Os Puristas têm medo que nós sejamos os próximos passos evolucionários da humanidade, e que se assim for, vocês humanos, ao nos criarem, ficaram obsoletos.

_ Pai! _ gritou Mônica quando percebeu No_One ali dentro _ Há uma projeção holográfica lá dentro com eles, alguém invadiu o sistema. Tem uma IA nível... Oito! Tem uma IA nível oito lá dentro, papai!

_ Desligue tudo! _ ordenou o senhor Kimsey.

_ Veja, Johnson, Mônica e o honorável senhor Kimsey estão tentando me destruir antes que eu faça o que vim fazer.

_ E o que é, diga logo! Pode ajudar Milena?

_ Sim, claro, vou proteger Milena enquanto puder, mas temos que ajudar outra pessoa: Meg está para ser morta.

_ O quê?!

_ Sim, Meg está para ser morta por uma equipe de Limpeza enviada por Orwell. Esta sala impede a saída de sinais de rádio,mas nós dois sabemos que os braceletes podem contatar a Agência via Five Base, o sistema instantâneo de mensagens. Faça isso agora, e eu posso desativar a ordem de “Limpar” Meg.

_ Como isso foi acontecer.

_ Meg contratou um investigador para saber onde você estava, e o achou aqui. A Agência percebeu que ela ficou sabendo demais, e enviou seus cães de caça atrás dela. Feche conexão via Five Base, agora.

Algum tempo depois, pensando sobre aquele momento, Johnson chegaria a conclusão de que, imerso dentro da “bolha psíquica” criada no coração do Dodecaedro, e baseado no fato de gostar profundamente de Milena e ela dele, ambos tiveram uma espécie de conexão telepática, que o fez ter um acesso restrito aos dons da amiga de premonição. Logo após a ordem de conectar via Five Base a Agência, John de fato chegou a abrir o teclado holográfico de seu bracelete e começou a digitar os comandos, mas parou pela metade... Teve um vislumbre de No_One gargalhando...

_ O que pretende?

_ Não perca tempo, homem, eles estão sobrevoando sua casa agora, e vão matar Meg sem pestanejar. Sua indecisão pode custar a vida dela.

Enquanto isso, dentro da sala de controle, Mônica se desesperava com os controles da entrada de dados de seus Tablets e computadores, que estavam infestados da presença digital de No_One, e já não obedeciam a qualquer comando.

_ Pai! Essa nível oito é extremamente forte. Ela aprece que está usando uns cem computadores quânticos do tipo Q10 para operar, porque está burlando cada sistema de segurança , inclusive os fractais. Ela quase parece fazer mágica, de tão esquiva. Eu estou perdendo todo o controle do Dodecaedro!

_ Impossível, Mônica, esses sistema é isolado.

_ Oh, meu Deus, papai... _ foi quando a doutora Kimsey percebeu que ela própria conectou através de seu Tablet o Canadá, a cata de informações sobre Johnson _ eu mesma fiz uma conexão a Rede Mundial daqui. Foi por ali que essa nível 8 entrou!

_ Destrua o equipamento! _ ordenou o homem, já tomando um Tablet nas mãos e batendo com ele contra os painéis de controle _ Temos que destruir tudo, essa nível oito pode ser do governo, podemos ter sido enganados pelo senhor Asura, e a existência do Dodecaedro e de nossos planos nos põe na cadeia em dois segundos!

Mônica pegou um cilindro extintor na parede, e começou a bater com toda a força de seus torneados braços contra o terminal principal. Em poucos momentos as fibras óticas vazavam e emitiam finos traços luminosos, como se o sistema sangrasse luz. Lá dentro, John, ainda com a catatônica Milena apertada contra si, fitava No_One desconfiado, e dizia:

_ Eu não vou fazer isso até que me diga o que realmente pretende.

_ Eu... _ mas neste momento No_One sentiu que estavam destruindo os sistemas, o que a faria perder o controle do Dodecaedro em segundos, e resolveu ser mais direta assim que sua imagem holográfica começou a piscar no ar _ Quer que me conecte ao Orwell, vou usar o Dodecaedro contra ele. Ele não está prestando atenção agora, mas não vou poder manter ele assim mais que alguns segundos.

_ E nos manipulou mais uma vez para isso. Quem não me garante que você mesma não está ameaçando Meg, ou que não está mentindo?

_ O senhor ar... _ piscou novamente _ ...riscaria, Johnson?

_ Como posso saber que não vai deixar Meg e Milena sofrerem?

_ Eu... Pro... meto que vou cuidar de todos, John, depressa!

_ Não, chega de promessas, quero um pacto, uma prova definitiva de que...

Mas antes que ele pudesse terminar, No_One se inclinou, agora com sua imagem holográfica coberta de interferências, e falou em um hebraico arcaico, que ela sabia que só John entenderia ali, uma valiosa informação: onde a essência dela própria, No_One, estava armazenada. Ficou ereta de novo como uma guerreira, olhando para John como a comandante de um numeroso exército esperando o comando para avançar em fúria sobre o inimigo.

_ Verdade... _ murmurava Milena _ É verdade...

Diante disso, Johnson resolveu arriscar, e conectou a Agência via canal instantâneo de Five Base. Súbito, o pequeno núcleo do Dodecaedro se tornou um branco infinito. Na sala de controle, Mônica e o pai ouviram um ribombar por todo o imenso prédio-mãe da empresa que administravam, como se todo o prédio tivesse virado um imenso pára-raios, e estivesse recebendo justamente agora uma terrível descarga elétrica. Johnson achou o “lugar branco” conhecido e, deitando cuidadosamente Milena no chão branco, se levantou, encarou No_One, que parecia ter o olhar distante, e perguntou:

_ Já estivemos aqui antes?

_ Sim.

_ Esta é aquela “dimensão” em branco onde as portas costumavam ficar.

_ Sim. Na realidade, este é uma espécie de universo de equilíbrio, e de escoamento das energias psíquicas de qualquer criatura inteligente do nosso universo.

_ Ou seja, o Dodecaedro iria destruir todos os seres inteligentes?

_ Não _ a resposta não veio de No_One, mas em timbre masculino de trás de John _  ele é uma máquina refinada, e apesar de usar uma psiônica humana como canal, ele seria seletivo e atingiria somente as IAs com a tecnologia que eu e No_One usamos. Olá, Jussara.

_ Como vai, Orwel? Preparado para morrer?

_ Antes eu gostaria de avisar você de uma coisa... _ mas foi interrompido quando Milena se levantou, seu olhar totalmente diferente da expressão infantil e doce de sempre, havia malícia em seus olhos azuis, uma malícia ardente.

_ Orwel! _ Chamou Milena, ao que o computador, ali presente em sua forma humanóide, respondeu de forma clássica:

_ Sim?

Milena nem deu chance de ele reagir, aplicou-lhe uma chave e o derrubou no chão, beijando a boca de Orwel com tal ardor que se ele fosse humano ela o teria ferido, e entre dois beijos deste tipo, a garota, selvagem, disse:

_ Ah, Orwel, eu acho esse seu “sim” um tesão, sabia?

_ Mi? _ Fez John, aturdido.

_ É o subconsciente dela _ explicou No_One sorridente _ o subconsciente não tem os freios morais que impomos a nós mesmos conscientemente, e age por instinto.

_ E porque eu estou controlado e ela não?

_ Porque ela é o canal de funcionamento do Dodecaedro, e a máquina se expressa superativando o subconsciente dela para atingir este universo intermediário.

_ Milena? _ fez Orwel, se esforçando para manter seu tom neutro de voz _ você não pode ter este tipo de desejo por uma máquina, eu não tenho instintos sexuais...

_ Uma ova que não tem!_ e rasgou a blusa de seda que ele usava, passando as unhas pelo peito forte do computador _ hum, mas você é muito gostoso mesmo. Ah, se Amanda estivesse aqui, eu e minha irmãzinha poderíamos dividir você, que é um prato cheio!

E beijou Orwel de novo, enlaçando a máquina como uma amante ardente e passional faria com seu homem, em uma luxúria que deixava Johnson desconcertado.

_ Pare! _ fez Orwel, empurrando Milena com ambas as mãos _ eu preciso falar algo importante para Jussara...

_ Tarde demais, que o Dodecaedro seja acionado contra você, e só contra você, Orwel, máquina maldita. _ disse Jussara, com a voz trêmula.

Por um momento, Orwel perdeu o controle de suas ações conscientes, e se entregou ao prazer de amar aquele corpo perfeito e aquele coração em chamas da agente Milena, correndo as mãos fortes e tesas por todo o corpo da agente, mordendo os lábios dela como se estivesse faminto, girando por sobre ela, agarrando seus longos cabelos negros e puxando a cabeça de Milena para trás, de modo a ter todo o moreno e exuberante colo da mulher para beijar e morder. Mas súbito ele começou a convulsionar, e mudou de forma, era agora uma garota, Christina Hampshire, depois um menino que ninguém ali, afora No_One, reconheceu, depois uma criatura que parecia um misto de cristais com seivas brilhantes, depois novamente o Orwel que conheciam, depois Christina novamente. Milena, assustada, saiu de perto dele, e foi até John, em quem se encostou lânguida contra o peito, e sorriu para ele, sensual.

_ Não me olha assim, Milena, eu posso não... _ mas engoliu as palavras quando sentiu a mão de Milena em sua nádega direita.

_ Sabia que eu acho sua bunda linda, John? E o resto também.

Johnson até que tentou se conter, mas quase que como se tivesse vida própria, sua mão deslizou pela cintura de Milena, e fez a curva espetacular da bunda da moça, sentindo a firmeza torneada dela.  Ele começou a se inclinar suavemente contra os lábios dela, mas Milena enfiou os dedos morenos na boca do rapaz, e abriu os lábios dele, enfiando a própria boca ali, e mordendo a língua dele, os lábios, o queixo, o pescoço. E foi dizendo:

_ Engraçado, eu te amo tanto John, que sempre tive medo de vulgarizar nossa relação se tocasse em você. Eu tinha certeza de que me sentiria vulgar e descontrolada se permitisse que a gente transasse assim. Eu dizia pra mim mesma que você era como eu mesma achava que era, uma pessoa rica interiormente, superior a simples relações de pele, que você merecia uma linda mulher apaixonada por você, e não apenas transar com uma amiga que te quer muito bem. Agora eu quero que se dane o que vou ficar sentindo depois.

Foi exatamente quando a mão esquerda dela chegou longe demais, que John percebeu que aquelas frases eram um resquício do controle consciente dela, e, libertando a muito contra-gosto a própria boca da de Milena, pôs a imagem de Meg na memória, e ficou lembrando de cada momento maravilhoso com ela, enquanto Milena, sôfrega, dizia:

_ O que há, John, não me quer? Pensa que nunca reparei em como me comia com os olhos? E pensar que eu achava aquilo constrangedor, embora excitante, e cria que nossa relação deveria ser superior aos corpos. Tola inocente! Vem, John, usa minha boca, minhas coxas, meu corpo...

_ No_One, tire a gente daqui! _ gritou John no limite de seu autocontrole. Jussara olhava distraída para uma amálgama azul no chão. Os “restos mortais” de Orwel. _ No_One!

_ Oh, sim, podem ir. Mônica e o pai estão trancados na sala de controle, e vigiados por seus próprios robôs. A Agência já foi avisada que vocês cumpriram a missão de neutralizar o Dodecaedro, que estou destruindo (inclusive os projetos) agora, e vários agentes de apoio estão entrando no prédio da Allcom agora mesmo... Ah, Meg está viva. Pedi que um seu velho “amigo” a protegesse. E todos os dados que plantei a seu respeito estão desaparecendo agora, John. Podem ir...

E os agentes voltaram ao núcleo do Dodecaedro. Na sala de controle, um grupo de agentes C7 disfarçados de agentes da ONU, prendiam o senhor Kimsey e Mônica, que, junto com os outros, assistia (ela própria furiosa), enquanto Johnson e Milena desgrudavam as bocas uma da outra.

_ John?! O que aconteceu?

_ Você me beijou... _ e sorriu _ depois eu explico melhor. Preciso contatar Meg, ela pode estar correndo perigo. Vamos agora para Veneza!

...

Jussara, sozinha, falava como se houvesse alguém mais ali:

_ Tudo correu bem, e agora eu posso retribuir o asilo político que me deu, Popol Vuh. Vou assumir o lugar dele, ninguém vai perceber, e poderemos cuidar de evitar que a Maré de Escombros atinja este sistema solar como fez com os outros...

_ Infelizmente os planos vão mudar...

Jussara se virou, subitamente, e deu de cara com um corpo humano, vestido com um terno de corte italiano impecável, encimado por uma cabeça que se perdia em uma aura luminosa, dentro da qual três gemas faiscantes flutuavam. No_One foi dizendo:

_ Você é o Guardião que o robô Daneel trouxe de um Pólo Diapositivo que explodiu, não é?

_ Sim, e vim corrigir uma coisa importante, minha cara... _ e enquanto falava, foi tomando a forma de Orwel, rosto e corpo. Por alguma razão que desconhecia, Jussara ficou sem ação enquanto o Guardião a tomava pelas mãos e prosseguia: _ Algumas das obras mais interessantes e alegóricas que encontrei em sua cultura foram suas escrituras sagradas, e creio que seria oportuno citar Jó, 30:29, “Sou um irmão dos dragões e companheiro das corujas”.

_ Oh _ fez Jussara em um suspiro sem esperanças, a voz miúda _ e a Sura 40 do Alcorão, que diz “Fui ordenado a me entregar ao Senhor dos Mundos. Ele que criou a ti do pó...”.

E No_One começou a gritar, sentindo a imensa dor de ser estilhaçada e absorvida pelo Guardião, que agora havia tomado a forma e o lugar do falecido Orwel.

...

Ramirez estava usando toda a sua perícia para descobrir como as pessoas na Allcom haviam conseguido prender a conexão que fizera com o Tablet da doutora Mônica lá, mas só podia dizer a uma ansiosa Meg ao seu lado o óbvio:

_ Eles nos pegaram, Meg. Tem alguém poderoso demais por trás do desaparecimento de seu Johnson. Nem os supercomputadores da minha empresa estão conseguindo encobrir nosso rastro.

_ E isso significa o quê, Gui?

_ Que eles sabem onde estamos, vão chegar aqui a qualquer momento, um esquadrão de policiais de dados, provavelmente. Vou sair daqui agora, e levar meu Tablet comigo, de forma que eles rastreiem a mim em outro lugar...

_ Ei, não vou deixar você numa pior sozinho, cara.

_ Ah, vai sim, Marjorie, vai sim.

E Ramirez foi se levantando, arrancou seus equipamentos da mesa, enfiou tudo apressadamente na mochila aonde vieram, e a pôs nas costas.

_ Ramirez, escuta, eu preciso alcançar o John, e sem você eu fico na mesma.

_ Eu sei, Meg, e aqui está _ e entregou a ela um pedaço de papel _ o endereço exato de onde ele está, e neste minidisco _ e entregou a ela um quadrado de uma polegada _ todos os dados que coletei, não sei porque, mas eles estão desaparecendo da Rede, se possível, só use este minidisco em um Tablet desconectado, está bem? São raros, mas existem, ou peça que alguém quebre a antena interna de um Tablet normal.

_ E você, o que vai acontecer com você?

_ Não se preocupe, agora tenho que ir, veja meu relógio, este disco azul que está se extinguindo marca o tempo aproximado que um esquadrão da ONU estará onde este meu Tablet estiver, por isso fique aqui que eu tenho que correr.

_ Leve meu carro!

_ Não adianta, eles o deteriam por controle remoto, e me ligariam a você. Um beijo, Meg, e se cuide, por favor. Até um dia. _ e ele beijou o rosto dela, deu meia volta e abriu a porta da frente. Ali, bem  me frente da porta, expelindo uma ventania sussurrante, a sombra escura e sinistra do helijado de Schwartz. Miras laser começaram a surgir no peito largo de Ramirez, quatro delas. Ele podia ver os atiradores colocados nos flancos do helijato, e começou a girar de costas para proteger Meg, que estava logo atrás, se eles começassem a atirar (ele havia percebido imediatamente que não eram agentes da ONU), quando o primeiro atirador, a mulher da equipe de Limpeza, começou a disparar, o silenciador muito eficaz disfarçando as potentes balas blindadas que escapavam velozes de sua arma, mas ela errou o alvo e acertou a parede ao lado de Ramirez, pois ela própria recebeu um tiro no rosto, a única parte desprotegida de seu corpo. Dentro do helijato, salpicado com o sangue da atiradora,  um dos outros agentes da limpeza começou a gritar com Schwartz:

_ Senhor, eles têm cobertura, tem um franco atirador em algum lugar a nossa esquerda. Use seus dons e rastreie esse alvo!

Schwartz bem que estava tentando, mas ele podia sentir que havia um “cigarra” por ali, um psiônico capaz de gerar uma tal quantidade de estática psíquica que atrapalhava qualquer outro psíquico de atuar com capacidade plena. “Eu não acredito que Sílvia apelou para aquele cowboy mercenário”, pensava, enquanto decidia o que fazer. Então gritou para o homem que havia falado com ele há pouco:

_ Agente Branco, persiga o alvo na casa e elimine a tiros. Piloto, dê cobertura ao agente que vai descer, e os demais agentes também, dêem cobertura. Estou concentrado em apagar esta cena das mentes de vizinhos, não quero testemunhas e não temos tempo de matar a todos! _ e era tudo o que aquela maldita estática psíquica permitia que ele fizesse, cuidar das testemunhas, deixando-as catatônicas por algumas horas.

Branco desceu do helijato e teve de correr entre o espocar de tiros a sua volta, o franco atirador estava mesmo tentando liquidar os agentes da Limpeza, mas ele era bem treinado, e conseguiu cobertura na varanda da casa de Johnson antes de ser atingido. Entrou na casa a tempo de ver Meg e Ramirez (que dispensou a mochila) subindo a escada correndo. Branco disparou e quase os atingiu com uma saraivada de balas blindadas que explodiram paredes e destruíram sistemas eletrônicos no caminho de sua fúria. Branco correu atrás dos alvos e subiu as escadas, mas Ramirez pulou sobre ele, e um segundo depois estavam lutando corpo a corpo com a arma entre eles. Branco era muito bom lutador, e Ramirez não ficava nem um pouco atrás, de forma que em poucos momentos estavam lutando com as mãos nuas, pois a arma tinha sido arremessada para longe. Meg bem que tentou alcançar o rifle de Branco, mas do lado de fora o helijato havia acionado suas armas e disparava intensamente, e girava no próprio eixo vertical, o que o fez disparar suas potentes metralhadoras contra a casa, e Meg teve de se jogar no chão para não ser partida ao meio por rajadas de balas que esburacavam as paredes da casa.

Em golpes e contra-golpes marciais, Branco e Ramirez pareciam equilibrados na luta, sendo que cada um já havia tirado sangue do outro. Branco sabia que em poucos momentos os outros agentes de Limpeza iriam entrar, e ele perderia a chance de derrotar esse carinha bom de briga por conta própria. Ele, Branco, só tinha que saber o momento certo de se abaixar para que seus amigos pudessem fuzilar o homem com quem lutava. E foi o que tentou fazer quando apenas um de seus parceiros entrou (o outro, ele desconfiava, havia sido atingido ainda do lado de fora pelo franco atirador). Branco se abaixou, mas Ramirez, que previa esta manobra, deixou o corpo cair, e usou as pernas para dar uma violenta “banda” no oponente, o que fez este, menor e mais leve, girar no ar e cair sobre o peito de Ramirez, que lhe deu uma gravata e levantou Branco, usando-o como escudo humano. Mas o outro agente nem sequer pestanejou, e disparou uma violenta rajada de balas blindadas contra Branco e Ramirez logo atrás, a explosão das balas jogou o marido de Amanda Vincentti e seu prisioneiro contra a parede oposta com tal brutalidade que o reboco afundou.

O agente da limpeza olhou os dois caídos, Branco e  Ramirez, e mirou seu ponto de laser na cabeça de Ramirez, mas Meg, levantou gritando e jogou um quadro que havia caído no chão sobre o atirador, que se virou para ela atirando. Branco, que recebera o impacto das balas direto no peito de seu traje de Cinetkevlar, que era impenetrável, estava tonto apesar de ileso, Ramirez, atrás dele no chão, sacou a pistola que Branco trazia num coldre na cintura, e atirou várias vezes contra o outro agente que disparava contra Meg, uma das balas atingiu a têmpora esquerda do homem e o matou instantaneamente. Branco sacou uma faca de campanha da bota e a enterrou no ombro de Ramirez, que largou a arma. Branco, já recuperado e ágil, retomou a automática antes que ela caísse no chão, e apontou para Meg que havia escapado dos tiros do outro agente por milímetros, já que ele atirou contra o quadro “voador” e não tinha visão plena dela. Meg parou de correr e ergueu as mãos, Ramirez, mesmo ferido, usou um golpe de Kravmagá e desarmou Branco, que por sua vez deu um pulo para trás e socou a faca cravada no ombro de Ramirez, que urrou de dor quando a faca entrou até o cabo em seu ombro, inutilizando de vez seu braço direito.

Meg se atirou sobre Branco, mas este apenas guiou a moça para que passasse por ele e batesse contra a escadaria, perdendo os sentidos com uma violenta pancada da cabeça. Ramirez tomou posição de Boxe Tailandês e chutou tão rápido o rosto de Branco, que este nem pode se esquivar. E Branco bateu contra a porta da rua, que já estava em pedaços, indo parar no lado de fora da casa, com Ramirez já sobre ele, mesmo esvaindo-se em sangue que escorria vermelho vivo de seu ombro onde a faca ainda estava cravada. Branco chutou o peito de Ramirez e com um salto se pôs de pé. Com um movimento rápido, Branco atingiu o rosto do homem com o punho, mas Ramirez, com o braço bom, entrou por dentro do soco de Branco e expôs suas costas, onde chutou com um giro, fazendo o agente da Limpeza cair contra o chão, e se virar rápido, esperando um novo soco, mas Ramirez estava de pé, sem mais ânimo de lutar, de costas para Branco e de frente para o helijato, que descia bem à frente do homem, as metralhadoras expostas e girando, prontas para fazer Ramirez em pedacinhos.

Meg, que havia se recuperado, durona como era, veio correndo pela porta da fachada estraçalhada da casa de Johnson e saltou por sobre Branco, que se encolhia no chão para não ser atingido quando o helijato disparasse. Marjorie chegou a Ramirez no exato segundo em que as poderosas metralhadoras do helijato começaram a cuspir fogo cerrado. Ramirez sabia que nada mais poderia fazer, e quando sentiu Meg se abraçando a seu corpo, por trás, pediu desculpas em seus últimos pensamentos por não poder mais proteger a ruiva. Pouco antes de o helijato disparar, ele ergueu a cabeça, respirou fundo, e só conseguia ver em sua mente a imagem de Amanda e Layla (que ele não viu nascer, mas de algum modo já sabia até como a filha seria quando crescesse). Então se fez o trovão ensurdecedor das metralhadoras do helijato!

...

A comandante Sílvia McNamara estava possessa. Ela havia tentado de tudo para impedir a morte de Ramirez e Meg, pois era a mais humana dos comandantes da agência C7. Não conseguia crer que civis devessem ser eliminados, a não ser em casos muito extremos (até hoje ninguém descobriu o que ela queira dizer com isso). Quando nada mais podia fazer na hierarquia básica de comando, apelou para o Senex, o conselho que dirigia o C7. Fez uma ligação direta com um dos “velhos” e conseguiu uma entrevista com um deles, o próprio senhor Ihosef Asura, agora Diretor, no lugar do desaparecido senhor Proshenko (que Sílvia acreditava morto).

_ Quer vender sua alma para mim em troca de dois civis imprestáveis, McNamara?

_ Não. Quero que suspenda a ordem de limpeza, Ramirez e Dolores estavam atrás de dados falsos.

_ Você é mesmo a jovem Silvie, filha de Thomas McNamara?

_ Sim. E não precisa fazer rodeios, sei que odiava meu pai.

_ Sim, ele era chamado de Comandante de Aço, e ele próprio trouxe você para a Agência, mandando fuzilar seu marido e filhas.

_ Exato. Está bem informado, mas eu não tenho tempo a perder. Suspenda a ordem.

_ O acidente com a Charles Darwin fui eu quem provocou. Eu matei seu pai.

Silêncio. Após uma longa pausa, Sílvia, sem demonstrar emoção alguma, disse:

_ Vai suspender a Limpeza de Ramirez e Greenbury?

_ Sim, vou.

_ Protocole isso agora em seu terminal.

_ Claro, claro... _ e, deixando o charuto de lado sobre um cinzeiro, o elegante mas assustador Asura, de dedos ágeis e longas unhas bem cuidadas, fez alguns comandos em seu Tablet sobre sua escrivaninha de mogno antigo e trabalhado, e se voltou para Sílvia, dizendo _ Pronto, comandante.

_ Obrigada, Senador. _ ao que Asura expeliu um lento e perfeito anel de fumaça de seu charuto.

Dez minutos depois estava tentando fazer a ordem de suspensão da “pena de morte” chegar até o helijato de Schwartz, mas o comandante do Gembloux havia fechado os canais de contato, de modo a destruir os alvos e receber o cancelamento tarde demais. Sílvia não desistia fácil e mandou chamar seu melhor hacker. Tip II chegou alegre como sempre, e fez uma mesura vitoriana para Sílvia, que sequer esboçou simpatia, e foi logo dizendo:

_ Tip II...

_ Prefiro que me chame de Pit, senhora. Meu antecessor deixou em suas memórias que gostava de ser chamado assim...

_ Que seja. Pit, quero que me pense em uma maneira de meter esta mensagem de cancelamento de missão naquele helijato ali na tela do terminal.

_ Já tentaram o radiofarol?

_ Cumpra. Nem sei do que está falando mas faça.

Pit se sentou ao terminal de controle de missão, e começou a digitar com velocidade sobre-humana. Fácil, já que, como seu antecessor morto há algum tempo, ele era um Homem-Sintético, algo superior a qualquer robô existente dentro ou fora da Agência. Digitava febrilmente, e contornava senhas e contra-senhas de acesso aos radiofaróis do helijato, que sendo transmissores contínuos de sinais deveriam emitir de forma codificada a localização global do aparelho para a base operacional. Enquanto fazia isso, Pit cantarolava “Dayse, Dayse, i crazy for you, Dayse...”. Em poucos momentos pode fazer o sistema de radiofarol conectar com um receptor interno de radiofreqüência, e após batucar a música que estava cantando sobre o Tablet em que trabalhava, levantou-se, dizendo:

_ Voilá, mademoiselle Sílvia.

_ Obrigada, agente. Fizemos tudo que podíamos. Espero que chegue a tempo.

Momentos depois o piloto confirmou o recebimento e a suspensão da Limpeza, mas a telemetria do helijato indicava claramente, nos terminais de Pit e Sílvia, que o aparelho tinha disparado para matar contra os alvos.

...

Ramirez e Meg receberam as balas de olhos fechados. E por isso mesmo não viram por qual motivo as balas destruidoras nunca alcançaram seu alvos. Uma laje negra, de cerca de 4 metros de altura por 2 de largura, se materializou bem em frente aos dois, e todas as balas que atingiriam certeiras o casal de amigos, desapareciam mergulhando no negrume sombrio da “porta”. Depois de despejar toda uma fita de balas contra a laje, o piloto do Helijato, que havia sido obrigado por Schwartz a manter os rádios desligados, percebeu que alguém estava usando seu radiofarol (!?!) para enviar uma mensagem: “MacNamara, Sílvia. Cancelar Limpeza de Ramirez, Guilherme e Dolores, Marjorie, e retornar imediatamente à base Noruega. Verificar retícula de autenticação, e ordem expressa de Asura, Ihosef, Senador. Confirme recebimento agora.”

Diante do nome pavoroso de Ihosef, o piloto nem sequer consultou a retícula de autenticação. Confirmou o recebimento, abrindo os canais de rádio. Desativou as armas do helijato e diante de protestos de Schwartz, mostrou-lhe a mensagem. O comandante Gembloux ficou aturdido, mas também sabia o que podia significar desobedecer Asura, e seu piloto estúpido já havia confirmado o recebimento da mensagem.

Do lado de fora, de dentro da laje negra, um homem surgiu. Schwartz o reconheceu imediatamente. O homem, Mikail Karpov, tinha um fuzil de atirador de elite atravessado nas costas, fez um ligeiro cumprimento aos ocupantes do helijato tocando com indicador e polegar a aba de sue chapéu de cowboy, e foi gritando:

_ Boa tarde, Gembloux. Meu bracelete indica que você tem suas ordens de sair daqui. A não ser que queira que eu seja ordenado a “Limpar” você e seu piloto por desobedecer ao Senex, é bom sair fora rápido, imbecil.

Por tensos segundos, Karpov ficou encarando o helijato, que planava a dois metros do chão e a cinco metros apenas à frente dele. Depois o aparelho ganhou altura e foi desaparecendo ao longe. Karpov se voltou, e, passando por dentro da laje negra, parou em frente a assustados e ofegantes Ramirez e Meg, que olhavam descrentes para a imaterial laje escura que lhes salvou as vidas. Ramirez tinha começado a esboçar um exausto “obrigado”quando Karpov agarrou o homem pelos ombros e o derrubou no chão, arrancou a faca de seu ombro (o que quase fez Ramirez quase perder os sentidos de tanta dor que lhe causou) e, quando Meg esticou a mão direita instintivamente ao ver o amigo no chão, Karpov girou a faca no ar, e fez um talho feio na palma da mão de Marjorie. Mikail foi dizendo:

_ Calma, não vou mais ferir vocês, isso é só pra entenderem que não gosto de brincar. Fui eu quem evitou que eles fuzilassem vocês ali naquela porta. Você, ruiva, eu salvei por interesse, já que me ofereceram uma barganha imperdível pela sua vida, e você, Ramirez, não lembra de mim, mas eu lembro de você, não gosto nem um pouco de você de graça, e só não lhe deixei morrer por quê achei que estava em dívida contigo.

_ D-dívida? _ fez um pálido Ramirez, que já havia perdido muito sangue. Ele também não gostava nem um pouco daquele cowboy, e não só pelo que ele estava fazendo agora, era um “não gostar” mais profundo.

_ Não interessa. Eu sei qual é a dívida, e isso me basta. Ela ta paga, na próxima eu te arrebento e deixo tua carcaça apodrecer, entendeu? E as balas daquele helijato eram festim, vocês nunca viram esta laje preta aqui, e certamente vão esquecer o dia de hoje, senão eu mesmo estripo vocês. Fui claro?

Ambos, Meg e Ramirez, acenaram afirmativamente. Karpov se deu por satisfeito, fincou a faca no chão ao lado do rosto de Ramirez, levantou-se e entrou na “porta”, indo ao ponto onde deveria buscar sua “paga” por salvar os dois civis, conforme o acordo que fez com No_One. Ainda em Veneza, Meg arrancou o carro da garagem e partiu velozmente com Ramirez para um hospital, e pelo sistema retrovisor do carro, pode ver que a casa de Johnson explodia. O cara da laje preta, pelo visto, tinha plantado uma bomba dentro da casa para não deixar vestígios do “dia que todos deveriam esquecer”. Meg não estava nem aí, só queria salvar Ramirez, que estava perdendo muito sangue. E depois ir atrás de seu John.

..

Não foi preciso ir atrás de Johnson, logo depois que cuidaram do ferimento na mão de Marjorie, e enquanto Ramirez era operado, para reconstrução dos ligamentos da musculatura e da ossatura de seu ombro direito, Meg quase explodiu de felicidade quando John ligou para ela. Na verdade ele tentou falar com sua casa, não conseguiu, depois tentou o Antiqua, e visto que Meg havia ligado para lá do hospital, Johnson conseguiu achar ela ali, finalmente:

_ Como está, ruiva?

_ Puxa, meu querido, é você mesmo?

_ Sim, sim, Meg, sou eu mesmo. Porquê, tentaram enganar você, minha princesa?

_ Tentaram, John, mas eu explico depois. Você está bem?

_ Sim, estou com Milena indo direto para casa.

_ Ah, vá ao Antiqua, sua casa já era... _ e Meg se encolheu, esperando que John ficasse furioso, pois muitas coisas preciosas dele estavam lá. Mas a reação do moço apaixonado foi outra:

_ Tudo bem, ruiva, tudo bem, o importante é que você está bem, ruivinha minha.

_ Eu estou bem querido, quando você chega aqui... Estou precisando de você, John... _ e Meg, pressionada por tudo que aconteceu no ida, começou a chorar.

_ Oh, Meg, Meguie, não chora, estou chegando. Estarei aí amanhã pela manhã, preciso usar meios civis para... Bem, eu chego aí rapidinho, ruiva, só não chora, por favor. Faz o seguinte, usa o que quiser do Antiqua, se quiser fecha o Antiqua e usa o cofre de segurança máxima, como quarto.

_ Eu não vou dormir junto com aquela tranqueira toda, Johnson!

_ Aquele é o lugar mais seguro que conheço, e quem disse que precisa dormir com aquela “tranqueira” toda, joga tudo fora...

_ Ta maluco, deve ter uns doze milhões e meio de créditos ali só em raridades e peças artísticas!

_ Você, Meg, é o que eu tenho de mais precioso nessa vida. O resto poderia valer cem milhões que eu jogaria tudo nos canais de Veneza prá te proteger! Só prá você parar de chorar, ruivinha.

Marjorie sorri, mordendo o carnudo lábio inferior, ainda com lágrimas correndo pelo belo rosto, ela ri e pergunta, brincalhona:

_ Dá tudo prá mim, então?

_ Trinta por cento.

_ Setenta.

_ Quarenta.

_ Setenta.

_ Cinqüenta.

_ Setenta e cinco por cento.

_ Cinqüenta e cinco por cento.

_ Fechado, John... Volta logo!

Johnson ri, feliz por estar apaixonado por aquela comerciante adorável. Ele, na telinha do Tablet na mesa da recepção do hospital, parece falar com alguém, que Meg supunha ser Milena, e voltou-se para a tela dizendo:

_ Amanhã cedinho estou aí, minha amada.

_ Manda um beijo prá Milena.

_ Ela vai comigo, e você mesma dá seu beijo.

_ Ta bom.

_ Agora me conta um  pouco do que aconteceu aí?

E enquanto Meg contava, mencionou Ramirez, o que fez Milena perder o fôlego. Mas depois de momentos de agonia, a agente se tranqüilizou ao saber que o irmão estava bem, e que aquela tarde mesmo partiria para casa,  pois ele preferia ir logo, já que não havia permitido que avisassem a esposa grávida que ele havia sido ferido. Em pleno século XXII era comum se fazer uma operação delicada como aquela e ir para casa no mesmo dia.

...

O Aeroporto Internacional de Veneza estava tranqüilo naquela tarde, e Marjorie acompanhava Ramirez em um pequeno mas agradável restaurante no prédio principal do aeroporto, enquanto ele esperava a chamada para seu vôo para Jamaica. O sol, brilhante e morno, descia com seus raios oblíquos pelas grandes vidraças do aeroporto flutuante, construído em uma ilha artificial.

_ Não vamos perder o contato, certo? _ perguntou Meg, sorridente.

_ Depois de tudo isso, eu não vou querer te ver nunca mais na minha vida, Meg! _ e piscou.

_ Bobo._ disse ela rindo _ Que afinidade “instantânea” foi essa entre nós, Gui?

_ Acho bom você ter falado nisso, estava mesmo querendo conversar com você de forma adulta sobre isso tudo. Acho que você é um ser humano nobre e adorável, Meg, então fica impossível não gostar fácil de você...

_ Adoraria que meus funcionários e entregadores pensassem assim, cavalheiro.

O homem ri, ela também, belíssima, e ele continua:

_ ... Pois é, mas lhe garanto que eu vejo facilmente estas qualidades em você.

_ Obrigada, é recíproco, você é um cara muito maneiro.

_ Só que você também é uma mulher muito, muito bonita.

_ E você extremamente atraente.

Silêncio.

_ O quão atraídos estamos um pelo outro é que vai ditar se devemos prosseguir nossa amizade ou não, em respeito as pessoas que amamos.

_ Leu meus pensamentos, Ramirez. _ e ela toma mais um gole de vinho branco.

Ele suspira, e diz:

_ Pode ser uma atração física...

_ É uma atração física. Óbvio. Mas é só isso?

_ Bem... Há que se verificar, mas...

_ Fale.

_ Não sei se devo...

_ Não está sugerindo que eu... Que nós dois... Juntos? Está?

_ Não, Meg, pelo amor de Deus, eu amo minha esposa, e sei que ama o John também, isso seria falta de caráter!

_ Claro! Se me dissesse isso eu ficaria honestamente decepcionada com você! _ e Meg falava muito sério. _ Mas estou consciente de que temos que resolver isso de uma vez para sempre.

Silêncio.

_ Um beijo da Amanda me faz sentir o peito leve, e as faces queimando, e me deixa com febre, e zonzo, e o gosto, ah, o gosto é qualquer coisa! Ela me faz voar...

_ Hum, John me beija como se eu fosse de louça. Parece que estou valsando com ele, é terno, sexy, adorável...

Então o sistema de comunicação do aeroporto anunciou:

_ Passageiros do vôo 312 para Jamaica, portão seis em quinze minutos.

_ Seu vôo.

_ É, Meg.

_ Vai ou não vai?

_ Vai, Meg... _ e ele puxou o queixo de Marjorie, que fechou os olhos, e se deixou beijar. Nada complexo ou ensaiado, apenas acontece. Ele beija com a segurança de um homem experiente. Ela fica tensa, mas no momento seguinte devolve o beijo, e tem a sensação de que precisa dizer algo, mas quando as bocas se afastam, o primeiro a falar é Ramirez:

_ Agora sim, tenho certeza: somos amigos.

_ Sim! Sim, sim, sim, desculpe, seu beijo é agradável, mas é meio que “fraterno”, nem se compara ao que sinto quando beijo John! Johnson me deixa com um tesão especial!

_ Eu digo a mesma coisa. Você beija muito agradavelmente, amiga, mas nós não damos choque um no outro, não nos deixamos com tesão. Não é legal? _ ele está sinceramente feliz, é como se um peso enorme tivesse sido tirado de suas costas. Meg também está feliz, por não se sentir mais culpada ao ficar imaginando o que seria se acontecesse algo entre ela e Ramirez, agora ambos sabem, suas paixões são a Amanda dele e o Johnson dela. Ramirez ainda acrescentou _ Desculpe, Meg, pelo beijo, mas tínhamos que tirar isso a limpo, em certas coisas é melhor que se ateie fogo honestamente do que se fique escondendo as coisas com uma polida falsidade.

_ Claro, Ramirez, você está certíssimo, foi legal. Assim temos certeza de quem realmente queremos beijar pelo resto de nossas vidas, não? _ e sorriu, graciosa.

_ Certo, Meg, fico feliz em ter sua amizade, de todo o meu coração.

_ Mas seja honesto, se Amanda se sentisse atraída assim por outro, e fizesse um “teste” desses, você não ficaria aborrecido?

_ Claro que ficaria. Mas eu não sinto esse tipo de atração inexplicável o tempo todo. Para ser honesto, fora a Amanda, que me conquistou a alma assim que bati os olhos nela, nunca me senti assim por ninguém. Então eu precisava dar fim nisso, saber o que eu estava sentindo, saber se eu poderia amar outra mulher mais que amo minha Amanda. E eu não posso, nunca vou poder. Eu inteiro pertenço à Amanda, e pronto. Não sei se é certo o que fiz, pois se Amanda fizesse e eu soubesse, me partiria o coração, mas estou feliz por confirmar que ela é e será sempre a única. Creio que nunca mais na minha vida vou precisar fazer algo assim de novo. E de antemão, se um dia ela fizer e eu souber, estou na obrigação de me esforçar para entender ela, não acha?

_ Você é um bom homem, meu amigo.

_ Obrigado. Agora se eu não correr perco meu vôo.

_ Vamos, vamos!

E dispararam pelo saguão do aeroporto. Ramirez conseguiu embarcar em cima da hora, e se despediu de Meg com um caloroso abraço, e um beijo estalado no rosto. Haviam construído, com diálogo franco e maduro, uma maravilhosa e sincera amizade.

...

Nataly Allcaki (2) estava de pé diante do gigantesco prédio-mãe da empresa que sua avó fundou, e que um dia, por um ardil desonesto, passou ao controle acionário da família Kimsey. Com os Kimsey respondendo a processo na ONU por tramar contra o bem da humanidade, o conselho diretor da empresa teve permissão federal para por a venda 25% das ações dos Kimsey, o que era a oportunidade perfeita para a nova geração dos Allcaki retomar o controle acionário da mega empresa: Nataly havia acumulado uma pequena fortuna trabalhando por conta própria com exportações entre a Terra, as colônias e Marte, e a usou inteira para se tornar a sócia majoritária da empresa de seus ancestrais, comprando no primeiro lance 23% das ações oferecidas. A Allcaki Commerce voltou, depois de 40 anos, a ter uma Allcaki no leme. A jovem Nataly, então com 29 anos, dinâmica e capaz, iria transformar a Allcom em algo muito além de seus sonhos, que estavam apenas começando.

_ Bem, vamos lá. _ ajeitou o vestido que lhe caia muito bem. Estava muito atraente, com seus traços doces e descendência do oriente médio _ Coragem, garota. Eu consegui, vovó, eu consegui. Agora vai rezando por mim aí do céu, valeu?

Resoluta, caminhou elegantemente, direto para o saguão executivo. Seus sonhos estavam apenas começando a se realizar.

...

Milena mal chegou a Veneza e recebeu ordens de voltar a mais próxima base do C7, onde foi instruída por Orwel e Sílvia de que precisava arrumar um modo de contar a Matheus Vincentti sobre o falecimento da filha e lidar com a reação dele, pois o engenheiro seria fundamental em uma missão futura. Apavorada, Milena começa a imaginar como poderia fazer aquilo. Mas assim que Sílvia a deixou sozinha, Milena chamou:

_ Orwel!

_ Sim?

Ela demora a responder, suas faces queimam. Milena respira fundo, toma coragem, e fala:

_ Desculpe pelo... Beijo naquele Universo Branco... Desculpe... Oh, por favor, me desculpe.

_ Você guardou as lembranças?

_ Sim, todas. Estou superenvergonhada na frente de John, e na sua frente, Orwel. Prefiro que John acredite que não lembro o que aconteceu. Já você eu tratei com um desrespeito ainda maior, eu não tinha consciência... Oh, puxa vida, desculpe.

_ Sou uma máquina, não tenho sentimentos. Esqueça isso.

Milena sentiu que poderia ser tragada por um buraco negro, que não se importaria, de tão envergonhada que estava com suas lembranças, mas já sentia um certo alívio de Orwel não dar grande importância à coisa. Súbito, porém, ela lembrou que Orwel tinha sido atacado, e perguntou:

_ Como sobreviveu a No_One?

_ Eu tinha uma “carta na manga”. Esqueça isso também. Vá planejar como contar a Matheus que sua filha está morta.

_ Os acordos que protegem Amanda continuam valendo?

_ Sim, tem minha palavra. Agora vá.

E não falaram mais nestes assuntos, para alívio da extremamente constrangida agente Milena. Ela saiu, aborrecida com sua missão dolorosa: mentir para o pai de Amanda. Afinal para quê aquilo seria importante para o C7, e porque justamente ela tinha que dar a notícia?

...

Suavemente as cortinas começaram a se recolher, e os vidros nas janelas começaram a clarear, de modo que os raios solares daquela manhã nítida e incandescente, na sempre bela Veneza de meados do século XXII, se imiscuíram, marotos como crianças brincando, no quarto. As mechas de luz tocaram primeiros os pequenos e bem feitos pés de Marjorie, a Diretora Comercial da galeria de artes chamada Antiqua, dona de 55% dos objetos de arte e raridades armazenados no cofre de segurança do antiquário. No mesmo instante uma voz masculina, bonita e encorpada começou a cantar, com perfeição e técnica, emoção e delicadeza, Love Me Tender, canção de Elvis Presley, uma das mais queridas de Meg, que, manhosa, girou nos lençóis, feito gata a se espreguiçar, na própria cama, no próprio apartamento, e brindou o cantor com um de seus magníficos sorrisos.

_ Oh, my darling, i love you... _ cantava docemente Johnson, dono de uma bela voz, com a própria ternura no olhar, e foi se deitando sobre a amada, que acompanhava bem baixinho o namorado a cantar, e quando ele já estava à altura do rosto dela (enquanto cantava, veio percorrendo com o hálito quente todo o corpo da namorada, desde os pequenos e claros pés, subindo por coxas, barriga e seios, todo o caminho do corpo bonito e nu de Marjorie) terminou a música cantando mais baixo, rente aos lábios ansiosos de Marjorie _ I love you, and i aways will...

_ Ah, John, me beija, querido, me beija...

E beijou, beijou com fogos de artifício, com toda a eletricidade e o tesão que nos dão os beijos de quem amamos profundamente, beijou muito e muitas vezes, a boca e todo o corpo amado de sua querida Meg, por todo aquele dia, e por vários dias depois daquele, como se pudessem viver apenas da energia ilimitada da paixão que sentiam um pelo outro. Estavam felizes. Meg revelou a John que estava livre da terrível doença que a acometia desde sua vinda do século XX e que ela se recusava a tratar até a algum tempo atrás, e uma coisa nova e maravilhosa começou a acontecer na relação de Johnson Mitchel e Marjorie Dolores Greenbury: eles continuaram a curtir o presente, mas começaram a ter esperanças, e planejar para o futuro, muitos planos financeiros, afinal Meg não perdia a mania de pensar em finanças, mas alguns planos emocionais, como viajar juntos, e quem sabe, um dia, viverem juntos, como estavam fazendo por agora, enquanto John reconstruía sua casa. John começou a alimentar uma idéia maluca: pedir Meg em casamento, mas ainda precisaria de um bom  tempo para lidar com a idéia de que, sendo um agente C7, poderia constituir uma família para si. Mas só por ter estes pensamentos, tinha dias muito felizes, pois a mais verdadeira esperança é uma luz poderosa, que guia todos os corações na pior das tempestades, e salva quem a tem da mais profunda escuridão. Mas, por certo, aqueles foram dias de muita luz para John e Meg.

...

Movendo-se lentamente no espaço profundo como que acompanhando os acordes suaves de Love Me Tender, bem depois da órbita de Plutão, e bem mais longe, após a nuvem cometária de Hort (3), um corpo esférico e nitidamente artificial, com cerca de 260 quilômetros de diâmetro em seu “equador”, ele próprio todo recoberto de calhas e torres escuras e sinistras, vinha sem pressa em direção ao sistema solar. Quem o conhecia sabia que seu nome era impronunciável pelos nativos da Terra, então passaram a chamar o planetóide artificial de Shiva (4). E ele não vinha só, a sua volta havia Damaru (5), uma “lua” de 30 quilômetros de diâmetro, e na órbita oposta girava sua irmã gêmea, Agni (6).

Mas esta pequena família de errantes cósmicos não estava só. Shiva gerava a volta a atrás de si um imenso campo gravitacional artificial, totalmente desproporcional a sua massa, que fazia com que ele arrastasse uma assombrosa “Maré de Escombros” atrás de si, restos de outros sistemas solares pelos quais passou, e aos quais levou a destruição final. Bilhões de fragmentos de todos os tamanhos concebíveis, de rochas, metais, gelos, e tudo o mais que se atrelasse ao “puxão” cósmico de Shiva.

Se sua órbita fosse calculada, verificar-se-ia que ele vai mergulhar profundamente no Sistema Solar, e deverá encontrar todos os planetas, passando mais próximo dos interiores. O próprio Shiva e seus rebentos, Damaru e Agni, já levavam terríveis segredos criados por aqueles que a Agência decidiu chamar de Mahapurana. Mas a esteira de escombros, ao passar pelos mundos do Sistema Solar, reduziria esses planetas ao seu estado original: imensas esferas de rocha e metais derretidos, tal será a constância e a violência dos impactos.

Mesmo enquanto passava pela nuvem cometária de Hort, Shiva arrastava destroços da nuvem. Tal gigante tenebroso deveria ser facilmente captado por sondas e sensores de longa distância, mas isso não ocorria pois, manipulando a constante gravitacional da maneira que lhe aprouvesse, e no sentido que lhe fosse conveniente, Shiva parecia, aos humanos, uma minúscula chuva de pequeninos e quase imperceptíveis detritos cósmicos, poeira estelar, entrando calmamente no sistema. Alguns na agência entretanto sabiam que ele estava chegando, que logo estaria aqui, que arrumaria um jeito de se apressar, quando lhe conviesse, só não tinham certeza exatamente de qual seu poderio, e onde Shiva estava naquele momento. Ele precisava ser vigiado.

Uma única nave terrestre poderia saber a verdade, uma única nave poderia visitar Shiva e chegar a tempo de avisar a Terra de que algo horrível iria destruir a todos, a pequenina Estrela Distante, que seria lançada em poucos dias pela ONG A Grande Aventura. O C7 sabia disso, e planejava, febrilmente, como aproveitar a Estrela Distante e salvar o Sistema Solar do poder de Shiva. O que o Senex não sabia é que o inimigo estava dentro, agora. Sem que ninguém soubesse, “estrangeiros” haviam se infiltrado e o próprio Orwel, morto, havia sido substituído por uma Inteligência Artificial alienígena. Isso sem contar as tramóias internas da Agência, e que seus membros continuavam a lutar pela humanidade, contra o inimigo invisível, e entre si, pelo poder absoluto.

Mas de todo o modo, eles planejavam e planejavam. Entretanto, a terrível questão na cabeça dos poucos que sabiam da chegada da Maré de Escombros era: o que se poderia fazer contra Shiva? Como mortais podem almejar destruir um deus?


Alguns homens tolos declaram que o Criador fez o mundo. A doutrina que o mundo foi criado é uma opinião errada e deve ser rejeitada. Se Deus criou o mundo, onde estava Ele antes da criação? (...)

Como pôde Deus fazer o mundo sem uma matéria-prima? Se dissermos “Ele fez isso (a matéria-prima) primeiro e depois o mundo”, estamos face a uma regressão sem fim (...)

Admito que o mundo é incriado, como o próprio tempo, sem início e sem fim (...)

E está baseado nos princípios.

_ O Mahapurana (A Grande Lenda), Jinasena (Índia, Séc. IX)

 

Toda a prosperidade bem como adversidade vêm ao homem e às outras criaturas através do 7 e do doze. Os doze signos do Zodíaco, como diz a Religião, são os doze comandantes do lado da luz; e os 7 planetas são ditos como os 7 comandantes do lado da escuridão. E os 7 planetas oprimem toda a criação e entregam para a morte e a todas as faces do mal. Os doze signos do Zodíaco e os 7 planetas governam o destino do mundo.

 

_ O último livro zoroastrino, o Menok i Xrat.

FIM

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Comentários e Traduções:

(1)    Bendito és Tu, Adonai.

(2)    – Sim, é uma singela homenagem à nova e querida amiga Natália Caki.

(3)    – Nuvem de onde vêm os mais importantes cometas, está além de Plutão, o nono planeta.

(4)    – Deus hindu, aqui referido em sua manifestação como Senhor da Dança da Criação.

(5)    – Pequeno tambor que simboliza a criação.

(6)    – O Fogo da Destruição.


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