Mais um Dia


RPG:C7

Mais um Dia

Autor: Wagner Ribeiro.

Co-Autora: Anna Carolina Maia.

Escrito em: 21/03/2002

Ligou o som no último volume, a música que tocava era “fly away” de um cantor já falecido a mais de século. A casa parecia um amplificador gigante, dava para sentir mesmo com todo o isolamento acústico, e só se ouvia os gritos de quem estava vibrando com a música lá dentro.

As cortinas da casa se abrem, deslizando suave e automaticamente, e quem passava na rua se depara com a imagem da deidade feminina: metro e setenta de altura, belos olhos azuis e cabelos negros, cacheados até a cintura. A pele branca qual boneca de louça rara, na belíssima face um sorriso infantil, mas ao mesmo tempo malicioso. Poderia a moça até estrelar filme _ “o perigo mora ao lado”. Bela menina miúda de formas perfeitas, com sorriso envolvente, ela havia acabado de mudar para o condomínio em Angra dos Reis, um paraíso esculpido por Deus, e que a humanidade de meados do século XXII aprendera a tratar com reverência e respeito ecológico.

A moça estava arrumando a casa, talvez dando o seu toque especial. Bonito chalé a beira-mar, grande, elegante. Quem quer que more lá, pensaram os vizinhos antes da chegada da moça, tinha muito dinheiro, ou trabalhava muito para sustentar seus luxos.

Saía então da casa, agora silenciosa, uma beleza de mulher, carregando consigo um pequeno vaso e uma muda de flor rubra, recendendo a paixão. As luvas, sujas de terra, protegendo pequenas, belas e claras mãos. Andara trabalhando. O cabelo preso em um rabo de cavalo, um short jeans desfiado na barra das pernas, de cintura baixa, curto. Deliciosamente curto. E uma blusinha branca de alça, pouco acima do umbigo, deixando a barriquinha modelada à mostra, e delineando seios delicados em suaves curvas hipnóticas. Dava a impressão de uma Lolita, pronta para desmoronar com todas as famílias comportadas que moravam lá.

Um mero “Bom dia” seu desarmava os homens e enfurecia as mulheres. Graciosa, abaixou-se e começou a mexer na terra. Colocava a pequena muda no canteiro, tampava e a apalpava, com uma delicadeza que se vendo, só se podia suspirar e aspira a posse daquela mulher-obra-de-arte.

Com o semblante matreiro de menina que se sabe deslumbrante, faz gestos que, embora simples, para os olhos masculinos transeuntes, brilhavam com todos os tons do desejo. Entretida com suas semelhantes, as flores, ela morde beicinho enquanto coloca, gentilmente, sementes nos vasos, os rega, e os arruma no canteiro, já repleto de outros vasos, cada um de uma cor, para cada planta de uma espécie diferente. Tudo minuciosamente organizado. O jardim já estava quase pronto, só faltavam alguns detalhes de decoração, coisa sutil, que só chegaria no outro dia.

Pediu tinta e pincel aos robôs domésticos. Aéreos e ligeiros trouxeram as tintas, o pincel, e água-de-coco gelada, que ela só provou. Começou a pintar as cercas de sua casa com verniz colorido, poderia pedir aos servos mecânicos que fizessem isso, mas aí perderia toda a diversão. A cada movimento de abaixar os vizinhos eram acometidos de lapsos, um perdeu o controle do cortador de grama, que, do tipo que precisa de um operador humano, subiu por sobre a varanda da casa do sujeito, e quase matou o cão preguiçoso que dormia ali de susto, o que fez a bonita moça rir, liberando no ar a música de seu riso cristalino. Sereia, pensavam os vizinhos mais poéticos, sereia que, bela, encanta também com a voz.

Terminou o trabalho duro. Esforço que em verdade foi uma diversão para ela: trabalhar em seu jardim, com aquele monte de homens babando por ela era um bom começo em sua nova casa. Transpirava sedução, a clara deusa. Adorava atiçar o desejo deles, mas fugia rápida como bala se algum quisesse algo que ela não desejasse, ou se tratando de “espoleta” Vincentti, e fosse o pretendente longe demais, “dava uma porrada na cara do cara”, e pronto.

Mas agora era hora de curtir o mar, logo ali, atrás de sua casa. Sinuosa, ela retirou cuidadosamente o short, os quadris se movendo ondulantes, como se fosse um pouquinho difícil tirar a roupa. Enfim, espiando pelo canto do olho outro rapaz (bonitão, por sinal) que se abanava, com os calores do desejo, enquanto tentava a observar discretamente, deixou os jeans deslizarem por suas pernas lindas e torneadas, e ficou então apenas com a parte de baixo do biquíni, branco, e sua blusinha branca, de alça.

“O paraíso é branco, mulher de seda”, pensavam os sofridos admiradores dela.

Após uma felina espreguiçada, tirava agora a blusa, revelando enfim um biquíni tomara-que-caia, que, claro, era tudo o que eles pediam a Deus que caísse. Ego inflado, com todo o direito, pois merecia, ela soltou o cabelo lindo, mexendo-o com um movimento sexy, e delicadamente, intencionalmente maliciosa, passou a língua na boca, umedecendo os lábios perfeitos. Olhou, de rabo de olho, por entre os cachos do cabelo negro, para ver se os seus admiradores ainda estavam lá. Na verdade, eles tinham aumentado de número. Sedutora, andou até a praia, cada célula de seu corpo de mulher irradiando forte magnetismo sensual. Mãozinhas tocando a fina cintura, molhou os pés na água, e entrou devagar, e como sereia mergulhou.

Banhou-se, longamente, e saiu, tão linda quanto entrou. Com a única e dolorosa diferença para os que desejavam e não podiam ter essa mulher: gotas de água salgada dançavam sobre suas curvas, acariciando seu rosto perfeito, seu colo encantador, suas coxas desejáveis, e terminando em rodopios ardentes em seus magníficos pezinhos.

Ela não possuía outros dons sobrenaturais, senão seu carisma, sua inteligência, beleza, e sua alma irrequieta e sedutora, mas quase podia ler as mentes das pessoas próximas: que gostosura a nova vizinha, que pecado não ser minha, ou então, que menina metida, pensavam almas despeitadas, se acha a tal, olha lá.

Acostumada ao despeito, sorria, molhada de mar, tão maliciosamente quanto fazia a Lolita, no antigo cinema, quando ficava deitada na grama deixando os esguichos d’água molharem o seu vestido, pondo suas formas à mostra. E em ato quase pecaminoso, curvou o tronco, sem dobrar as pernas, e abaixou para pegar suas roupas no chão, e ante alguns suspiros audíveis, deu um sorriso, se ergueu e acenou um pequenino adeus para aqueles que fingiam cortar grama já aparada umas vinte vezes.

Entrou em casa.

...

Imagine que você é um dos rapazes, um dos vizinhos de sorte, e que está espreitando com binóculos esta pequena e maravilhosa obra divina em forma de mulher, através das enormes vidraças da casa da moça.

Anoitece, e as luzes da casa de Amanda Vincentti (eis o nome da deusa) se acendiam em seqüência. Lá dentro, onde se esperava um vulcão em cinta-liga, ou a imagem de uma mulher coberta de suor e transbordando desejos carnais, se via tão somente uma menina linda, de camisetão do Mickey, de pantufas de pata de tigre, e uma caneca da Turma da Mônica na mão. Transformada em sua confortável versão moleca, Amanda estava com um de seus levíssimos e poderosos terminais de dados tablet no colo, falando algo divertido com alguém, pois sem aviso, ela soltou uma gostosa gargalhada. E mandava um beijo, na verdade beijava o tablet, e sorria como se estivesse falando com a pessoa mais doce do mundo, ela fazia gracinha com o rosto. Acenou com os dedinhos de uma das mãos e desligou. Jogou o terminal sobre um monte de almofadas, e atirou-se em um sofá branco, pés para o alto, com se estivesse mostrando as patinhas de tigre para alguém. Pegou um controle-remoto e ligou algo, mexendo as pantufas num certo ritmo, como se estivesse ouvindo música.

Pois na verdade era isso que ela estava fazendo: curtindo música. Por duas horas, pelo menos, ouviu músicas de diversas qualidades, ouviu jazz, rock, blues, e muitas músicas brasileiras, adorava músicas brasileiras. Sem perceber, a moça de pantufas deu a louca, e dançou, dançou e dançou. Era até engraçado, ela dando pulinhos bonitinhos e caricatos, enquanto cantava totalmente passional, tocando guitarras, saxofones e baterias imaginárias, às vezes elétrica, às vezes suave e sensualmente, ao ritmo das músicas que se sucediam.

Pois enquanto isso um Honda esportivo para em frente à casa da boneca, e do carro desce outra divindade: uma morena no tom do desejo, morena feito índia, feito havaiana (o que de fato era), com quase um metro e oitenta de altura (1,77 metro, diz seu binóculo digital), com curvas de enfartar adolescente saudável, longos e lisos cabelos negros como uma densa noite de amor, e olhos... Olhos azuis com a expressão mais doce e ingênua (sim daquele tipo que atiça as fantasias do mais comportados dos homens) que você já viu na vida. Uma rival a altura? Uma deusa morena iria bater a porta de uma deusa branca! Você ajoelha e reza para que sejam hetero, as duas, pois seria um dos maiores desperdícios que você, rapaz hetero até a raiz dos cabelos, veria em sua vida.

Seu alívio é imediato. A morena é recebida com grande alegria, mas é visível que o amor ali é imenso, mas fraterno. A morena, você vai ficar sabendo, se chama Milena, melhor amiga de Amanda, deixa sua bolsa de viagem aos cuidados de um robô, que a leva e a arruma no quarto de hospedes. Ambas se jogam no sofá branco, se abraçam, e parecem passar longos minutos “pondo fofocas em dia”. Então Amanda levanta e, dedinho lindo girando no ar, até apontar para Milena, que agita o belo rosto de menina-mulher em um não desesperado, mesmo que seu sorriso inocente diga que ela até poderia ser convencida do contrário. O que quer que a deusa branca esteja propondo, alguma guloseima, alguma traquinagem, era tentador, dava para perceber. Amanda faz que “sim” com as mãos na cintura, como quem exige uma atitude da amiga, e parece que a Milena está implorando que não, mas Amanda insiste, e como sempre, convence Milena.

Amanda arrasta Milena até o próprio quarto, pega um vestido, preto curto (pelo menos vai ficar curto e justo na morena monumental que é Milena), e põe a amiga sentada na cama. Pega um estojo de maquiagem, e maquia a morena, conseguindo deixar Milena ainda mais bela. Atrás de um biombo (Droga! Você pragueja) Milena põe o vestidinho preto, se transforma de mero monumento à beleza feminina, em super monumento a beleza feminina.

Então a própria Amanda corre para o banheiro e toma um banho rápido (uma pena que não tenham vidraças naquele banheiro, não?), antes que a Milena desista de sair. E de fato parece que Milena (o recato e a timidez em pessoa) já esta reclamando por causa do decote do vestido, de como ele ficou justo, e quando a morena se empina para olhar como está a própria bunda, seu coração de espião dá aquela parada de bateria de escola de samba. Mas nada prepara você para o que está por vir...

...

Amanda sai do banheiro, enfezada com os resmungos de Milena, tão enfezada que nem ligou de sair nua em pêlo, disparando uma bronca em cima da outra:

_ Ah, qualé, Milenaaaa!! Ohé, li, cara, _ foi dizendo a italianinha, com seus palavrões na língua natal _ Você ta linda, gostosa, tesuda! Olha essa bunda!

_ Pois eu não estou acostumada a me vestir assim, e eu realmente estou vendo bunda demais aqui, Amandinha... _ Responde Milena, num tom choroso.

_ Mas você quer o que? Você tem o maior bundão mesmo, e é lindo! Quem me dera ter tanta bunda assim! Porra, quer parar de babaquice! Tira a porra da mão daí, este decote é cavado mesmo, tira a mão, para com essa pugnetta de ficar puxando decote prá cima e barra do vestido prá baixo, catzo. Assim, esse vestido tem que ficar assim!

E Amanda arrumou Milena, deixando-a capacitada a enlouquecer qualquer mortal, feito uma deusa morena do amor. A havaiana fica se olhando no espelho da cômoda no elegante quarto da amiga, no fundo adorando estar tão... Atraente... Mas envergonhada a ponto de quase não conseguir respirar. Mas como ela não saísse de frente do espelho, obviamente gostando de se ver tão sexy, mas não desemburrasse a cara, Amanda foi emendando:

_ Ta! Ta linda mesmo! É assim que você vai sair comigo e pronto, e para com isso, parece uma jeca que saiu do interior ainda agora... E anda, sai da minha frente que eu quero me arrumar... Anda, já saiu?

Milena fez uma carinha triste, e saiu da frente. Moleca brincalhona, Amanda puxa o cabelo dela e sorri, Milena sorri de volta e senta na cama deixando aquela baixinha invocada se arrumar. Amanda põe uma calça de cintura baixa, preta, e uma blusa frente única com paetês pretos. Deslumbrante. Vincentti coloca brincos compridos, de prata, e pergunta para Milena se os brincos ficaram bons.

_ Você esta linda, Mandinha... _ Responde Milena, orgulhosa da beleza da amiga-irmã, mas assim que Amanda vira as costas, a morena puxa um pouco para cima o vestido que esta usando, sem a outra ver, diminuindo o generosíssimo decote. Ou Milena acha que a outra não viu. Mas viu, pelo espelho, e se virou para trás, como se ela, Amanda, fosse uma irmã mais velha pronta para dar uma bronca na irmã mais nova. Antes que Amanda dissesse algo, entretanto, Milena foi dizendo: _ Mas, Mandinhaaaa, esse vestido não é para mim, ta curtinho demais, eu estou parecendo uma garça com quilômetros de pernas para fora! E olha este decote, eu estou quase nua! Meus peitos vão pular desse vestido, pelo amor de Jesus Cristo, me deixa por uma roupinha minha mesmo, e eu saio com você sem reclamar.

_ Ai, que saco, Milena! _ Começa Amanda, frisando os lindos olhinhos azuis para a amiga _ Que saco! Mannaggia la! Ôôô, troço!! Quer saber de uma coisa? Você vai vestida ASSIM MESMO, e pobre de você se reclamar no meu ouvido de novo. Ouviu?

Milena, que se encolheu diante da fúria da outra, fez que sim.

_ Fala, Milena. Ouviu?

_ Ouvi sim, Amanda! Mas para quê eu vou vestida assim, se eu nem sei paquerar ninguém? Os caras aí é que só vão querer aquilo comigo mesmo!

_ Milenaaaaaaaaaa! Catzo!! Nós estamos indo curtir a night, cara. Não estamos indo achar seu príncipe encantado. Só vamos deixar os caras transpirando, tirar umas casquinhas, pôr eles para comer nas nossas mãos, e dar um chute. Se algum stronzo tentar avançar contigo, enche ele de porrada! Você não é faixa preta em tudo que é briga?! Agora vamos, ou eu vou ficar magoada contigo!

Milena suspira profundamente, e percebe que quando faz isso seu colo fica extremamente exuberante, e então encolhe rapidinho o peito. Dá um sorriso desanimado, e começa a dizer:

_ É que eu não sou assim como você, Amanda, isso não é importante para mim... Ah, droga, tudo bem, vamos, então.

Vincentti não perde tempo com mais nenhuma palavra, com medo de Milena realmente desistir. Elas saem no carro de Amanda, e ela dispensa o piloto automático, dirigindo ela própria, com o sistema de som do veículo nas alturas, deixando um rastro atrás delas da delicada voz de Marisa Monte, “Eu Sei”.

_ E se eu ficar com frio? _ Pergunta Milena.

_ Pede um gato prá te esquentar! _ Responde Amanda fazendo uma curva depois do píer 18 com uma só mão no volante, pois a outra estava ocupada dando “aquele jeitinho final” em seus belos cachos negros, faiscantes de tão luminosamente cor de ébano.

_ Amanda! Que nos matar?! Ai, Deus, onde nós estamos indo?

_ Ao Iate Clube de Angra, estou aqui há uma semana e já tem gente bonita me convidando para uma festa em uma escuna imensa. Na verdade, admito, te chamei aqui em casa justamente para te trazer nesta festa, sua eremita! Hight Society, Milena, Jet Set, um lindo veleiro ancorado no Iate Clube, eu e você, lindas e maravilhosas, e um monte de gatos, prontos para uns amassos deliciosos!

_ Futilidade. Você realmente se diverte com isso? Como pode se imaginar nas mãos de qualquer um? _ Pergunta Milena, uma das mãos sobre o busto, assustada com a atitude de Amanda.

_ Ahh, ta me ofendendo, heim! Se eu achar um cara atraente e gostoso, que mal há em tirar um sarro, dar uns beijos, e nada além disso? Eu sei me dar ao respeito, tenho princípios, cara! Para ir além disso eu vou ter que encontrar um cara que signifique muito para mim! _ Dizia Amanda, o rosto um misto de zanga e constrangimento.

_ Amanda? _ Perguntou Milena, com um pequeno sorriso _ Você é virgem ainda?

_ Hã? Ah, bem, eu... _ Casta aos 22 anos, em pleno século XXII, onde não havia pressão social para que ela deixasse de ser virgem cedo, mas também não havia qualquer motivo aparente para ainda ser. Tentando sem muito sucesso emprestar um tom tremendamente casual a voz, ela foi dizendo, enquanto estacionava o carro: _ Olha, se você é algum poço de experiência, pode achar bobo o que vou dizer, mas acredito que a droga da virgindade não é... Deixe ver... Como um pirulito, isso aí, um pirulito que você abre, tira o papelzinho, e... Ora, você entendeu! É algo muito mais profundo que uns malhos com um carinha gostoso. Parece supercareta, mas é assim que eu me sinto, e o mundo, que não paga minhas contas, que se dane!... Estou parecendo uma bobona para você, Milena?

_ Claro que não, está linda, amiga. Mas me diz _ Fez Milena, saindo do carro, e continuando a falar assim que Amanda saiu do outro lado _ É amor? É isso que você procura, Amanda? Você está esperando o Amor?

_ Mas é LÓGICO que não... Eu não acredito no amor, Milena, desde a morte de minha mãe que eu prometi não amar... _ Mas “espoleta” Vincentti então suspira, um longo e sensível suspiro, como se a pequena selvagem escondesse algo até de si mesma, e foi dizendo _ Mas talvez... Talvez seja isso, o amor, eu espero o amor... E então eu vou morrer virgem, porque, sinceramente, não amo ninguém. Acho que sou incapaz disso.

_ Poxa, Mandinha, que coração gelado, não ama nem a mim? _ Perguntou Milena, ajeitando seu próprio decote novamente, sem olhar para a outra.

_ Milena, pelo amor de deus, eu estou falando de homem, entendeu, aquilo que você não têm...

_ Amanda! Que modos horríveis comigo! Que droga de grosseria! Tava só brincando, poxa vida! _ Disse Milena, ficando vermelha.

_Eu? Eu estou com modos feios, estou falando de virgindade e você me fala de amizade, nem eu... Ah, eu sou grosseira... Só o que me faltava.... Ta bom, desculpa oh santa Milena, eu só quis te explicar, mais eu sou grosseira... Ta legal... Está tudo bem... _ Fez Amanda em uma manobra que aprendeu de observar Guilherme Borges fazer isto com Milena e obrigar a garota a pedir desculpas. Como era infalível, Milena, meio exasperada, foi dizendo:

_ Desculpa Amanda eu só quis dizer que foi feio o que você disse, eu não quis te ofender. Não fique zangada.

Amanda se sentiu um pouco perversa de manipular Milena assim, sabia que quem deveria estar pedindo desculpas mesmo era ela própria, e prometeu a si mesma, mesmo sabendo que esqueceria a promessa em meia hora, que não mais faria aquilo com Milena.

Em torno da fantástica escuna, chamada Milady Morgana, pertencente a um dos donos da usina de energia onde Amanda tinha seu “emprego civil” (uma espécie de “fachada” para sua verdadeira ocupação como agente C7), o som de música ao vivo (Loving Every Minute) acariciava os ouvidos refinados presentes. Em apenas uma semana, Amanda conhecia nomes de todos, e já era o “xodó” da empresa onde trabalhava, tinha até algumas amigas (coisa rara, já que o jeitinho conquistador dela fazia as mulheres próximas, raramente tão bonitas quanto ela, e por puro despeito, acharem Amanda uma “libertina”). Pois assim que Vincentti foi subindo o tombadilho da embarcação foi cercada de novos amigos, que gritavam, animados, os nomes umas das outras. Amanda foi apresentando sua melhora amiga a todos:

_ Roger, esta é Milena, minha irmã. Não, não somos irmãs de fato, mas é como se a gente tivesse sido parida pela mesma mãe, de tanto que eu amo essa garota chata!... A baba vai escorrer no colarinho deste blazer lindo que está usando, Roger, cuidado... Ei, Ei! Camille, vem cá, preciso te apresentar uma pessoa!

Em dois minutos, tinham arrumado lugar para as duas lindas mulheres em uma mesa com quatro lindos rapazes. Mesa badaladíssima. Dois dos gatos eram hétero, dois eram “caso” um do outro, todos eram uns bocós.

_ Amanda... _ Sussurrou Milena ao ouvido da amiga quando teve chance _ ... O quociente de inteligência dessa mesa, tirando nós duas, deve mal chegar a dez...

_ E daí, eles são lindos...

_ Amanda, se você curte isso, uma pena... Eu posso ser uma boba tímida, mas gosto de estar com homens _ e sorriu, sem jeito, para os dois homos, que mesmo assim não tiravam os olhos dela _ Homens. Gosto de homens que não me deixem com sono. E esse loirinho com quem você está conversando, que foi buscar um drinque pra você, ele tem uma tatuagem no peito...

_ Reparei, bonitinha, não, Milena?

_ Tem um texto em havaiano. Significa “aquele que não completa uma mulher”. Em minha língua é algo como “broxa”. Suponho que ele nem faça idéia de que seja isto que esteja escrito... Esses seus amigos são tão vazios...

Amanda armou um bico, frisou os olhos, e foi dizendo:

_ Ó, se ele não sabe, pode ter certeza de que vai ficar sabendo agora. Iako, vem cá, gato! Pode deixar o drinque, vem cá rapidinho, por favor!

_ Amanda! _ Fez Milena, constrangida _ Pelo amor de Deus!

_ Oi? _ Fez o sujeito, dando a voz toda a carga “emocional” de garoto bonito, que sabe que tem um corpo irresistível para “qualquer” mulher. _ Sentiu minha falta?

_ Loirinho gostoso, minha amiga Milena aqui disse que essa sua tatuagem significa algo como “o que não sabe dar prazer a uma garota”, ou, no pop, “broxa”. É vero isso? _ disparou Amanda a queima roupa. _ Ela é havaiana, e fala a língua.

Todos na mesa começaram a rir, o sujeito pareceu diminuir de tamanho e crescer em fúria. Ao ser mencionado o nome dela, com um sorriso amarelinho, Milena fez que sim, falava fluentemente o havaiano, e já ia tentar puxar outro assunto quando o cara disparou um:

_ Ah... _ Um bom observador perceberia o constrangimento de quem foi enganado por algum tatuador com espírito brincalhão ao extremo _ ... Isso... É uma armadilha! Tem sempre uma otária que sabe o que significa, e eu tenho que mostrar para ela que eu mando ver. Então? Que tal a gente dar uma voltinha, Milena, até um camarote, que eu te mostro o quanto minha ferramenta é dura, e você, pequena Amanda, pode vir experimentar também, com comprimento que dá para as duas se divertirem!

Milena fechou os olhos e virou o rosto, vermelha de vergonha. E Amanda, também vermelha, mas de ódio, atirou um copo duplo de tequila na cara de Iako, que ficou cego por um segundo, tempo suficiente para que Vincentti lhe espremesse os bagos com toda a força. O cara via estrelas piscando na sua frente quando Amanda disse:

_ Sinceridade. Não me parece nada duro. Para falar a verdade, parece que está mole que nem ovo de codorna esmagado, querido! É coleguinha, você é brocha mesmo, de pai e mãe... Lamento.

“Tequila” Vincentti se levantou da mesa, pegou a bolsa, pediu licença e bebeu o último gole da bebida de um dos garotos à mesa. Agarrou a mão de Milena, e já ia saindo, quando Iako, jogado em uma cadeira, sentindo a dor das dores, resmungou:

_ Vai “colar o velcro” com a amiguinha, vai!

_ Ah! _ Berrou Amanda, desferindo golpes de bolsa na cara dele _ Cala essa boca, seu nojento! Facia de culo ridícula! Vem, Milena, deixa esse imbecil e sua tatuagem de ficaiola!

E arrastou Milena até o carro, onde entraram, e, Amanda, ao volante, ficou ofegando, nervosa. Depois riu, e foi dizendo a uma lívida Milena:

_ Não fica chateada não, Milena. Noventa por cento dos homens são idiotas! E até que o broxinha era bem dotado, há, há!

_ Amanda, eu realmente não vejo muita graça nisso tudo!

_ Pois então vamos a um lugar menos fino, mas muito, muito mais divertido, amiga! Põe o cinto aí, que vou pisar fundo.

E realmente arrancou com o carro, rindo, e “voando baixo” até seu bar predileto, em um recanto boêmio de Angra. O bar era chamado La Conginita, ou, para os íntimos freqüentadores, apenas LaCo. Ficava a uns dez metros, se muito, do mar, que naquele cantinho do balneário carioca parecia estar razoavelmente intocado a uns dois séculos, muito embora a tecnologia houvesse trabalhado bastante ali, para dar aquela impressão de natureza límpida. Havia palmeiras à volta, e madeira rústica em vigas e móveis, na entrada. À esquerda, o estacionamento, à direita, um letreiro néon de gosto duvidoso mas coerente encimava a entrada do lugar, que era, na verdade, mais que um bar, era um point da cultura pós-largada-semi-alcolizada-e-filosófica-porra-louca de Angra. Enfim, Amanda adorou conhecer por mero acaso aquilo ali.

_ Ei! _ Gritou o segurança, da porta de entrada do LaCo, para o dono do bar lá dentro _ Aquela gracinha de menina voltou, seu Guto! A garotinha branquela que adora tequila! Bem-vinda, rainha Jackie Tequila Vincentti!

E o gigante se curvou com uma carinhosa mesura, dando passagem a Amanda, que adorava o modo da turma daquele lugarzinho adorável. Parecia que não estavam sóbrios nunca! Aplicou um beijinho estalado no rosto do segurança, dizendo:

_ Paulão, ce continua galante, sabia? _ Disse a moleca Amanda.

_ Respeito, menina! _ Fez ele, em sua voz de barítono, brincalhão _ Eu sou casado! E minha nega maravilhosa é a dona única do meu coração. Ei, quem é essa moça linda contigo?

_ Milena, este é meu amigo, o único homem fiel do mundo, Paulão. Ele é o cavalheiro que faz qualquer garota se sentir supersegura por aqui!

_ Prazer em conhecer você, Paulão. _ Disse Milena, sorrindo simpática, mas ainda visivelmente abalada com o incidente no iate.

_ Ah, Milena, vem! _ Fez Amanda puxando a outra _ Você TEM que conhecer o Seu Guto!

E Milena conheceu o simpaticíssimo dono do LaCo, Seu Guto, um descendente de alemães com ar de pai bondoso, sabedoria de barman de longa data, e coração de menino. Milena adorou conhecer Guto, e conversaram animadamente, ao que Amanda ensaiou fingir que estava morrendo de ciúmes (sem saber ao certo de quem, do amigo ou da amiga) e todos riram. Depois de três saborosos copos de um chope forte, alemão, Milena já estava ficando mais “soltinha”. Foi então que Amanda, já “largada” de tão bêbada depois de mais uma garrafa inteirinha de destilado, subiu no palco e pediu uma música: “Sexual Revolucion”, de Marcy Gray. Os boêmios de plantão aplaudiram, e ajeitaram cadeiras e mesas, tudo confortável, mas muito simples, para assistir ao show de “Tequila” Vincentti, que arrastou a amiga havaiana para o palco. Milena, que já estava mais para lá do que para cá, entrou na dança, e as duas cantaram, dançaram, riram, se divertiram como jamais haviam se divertido juntas antes. Dançaram de tudo, do pagode ao samba, da salsa ao merengue, sendo aplaudidas de pé pela galera.

Sempre que Milena começava a demonstrar estar ficando sem jeito, tomava outro gole, e, mesmo sabendo que ia se arrepender na manhã seguinte, partia para um forró ao lado de Amanda. Alguns sujeitos realmente simples mas muito gentis e respeitadores as tiraram para dançar, charmosos e divertidos, eram os galantes boêmios do lugar, e num instante um clima de muita alegria se espalhava feito fogo em palha seca, por todo o LaCo.

Seu Guto adorou a baderna no bar, que durou até quase de manhã. O movimento andava meio fraco naqueles dias, e realmente foi uma grata surpresa como veio gente de longe assim que se espalhou o boato de que “duas sereias lindas estavam encantando todos com uma mágica de alegria, bem ali no LaCo”. Mesmo exausto, Guto ria a toa, a féria da noite tinha sido ótima. Mas quando o sol já estava quase nascendo, e Milena já estava dormindo debruçada em uma mesa em meio a túlipas de chope e copos de tequila, Seu Guto foi despachando os “bebuns” para suas casas, entre eles Milena roncando e Amanda sentada no palco, “quadrêbada”, cantarolando baixinho algo sobre um “broxa viadinho”. Mas antes de as por no caminho de casa, deu café bem forte para as duas maluquinhas, que se divertiram tanto, que perderam até os sapatos.

Elas saíram descabeladas, com um pé com sapato e outro não, Amanda xingando tanto, que obrigou Milena a tapar sua boca com a mão, para ver se ela se calava. Foi em vão. Aí mesmo que Amanda deu crise:

_ Mannaggia la, puta que pariu, dá para tirar o catzo da mão da porra da minha boca? Cassete!! Isso é censura, abolida a centos séculos, porraaaa!! Viva o puto do Fidel!! Eu pago meus impostos, tenho o direito de berrar quantos palavrões eu quiser na hora que eu quiser!! Falar palavrão é como fara uma scopata, tem que ter estilo, porra! E isso “madame tequila” aqui tem de sobraaaa... Cara, quase que a gente focinha no chão agora, viu??

Milena, de tão nervosa, e de tão bêbada, ria as gargalhadas, e, mais por milagre que por senso de direção, chegaram ao carro de Amanda, e esta levou quase meia hora para convencer o computador inteligente de seu carro que a deixasse entrar, que não usaria nenhum ardil para desligar o piloto automático. Quando o maldito carro-inteligente se deu por satisfeito, deixou as duas entrarem, e quando fez isso, Milena impediu Amanda de desligar o piloto automático, e o carro pode levar as duas até em casa, com segurança.

Assim que o carro parou em frente a sua bela casa, Amanda meteu a mão na buzina, que acordou a vizinhança com um grito estridente, antes que o carro desligasse o sistema de som. Levando o dedinho aos lábios, no clássico sinal de silêncio, várias vezes, Amanda engasgava de tanto rir, do desespero de Milena que olhava em volta sem parar com medo da reação dos vizinhos. Cambalearam até a entrada da casa, e abriram a porta, debruçadas sobre ela, despencando no chão assim que ela se abriu de fato. Amanda, rindo e cantando alto, foi se arrastando até o quarto, fez menção de ir ao banheiro tomar uma ducha, mas uma “força invisível” chamada embriaguez pungente a fez demolir na cama, e roncar, esquecendo completamente de Milena, que estava dormindo na soleira da porta, entre o capacho de entrada e o tapete da sala.

Depois de muito planejarem, dois robôs conseguiram trazer Milena para dentro e fechar a porta, cuidadosamente. Deixaram a morena dormindo e ressonando no grande (e predileto de Amanda) sofá branco da sala.

...

Amanda Vincentti só foi acordar lá pelas 15 horas do dia seguinte, com uma ressaca assassina e gosto de “guarda-chuva velho” na boca. Parecia uma linda mas desmazelada marionete cujo manipulador jogou sobre a cama, e precisou de um esforço corajoso para sair da pose contorcionista, com um braço e uma perna formigando, dormentes, e se por sentada na cama. Cada movimento da bela cabecinha causando pontadas de dor de cabeça lancinantes. Levantou-se cuidadosamente, com vários “ais e uis”, foi ao banheiro, ainda calçando um salto, apenas um, claudicando entre o pé calçado e o descalço, até que se esforçou para abaixar e retirar o sapato de salto alto que havia lhe sobrado. Assim pode ir para frente do espelho caminhando com alguma dignidade.

_ Nossa Senhora!! _ Fez, num resmungo alto, o mais alto que a ressaca permitia, ao ver o próprio rosto no espelho _ Estou parecendo uma... Vaca! De tão inchada!

Amanda atirou água fria, com ambas as mãos, contra o rosto, duas ou três vezes, e saiu do banheiro de sua suíte pingando água de seus cachos negros, nos quais esfregava uma toalha branca e macia. Já ia fazendo menção de cair na cama de novo, quando, da janela de seu quarto, avistou Milena, sereia, na praia logo atrás, tomando banho de mar. Amanda frisou bem os doloridos e lindos olhos, e percebeu que Milena estava ótima, com uma cara ótima.

_ Mas como diabos essa garota consegue ficar linda assim, enquanto eu to parecendo que dormi uns três anos, catzo? Ui! Ui minha cabeça! _ Fez Amanda.

Ela voltou ao banheiro, disposta a começar a dar fim àquela ressaca, e tomou a ducha pretendida desde quando chegou em casa. Ficou uma hora debaixo do chuveiro, deixando a água quente massagear seu corpo lindo, e escorrer por sua cabeça dolorida. Havia alguma outra coisa incomodando, mas Vincentti não sabia definir o que era. Finalmente saindo debaixo d’água, jatos de ar quente e perfumado a secaram, e a seguir Amanda tomou um outro banho, de cremes hidratantes, e, tão cheirosa quanto linda, foi por uma roupa.

A porta do seu closet se abriu a um comando seu, e cabides mudaram de posição automaticamente, expondo as “roupas de ficar em casa”. Deixou roupas de baixo de lado, queria conforto total, e escolheu uma calça folgadinha, de linho cru, e uma bata hippie azul bem clarinha. Uma bela “riponga” pós-moderna.

Desceu as escadas de sua casa pisando com cuidado, pois a cabeça ainda latejava, e foi até a cozinha. Pediu que um robô do tipo Mov lhe preparasse um suco de frutas. Este Mov era muito parecido, diga-se de passagem com um que a servia quando menininha, e conseqüentemente ela gostava dele mais que dos outros.

_ Deseja quais frutas, madame? _ Perguntou o mordomo positrônico, polidamente, já pegando os apetrechos para o preparo.

_ Laranja... Com melão, por favor. Preciso lhe dar um nome, Mov. _ Pensou alto a garota, ao que o Robô se virou para ela, e disse:

_ Como quiser, madame.

_ Me chama de Amanda, por favor, cara. Madame me dá uma sensação esquisita. O que não é novidade, estou com várias sensações esquisitas hoje!

_ Como quiser, Amanda. _ E rapidamente preparou o delicioso suco, entregando-o delicadamente a moça, que antes de sair, perguntou:

_ Mov, quando Milena acordou a foi nadar?

_ Acordou às 13:04:24 horas, arrumou-se em 33 ponto dois minutos, e foi tomar banho de mar logo a seguir, estando lá desde então. Já fui ter com ela, e preparei um pequeno desjejum, que ela comeu ali mesmo, na praia. Limpei tudo, claro, muito embora sua amiga seja bastante ordeira, devo salientar. Gostaria que eu lhe preparasse um pequeno desjejum também, Amanda?

_ Não, _ Respondeu já saindo pela porta dos fundos da cozinha, atravessando a pequena varanda que podia ser usada para jantar ao ar livre, e caminhando pela areia. Então voltou aos pulos, e pegou uma sandália. O sol estava razoavelmente forte, e a areia queimava.

Resmungando a dor nos pés, que nem chegaram a queimar de fato, Amanda foi se sentar ao lado da canga de Milena, que jazia presa por um livro (O Despertar dos Deuses, de Isaac Asimov) na areia, bem na beirinha da marca d’água deixada pelo mar. Mar de um verde indescritível naquela tarde linda. O vento soprava fresco, mas incapaz de tirar toda a força do sol, e isso fez Amanda se maldizer mais uma vez por ser descuidada, estava ficando com a cabeça quente, e com a vista ainda mais dolorida com a luz solar. Gritou:

_ Mov!! _ E se encolheu de dor de cabeça, ao gritar. Um momento depois estava usando um chapéu de aba larga, elegante e casual, e óculos escuros. Linda como era, Amanda Vincentti estava parecendo uma estrela de cinema, bebericando ali seu refrescante suco de melão com laranja, e faiscando charme boêmio sob o sol de Angra. Não se esqueceu, claro, de pedir ao Mov algumas pílulas contra a dor de cabeça, que tomou prontamente, sentindo algum alívio pouco depois.

Milena, que até agora estivera dando vigorosas braçadas a uns vinte metros da margem, finalmente percebeu Amanda sentada junto a seu livro e sua canga, e voltou, ligeira, para a praia, saiu correndo do mar, e caiu de um salto bem em frente à Amanda, que pôs uma das mãos à frente do rosto para evitar a chuva de respingos que Milena, sensualmente deliciosa em seu biquíni branco, espalhava a sua volta. Amanda emburrou um pouquinho o rosto, mas não tinha forças nem para discutir, e ficou quieta. Milena, no entanto, foi dizendo, animada:

_ Bom diaaaa! Finalmente acordou, heim, dorminhoca! Dormiu bem, querida? Oh, puxa, você não está com a melhor cara não. Vamos dar uma nadadinha, Manda? A água está uma delícia, amiga. Tira esses óculos de sol, e olha que natureza linda você tem em volta da sua casa!

_ Hum, não, muito obrigada. Minha cabeça está muito dolorida para tirar os óculos, deixa eles aí. E se o sol ta quente desse jeito, a água deve estar fria... Salgada...

_ Óbvio que água do mar está salgada, né Amanda? Dããã, ta devagar hoje, heim? Quanto à dor de cabeça, faz como eu fiz, e pede ao bracelete que dê um jeito. Faz umas duas horas que minha ressaca sumiu por completo. Ah, se você não quer o mar, eu quero. Fica aí sentadinha que eu vou nadar mais um pouco, ok?

Amanda fez que sim, e se estirou sobre a canga de Milena, chegando a folhear o livro dela, que pareceu interessante, mas não tinha condições intelectuais agora para ler nada, e abandonou o livro. Resolveu fazer o que Milena sugeriu, e ordenou que seu bracelete de agente C7, um sofisticado sistema de regulagem orgânica e de comunicação, “acertasse” seu corpo combalido pela ressaca. Mas Vincentti tinha bebido muito, muito, muito mais que Milena, e o bracelete, para poder fazer seu trabalho, induziu Amanda a um sono profundo. Ao seu lado, o copo de suco, que já tinha chegado a metade, tombou, vertendo o suco para a areia branca.

...

Meio que sonhando, meio que dormindo, Amanda parecia flutuar em algum lugar quente e agradável, ressonando. Ela sonhou com uma menininha de olhos puxadinhos e azuis que parecia bastante com Milena, mas branquinha como ela própria. Não sabia como, só sabia que adorava de paixão a menininha, daria sua própria vida por ela. Coisa de sonhos. Então, a certa altura, começou a ouvir uma voz miúda e distante, que dizia:

_ O robô já colocou até um guarda sol para proteger ela, mas ela não acorda, acho que vou jogar a água...

_ Tem certeza? _ Outra voz, mais forte, masculina.

_ Ela vai me matar, mas estou ficando preocupada, me dá essa jarra aqui, por favor...

Amanda percebeu, já sendo liberada do torpor pelo seu bracelete, que estavam falando dela, de jogar água nela, e acordou subitamente, dizendo alto:

_ Não, não joga ág... _ Mas já era tarde, e Milena, assustada com o pulo de Amanda, ficou um momento sem ação, deixando o resto do litro d’água da jarra que estava em suas mãos se esparramar pela cabeça, colo e corpo de Amanda, sentada na areia, adejando de nervoso as mãozinhas brancas. Quando a última gota d’água caiu na cabeça de Vincentti, Milena recolheu a jarra contra o peito, e se encolheu. Amanda começou, então, a berrar, ainda meio confusa _ Ah! Ah! Mannaggia la! Quem foi o culattone que me jogou água!?! Caralho! Caralho!! Porra!! Puta que pariu o mundo!!

Mas Milena (que havia atirado a jarra longe) não estava sozinha, bem ao lado dela o vizinho de Amanda, Schwartz, que também trabalhava com Vincentti na Usina de Energia Natural. Na verdade Schwartz era subordinado de Amanda, o que ela adorava. Adorava ter homens maravilhosos, deuses gregos como aquele, sob seu comando. Schwartz era moreno, cabelos lisos, e cavanhaque, e uma tremenda cara de safado, que ela adorava. E músculos, muitos e torneados músculos, bem do jeito que ela adorava. Resultado: ao perceber o apetitoso vizinho, Amanda mudou de atitude automaticamente, dizendo:

_ Oi! _ Sorrindo, molhada e linda _ Me desculpa pelos palavrões, Schwartz, é que a um segundo eu estava dormindo, e agora estou encharcada, e a maré vazante levou a água do mar bem para longe daqui, E... Aí, desculpa, valeu? Me ajuda a levantar?

_ O que é isso, Amanda, tudo bem, me dê sua mão. _ Disse ele.

Ela estendeu, lânguida, a mãozinha, que ele, gentil, prontamente tomou em sua grande e forte mão, e a levantou. E ao levantar, Amanda quase “colou” seu próprio peito ao peito “malhado” dele, o que fez o sangue italiano dela começar a ferver, e para não perder a chance, ela disparou um de seus pequenos e significativos sorrisinhos maliciosos, e um maldoso “obrigada”. Amanda tomou Milena pela mão, e foi para casa ainda sentindo o “peitoral” do gato.

_ D-desculpe, Mandinha, é que já está anoitecendo, e você estava dormindo há muito tempo. Chamei você, mas nada te acordava, aí ele apareceu, e disse que você “gostava de tomar um trago e cochilar na areia”, e eu pensei que um pouquinho d’água poderia...

_ Tudo bem, Milena, tudo bem... _ Disse Amanda, olhando para trás e percebendo que Schwartz olhava para ela com malícia, com uma das mãos sobre o próprio peito forte, bem sobre o coração (as finas roupas de Amanda tinham ficado totalmente transparentes, e ela não usava nada por baixo, lembra?) _ Nossa, que gatinho...

E entraram na casa de Amanda, que estava banhada pela fraca luminosidade do sol que se punha ao longe, e tinha um ar calmo e tranqüilo. Pois ao entrar na sala, Amanda se surpreendeu: havia uma mesa delicadamente posta e enfeitada com folhas e arranjos havaianos, e sobre ela, comidas de aparência e aromas deliciosos. Compreendeu que eram comidas típicas havaianas, entre algumas guloseimas tipicamente brasileiras também, que a deixavam hipnotizada. Milena foi dizendo, ainda meio tímida:

_ Surpresa, Mandinha... Fiz esse almoço tardio, ou jantar mais cedo, como queira... Para nós. O Mov me disse que só tomou aquele meio copo de suco, desde que acordou, achei que ia estar com fome quando acordasse, e resolvi por em prática umas receitas que aprendi com minha mamãe... Gostou? Continua zangada comigo?

Amanda sorriu, olhos marejados, e tomou o rosto da amiga nas mãos, beijando as faces de Milena, que sorria, feliz. Amanda dizia:

_ Oh, Mi, você não existe, sabia? Quanto carinho, Mi, obrigada, querida...

Amanda subiu correndo (já estava se sentindo ótima, pronta para outra, e maravilhada com seu novo “equipamento de curar ressacas”, seu bracelete C7) e se obrigou a tomar um banho antes de comer, mesmo estando morta de fome. Vestiu-se com elegância para o jantar com a amiga tão querida, e finalmente “atacou” os petiscos preparados com todo o cuidado por Milena.

_ Milena _ Dizia Amanda, de boca cheia, e se danando para os bons modos, estavam só as duas ali _ Que delícia deliciosa!! Como se chama isso?

_ He `ono! Mamãe chama de “delicioso”, mas tenho quase certeza que ela dizia assim que era para a gente praticar a língua quando viemos para o Brasil, deve ter um outro nome, mas nunca perguntei.

_ Como se diz “eu te amo” em havaiano, Milena? _ Perguntou, faceira, Amanda.

_ Aloha au i `oe! _ Disse Milena, sorrindo.

_ E irmã?

_ Mais nova ou mais velha que você?

_ Mais velha.

_ Kaikua`ana, Amandinha.

Amanda beijou o rosto de Milena, deixando-o sujo de um creme branco e delicioso, com sabor e fragrância pungente, que ela estava comendo quase que com as mãos, e disse:

_ Aloha... Au i `oe... Kaikua`ana Milena! _ Amanda falou devagar, cuidadosamente, como se estivesse em uma “corda bamba” lingüística.

_ A pronúncia esta quase certa, querida! _ Brincou Milena, abraçando calorosamente a amiga, e dizendo _ Aloha au i `oe, kaikaina!

_ Desculpe por ontem, Milena... Eu sempre me meto em confusões!

_ Comeu bastante, agora vem, vamos tomar uma cerveja e conversar ali na beira da praia, ta uma noite linda, vem Amandinha...

Sentaram na areia, o céu já negro, explodindo em estrelas, as mesmas estrelas que enviavam terríveis criaturas contra os agentes C7, também eram de uma beleza imensa, quando vistas assim, de uma praia linda, com pouca luz dispersa (novas tecnologias permitiam que as luzes das cidades nunca obscurecessem as estrelas dos céus, que depois de séculos imersas nas luzes da civilização, voltavam a ocupar o céu e os olhos estupefatos da humanidade). E as duas amigas, bebericando cerveja, e conversando, sob aquele céu magnífico, era um quadro muito bonito de se ver, de fraterna e pura felicidade pela amizade uma da outra.

_ Não se preocupe, Amanda. Adorei conhecer o LaCo e o pessoal de lá. E talvez a gente não tivesse ido parar lá se aquele... “Broxinha”... _ E ela disse isso como que fosse uma freirinha dizendo um terrível palavrão _ Não fizesse aquela ignorância. Nem teríamos ido lá. Eu sei que você gosta dessas bagunças, e elas são muito divertidas mesmo, mas sei também que você tem limites. Boêmio bom é o que sabe onde estão seus limites, acho... Não quero que encha a cara e acabe esmagada em algum acidente por aí, ou abusada por algum desgraçado, ou desgraçada, do jeito que anda o mundo hoje.

_ Parece que as confusões se sentem atraídas por mim, e vêm correndo nos meus calcanhares, sabe? Eu só quero me divertir, curtir uns “malhos”, tocar um zaralho, sabe? Aí tem sempre algum engraçadinho escroto que acha que porque bebo e me divirto tenho uma placa na testa escrita “puttanella, podem se servir”. Adoro homens, mas eles me tocam somente até onde EU quiser, essa é a regra...

_ Mandinha, desculpe, mas creio que são “ossos do ofício” _ Disse ela dando de ombros _ E eu explico pra você o que quero dizer: se você realmente gosta de ficar manipulando rapazes (eu mesma sou uma incapaz para fazer isso), vai ter que aturar que eles te “colem um rótulo” de vez em quando.

_ Quer que eu seja uma freira? Isso é ter relacionamentos, Milena, é ficar no controle dos relacionamentos...

_ Ah, Amanda, não _ Fez Milena, aparentando, pela primeira vez, uma irmã mais velha e, na prática, mais experiente _ Isso é “pegação”, “malho”, ou seja lá como você prefere chamar. Isso é “treino”, é aprender a tocar, não é se relacionar. Relação é uma troca de experiências, de idéias, é achar alguém que te acrescente algo, pois é “crescendo” que nos sentimos completamente felizes. Tesão é tesão, é bom, e você tem todo o direto de gostar de atiçar o seu, só não deve enganar a si mesma achando que tesão é toda a felicidade que seu coração pode sentir, ele é só o comecinho, Mandinha, só o comecinho da felicidade...

Amanda ficou alguns minutos em silêncio. Surpreendia-se sempre com Milena, que abaixo da aparência magnífica, guardava camadas ainda mais bonitas. Muito mais sábia do que aparentava, Milena era alguém que Amanda agradecia a Deus ter levado para o âmago de sua vida. Finalmente, animada, Vicentti rodopiou sua garrafinha de cerveja vazia na areia, forçando-a a apontar o gargalo para Milena, e foi dizendo:

_ Jogo da Verdade! Ta com você, eu faço as perguntas: como é ter um homem entre as pernas? _ Perguntou Amanda, propositadamente agressiva, brincando com a timidez da amiga, que ficou imediatamente vermelha, e foi dizendo:

_ Amanda! Você tem uns modos!

_ Ah, Milena, só estamos nós duas aqui, e me fala, sem rodeios, como é isso? _ Dizia Vincentti, debochada _ Eu sou uma virgenzinha curiosa, você já percebeu que brinco com o perigo, mas ainda estou no “zero quilômetro”... Me conta, como foi sua primeira vez.

_ Trágica! Quer dizer, foi maravilhosa, eu realmente queria, e ele, pelo menos naquele momento, era importante para mim, e eu pelo menos estava apaixonada, mas pouco tempo depois eu o perdi, para sempre.

_ Cruzes!! Morreu?

_ Morreu. Não quero falar sobre isso! Entendeu? Deixo você fazer outra pergunta.

_ Só me diz com que idade foi?

_ Dezesseis anos.

_ Ahhhh, sua devassa! _ Riu-se Amanda, brincalhona.

_ Ele tinha dezenove... Não vai fazer outra pergunta? Vou girar a garrafa para você, heim? _ Ameaçou Milena, encarando Amanda. Ao que esta falou prontamente:

_ Está bem! Está bem! Me fale sobre quantos homens já teve?

Milena pareceu fazer cálculos, e fingiu perder a conta algumas vez, ao que Amanda deixava o próprio queixo cair, fingindo-se abismada. Mas finalmente Milena respondeu:

_ Quatro.

_ Sóóó? _ Fez Amanda, realmente abismada agora.

_ Sou muito seletiva, e não sou tão “foguenta” quanto você. E estamos falando de sexo, não é? Já namorei outros homens, mas sexo mesmo, foi com esses quatro. E ando mal influenciada, pois com os dois primeiros levou um tempão para acontecer, com os dois últimos foi bem rápido.

_ Ramon eu sei que é um deles... _ Vaticinou Amanda, que só de falar no caliente espanhol sentiu um calor gostoso subir pelo ventre até o rosto. Sabia que o espanhol de longos cabelos negros estava namorando Milena, ou quase, mas não resistia a sensação de desejo que emanava dele. Já tinham, inclusive, trocado um beijo, e Amanda rezava para que Milena jamais soubesse disso, mesmo tendo sido o beijo um pouco antes de Ramon ficar com Milena.

_ Ele foi o último... _ Fez Milena, lutando para não ficar ruborizada. _ E, aproveitando para responder sua indecorosa pergunta, ter um homem com “H” é uma alegria, algo um pouco além do prazer, na beira do paraíso! Maravilhoso! Ah, Amanda, eu não sei como “falar” sobre isso. Sexo é sexo, o importante é o que se sente, e o que se faz sentir. Você é uma garota maravilhosa, vai encontrar um cara que faça seu coração bater forte, e então, quando acontecer, você vai saber o que estou querendo dizer. Mas uma coisa eu posso te garantir, Manda, você pode dar quantos “malhos” quiser, em quantos caras lindos quiser, mas nem o melhor dos sexos se compara a um décimo de como é gostoso fazer amor, com AMOR de verdade. Isso sim, é indescritível MESMO. Perfeito, lindo, e magnífico... E muito mais... Muito mais... Ah, estou ficando quente...

Milena riu, e logo Amanda estava gargalhando. Mas então ambas ficaram mais algum tempo em silêncio, pensando, os olhares azuis perdidos lá em cima, pensando em amores, enquanto a constelação de Orion cruzava, navegando em silêncio, os céus cariocas. Finalmente Milena girou a garrafa para Amanda, e disse:

_ Minha vez de perguntar... Amanda Vincentti, a irmãzinha que eu não tive e que agora Deus me deu de presente, você já amou alguém? Já amou algum homem na sua vida?

_ Não, _ Foi a resposta imediata _ Nunca, acho que ainda estou procurando meu “príncipe encantado”, se é que posso chamar assim...

_ Ah _ Fez Milena _ Então era historinha o papo de “não crer no amor”?

_ Depois de tudo o que conversamos, sim... Acho que sim... Perdi minha mãe muito cedo, e a felicidade de amar e a dor de perder, eu acho que se misturaram pra mim, Milena... Mas, depois de tudo o que conversamos, sobre crescer, e sobre felicidade... Quem sabe eu não tente encontrar alguém para realmente amar? E se eu encontrar esse cara, numa esquina qualquer da vida, ou quem sabe bem no meio de uma missão da Agência, garanto a você que ele vai ser a pessoa mais especial do mundo! E a primeira pessoa que vou querer que conheça ele vai ser você, Mi.

_ Eu? Que honra! Mas porque justamente eu? _ Perguntou Milena, sorrindo.

Amanda encostou a cabeça no ombro da amiga, que era mais alta que ela, e passou um braço em volta de Milena, dizendo:

_ Porque você é a pessoa mais importante no mundo pra mim, minha grande amiga!

Milena não pode dizer nada. Não teve palavras para dizer algo. Apenas abraçou sua pequena irmã, e, claro, chorou, emocionada. Depois de algum tempo, finalmente sussurrou:

_ Obrigada... Eu também te amo muito, Mandinha... _ Amanda permaneceu em silêncio, pois as Vincentti não choram, e quando o fazem, fazem em silêncio sempre que podem.

E, depois de um longo e carinhoso momento abraçadas, elas voltaram a conversar, sob a lua cheia, ao sabor da brisa fresca e perfumada da noite. Conversaram sobre a vida, sobre a Agência, e principalmente sobre “sexo”, rindo as gargalhadas quando Milena falava sobre certos aspectos do assunto que Amanda nunca tinha experimentado “ao vivo” e que aquela considerava engraçados, esdrúxulos até. Pediram mais cerveja aos robôs da casa de Amanda, e deitaram juntas na areia, contando estrelas, alegres, mas se perguntando, meio que sem saber bem o porque, se um dia teriam de dizer adeus uma a outra. Se esta talvez não fosse, em suas conturbadas vidas, a última vez em que estariam juntas, assim, em paz.

 

Tudo o que é reto mente.
Toda verdade é sinuosa.
O próprio tempo é um círculo”
(F. Nietzsche)

 

FIM

(e começo de uma inesquecível amizade)


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